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Ao abordar as reflexões acerca da linguagem, o filósofo russo Bakhtin, juntamente com o seu círculo de estudiosos, no início do século XX20, direcionam reflexões para o entendimento segundo o qual a linguagem é pautada na interação verbal21.

De acordo com Bakhtin (1995), o que caracteriza a interação verbal é a enunciação, a relação dialógica entre os sujeitos, demarcados histórico, cultural e socialmente. Noutras palavras, a ideia de enunciação, segundo o autor supracitado, assinala para o processo de construção/produção dos enunciados. Assim, é compreensível que a enunciação acena para o processo; já o enunciado22 constitui o produto.

20 A partir de 1919, o filósofo russo Bakhtin instituiu um círculo de estudos multidisciplinar, composto por

estudiosos e artistas que se interessavam pelas discussões sobre a linguagem enquanto prática definidora da própria existência/condição humana.

21 Embora a nossa pesquisa tenha raízes estruturalistas, achamos por bem enfatizar a concepção de linguagem na

perspectiva da interação verbal ao caracterizarmos o gênero discursivo acadêmico artigo científico, uma vez que os estudos sobre gêneros discursivos assumem a concepção da língua em uso como ponto de partida para as suas reflexões.

22Ressalvamos que o conceito de enunciado apresentado por Bakhtin (1995) é bem diferente do conceito de enunciado defendido por Ducrot (1988). Para Ducrot (1988) o enunciado está relacionado à manifestação de uma frase, e discurso a uma sucessão de enunciados. Para Bakhtin (1995), enunciado está relacionado ao conceito de texto, enquanto ato de interