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UM VAZIO ENTRE OS DEGRAUS: O SILÊNCIO NA POESIA DE HILDA HILST E HERBERTO HELDER

2. O silêncio enquanto musa

Após uma ameaça seguida de uma incipiente reconciliação, Rick e Ilsa se abraçam diante da janela do quarto em que estão. A cena seguinte mostra por 3,5 segundos um farol de aeroporto aferindo uma luz circundante. Quando a câmera volta ao quarto, Rick fuma um cigarro sozinho na janela, enquanto Ilsa encontra- se sentada em uma cadeira.

Neste caso, o vazio cenográfico é preenchido por um frame aparentemente alheio ao enredo nuclear, o que imediatamente leva o espectador a completá-lo inconscientemente de modo a fornecer uma sequência razoável aos fatos narrados. A resposta que se espera é: o que aconteceu no quarto durante estes 3,5 segundos? Mais diretamente: as personagens se relacionaram sexualmente ou não? Zizek, respaldado por Richard Malby, responde: sim e não.

“Embora, no nível da sua narrativa superficial, o filme pode ser interpretado pelo espectador como estando de acordo com códigos morais estritos, ele oferece ao mesmo tempo indícios suficientes aos ‘sofisticados’ para construir uma linha narrativa alternativa, sexualmente muito mais ousada” (Zizek, 2009).

Neste caso, insinua-se entender o silêncio tal como um signo linguístico que faz parte da estrutura da linguagem tanto quanto um significante qualquer. A hiância do processo psíquico que se conclui em ausência de palavras não é, portanto, uma demanda inacabada. No campo das artes, o silêncio (ou o vazio) deve ser avaliado enquanto parte estrutural da obra.

Ao analisar a representação do silêncio na obra de Samuel Beckett, Maria Margarida Costa Pinto conclui:

“Mesmo que, aparentemente, as pausas não deem [sic] acesso a um referente identificável, elas possuem relevância quer semântica, quer pragmática” (Pinto, 2006).

Para encaminhar a análise proposta neste ensaio, as obras selecionadas foram Roteiro do Silêncio de Hilda Hilst, cuja primeira edição data do ano de 1959, e Cinco Canções Lacunares de Herberto Helder, publicado originalmente em 1968. Uma vez que o silêncio aparece como temática nuclear tanto na primeira quanto na segunda obra, tentar-se-á identificar os laços que se cruzam e as práticas que os distanciam.

2. O silêncio enquanto musa

 

Hilda Hilst, em seu quarto livro de poesia, esclarece seu projeto desde o início da leitura: “É tempo de parar as confidências” (Hilst, 1959), anuncia a epígrafe à primeira parte da obra, intitulada Cinco Elegias. Como num ato de voluntariedade, Hilst informa sua intenção. Contudo, ao prosseguir com a leitura, deflagra-se que o ato de represar as confidências parece ser mais uma revelação da impotência da autora em expressar em palavras o desejo que agora sente.

 

Pela impossibilidade de transformar em confissão o que aflige seu impulso poético, Hilst transforma o silêncio, assim entendido como o lugar em que vive o inatingível, em musa de seu repertório literário. Na aspiração de “fazer parte da paisagem”, a autora constrói um caminho (roteiro) pavimentado de vazio. Com efeito, trinta anos após a primeira publicação do livro, em entrevista concedida a Vilma Arêas e Berta Waldman, veiculada no Jornal do Brasil, esta relação entre o impossível e a palavra continua em voga. Nas palavras de Hilst: “A poesia tem a ver com tudo o que não entendo”.

O silêncio na poesia de Hilst é o inexprimível, o conceito é a incontinência do desejo, como se fosse algo de inalcançável através das palavras, ainda que o veículo de confissão seja a poesia. Trata-se do significado não passível de significante material. “Ventura a minha, a de ser / poeta e podendo dizer / calar o que mais me afeta” murmura a autora. É fortuna ou inaptidão a vocação poética?

Ao evidenciar o quão necessária (ou inevitável) é a abstenção das palavras para exprimir com excelência o sentimento engaiolado em seu próprio ser, a poeta se aproxima da estrutura psicanalítica conforme compreendida por Jacques Lacan. Para ele, se a linguagem instrumentaliza e estrutura as instâncias imaginária e simbólica nos processos de representação do sujeito, o real só se pode exprimir na ausência de sentido, o real é o que não pode ser nomeado (Lacan, 2012).

A procura, portanto, da “singeleza de apenas existir” em Hilst afigura-se como o próprio limite da comunicação humana e o Roteiro do Silêncio comprova a (não)teoria sobre a verdade que Lacan enunciou no seminário transmitido por uma emissora de televisão francesa em 1974:

“Digo sempre a verdade. Não toda pois dizê-la toda não se consegue, dizê-la toda é impossível, faltam as palavras. É justamente por esse impossível que a verdade toca o Real.” (Lacan, 1993)

Posto que a verdade tem uma estrutura de ficção, só mesmo através da expressão artística (esta contingência simbólica que resulta do que se é e do que se deseja ser) o humano consegue representar o silêncio tal como o inapreensível pelo consciente.

Quando escreve “as coisas que procuro / não têm nome”, Hilst acata o pormenor lacaniano contributivo à teoria psicanalítica desenvolvida primeiro por Sigmund Freud, que, por sua vez, endereça assim a questão do silêncio revelador:

“Quando anunciamos a regra fundamental da psicanálise a um paciente com uma vida cheia de acontecimentos e uma longa história de doença, e então lhe pedimos para dizer-nos o que lhe vem à mente, esperamos que ele despeje um dilúvio de informações; mas, com frequência, a primeira coisa que acontece é ele nada ter a dizer. Fica silencioso e declara que nada lhe ocorre” (Freud, 2016)

Não é delírio considerar que o leitor (presumido, quando da elaboração da obra poética; convalidado, quando da sua leitura) se apropria do poema do mesmo modo que o analista parece se relacionar com o discurso

 

do paciente (na poesia, o autor). Sob esta perspectiva, a expressão poética em nada difere do surto histérico. Dentro do emaranhado campo artístico, a poesia se perfaz como a representação mais fidedigna da psicose. Senão vejamos. Explica Freud:

“Enquanto o paciente se acha em tratamento, não pode fugir a esta compulsão à repetição; e, no final, compreendemos que esta é a sua maneira de recordar”.

Na poesia, a repetição de significantes (como testemunhara o psicanalista austríaco no caso do homem dos ratos) evidencia-se com frequência primeiramente em sua estrutura sintática – o ritmo, a métrica, as rimas, as aliterações – e não raro, em seguida, no próprio conteúdo semântico. É claro que este sinthoma não é exclusividade da poesia. Retomando o cinema, Zizek identifica na cinebiografia hitchcokiana a reprodução de “um conjunto de motivos (visuais, formais, materiais) que ‘permanece o mesmo’ em contextos de sentidos diferentes”, o que equivale aproximadamente às reiteradas manchas amarelas da última fase de Van Gogh ou à exibição da água e da erva na pintura de Munch (Zizek, 2009).

Outra maneira de recordação do passado – que se perfaz em repetição no contemporâneo dentro do campo poético – é o diálogo estabelecido com outros artistas anteriores à obra presente. Às vezes explícito, principalmente através de epígrafes (como a referência a Péricles da Silva Ramos em Sonetos que Não São), mas eventualmente tacitamente embrulhados. A relação da ideia de que “(...) navegando / se conhece o marinheiro” em Hilst com o famoso “amar se aprende amando” de Carlos Drummond de Andrade (1985) ou o verso “mais vale a mente vazia”, irmão mais novo de “ausente do meu coração / quiser eu sob o céu vagar” no Lamento de Rainer Maria Rilke, são repetições que, no entanto, somente o leitor, imbuído em sua tarefa psicanalítica, pode diagnosticar.

Enquanto o roteiro do silêncio de Hilst é um fim em si mesmo – o hiato que intermedia o que se deseja e o que se cala –, a musa taciturna de Herberto Helder reside em um outro lugar. Se a interação entre leitor e autor na obra da escritora brasileira é comparável (ao menos metaforicamente) à relação entre analista e paciente, Helder, ao deslocar o núcleo de seu vazio para um motivo fúnebre (e não desejoso, erótico), parece encontrar-se num confessionário diante de um leitor-pastorali.

Se a poeta brasileira desenvolve seu desejo em silêncio pelo simples fato de não saber nomear aquilo que deseja, mas afirma com convicção sua impotência, Helder questiona: “quem ama até perder o nome?”. Dentro da poesia do escritor português, contudo, o vazio se estabelece quase num apelo mumificador, de algo que se evanesce com sua morte, mas cujo espaço se pretende preenchido por outra substância. “Há quem morra para ser / de um mês: vivem imóveis / os jardins das vozes”: tais versos revelam qual a faceta que o silêncio poético intenta representar. O fenômeno descrito como morrer para ser anuncia a aparente ambivalência de que tudo o que cessa abre espaço para o devir, o vácuo inerente por onde circulam os corpos.

 

Na poesia de Herberto Helder, especificamente no que se refere à obra Cinco Canções Lacunares (aliás, não me parece à toa o emprego de um adjetivo essencialmente espacial – “lacunar”, derivação diminutiva do radical latino lacus/lago – para designar o espaço aberto pelo poeta), o silêncio aparece mesmo como brecha, como vão, como vazio a ser ocupado. A partir daí, conclui-se que o silêncio de Helder, diferente da genealogia psicanalítica já referenciada em Hilst, aproxima-se mais da representação estética da noção de vazio na filosofia epicurista.

Teixeira Filho (2011), a partir de uma análise da Carta a Heródoto escrita por Epicuro e informada por Diógenes Laêrtios, sintetiza o núcleo da física tal como compreendida pelo filósofo do Jardim:

“O todo, o universo, é composto de infinitos corpos e do vazio, do espaço ilimitado onde estes corpos se movem. O hiato entre os corpos nos aparece como um fenômeno negativo, ou seja, a existência de alguma coisa nos leva a deduzir que o vazio, o espaço, enfim, precisa existir, para que as coisas possam estar nele. Percebemos que é preciso que haja, entre os corpos, um espaço onde eles possam se movimentar e um espaço onde eles possam estar, portanto, é preciso supor que haja esse vazio infinito, cruzado pelos corpos, em movimentos perpétuos, mas quanto ao vazio mesmo, não podemos dizer mais nada, posto que ele é nada.”

Nos versos “(...) Existe nas ilhas um silêncio para / a poeira tremer (...)”, Helder enfatiza sua ideia sobre o silêncio que sucede o instante mortal. Se algo em vida tinha nome, agora lhe resta observar “as máquinas resolutas / de fabricar as formas rápidas, / e convulsas, do esquecimento”. Mas o espaço aberto pela cessação da temporalidade “é surpreendido pelos mortos que transpiram / em seus blusões de ouro”.

Mas há pontos de convergência, laços de identificação entre o silêncio de Hilst e o de Helder. O movimento dialético que aparece estrutural na composição das cinco canções lacunares faz parte também da decisão numérica de Hilst nas cinco elegias.

Tanto em uma como na outra há a expectativa de um caminho comum: a primeira canção do poeta português (Bicicleta) anuncia uma trilha percorrida em cima do veículo ‘bípede’ pelo poeta em direção aos símbolos essenciais para a representação de sua obra, o que também acontece na primeira elegia da autora brasileira (“Em vão nos locomovemos. / Para onde pés e braços?”). Ainda no primeiro passo desta marcha, abundam as referências a um tempo passado: em que pese a totalidade do poema seja escrita em verbo presente, Helder indica que “a noite cai agora sobre a rosa passada”, enquanto Hilst ressente a passagem do tempo e sua madureza precoce (“cresci tão inutilmente / quando devia ficar / debaixo das laranjeiras / à sombra dos laranjais”). Há nos dois poetas, portanto, o início da caminhada em inevitável diálogo com a memória na primeira canção e na primeira elegia.

Trilha percorrida, percebe-se ainda que a última fase do caminho nas duas coleções termina inacabada. Helder finaliza sua derradeira canção (Os Mortos Perigosos, Fim.) com o seguinte verso: “Quando.” Hilst agoniza em sua quinta elegia com a inscrição – expressa mesmo entre parênteses – “(Ainda que obscura.)”. Em ambos os

 

casos, o roteiro parece abrir em seu ponto final uma porta para uma nova passagem, como se, mesmo após a confissão transformada em poesia, faltasse um capítulo oculto.

Mais evidente fica a íntima relação entre os dois autores com a sequência de versos em que Helder admite que morte e amor têm naturezas essencialmente análogas. “Na memória mais antiga a direcção da morte / é a mesma do amor. E o poeta, / afinal mais mortal do que os outros animais, / dá à pata nos pedais para um verão interior.”

Destaca-se ainda a maneira pela qual Helder manipula a interpretação do leitor através da pausa em alguns versos. Na terceira estrofe de Bicicleta, inscreve: “De pulmões às costas, a vida é para sempre”; mais adiante, o segundo verso da última estrofe sugere: “é para sempre a morte”. É claro que a leitura completa dos versos anteriores e seguintes permitem cessar a dúvida imposta, porém, já que há uma pausa propositiva do poeta, é permitida a análise que destaca o verso do todo. Neste caso, duas conclusões metonímicas (e quase contra intuitivas) são possíveis: (i) a vida, assim como a morte, também se inscreve na eternidade; e (ii) a morte, enquanto instante que inaugura o vazio, também se imprime em temporalidade. Afinal, “(...) há quem morra / para ser de um mês (...)”.

3. O silêncio enquanto métrica

 

Para além da decisão temática dos autores em referenciarem-se ao silêncio como representação do inalcançável através das palavras ou do espaço vazio a ser ocupado, há uma instância métrica do vazio na poesia, o que intenciona-se tratar neste subcapítulo.

Nos versos do Roteiro de Silêncio, a representação menos evidente do silêncio – mas que mais nos interessa – aparece nos usos dos parênteses e colchetes durante as estrofes. Ambos os artifícios insinuam um paradoxo entre o que se pretende dizer e o que se deve calar. Em Hilst, estes sinais gráficos constituem o silenciar do eu-lírico em sua voz principal e agregam uma nota explicativa, quase que enunciada por um alter ego.

Os versos inscritos entre parênteses ou entre colchetes durante o Roteiro de Silêncio aparecem como a base que fundamenta a própria decisão de calar-se da autora. Lá estão as confissões mais despudoradas, que, no entanto, quando são transmitidas por dentro dos sinais gráficos, parecem apresentar-se embrulhadas, cobertas, ocultas, quase sussurradas, numa sugestão de que, ainda que devesse-se mantê-las silenciosas, é em sua revelação que estão – ao mesmo tempo – a necessidade do silêncio e a impossibilidade de guardá-las para si.

Destaco dois dos versos emoldurados para os analisar sob a explicação acima:

“As coisas que nos circundam / (Na aparência desiguais) / Conservam em suas essências / Ai, aquela mesma e triste / Parecença”. Sem o verso escrito entre parênteses, o efeito ambíguo que propõe Hilst – aparência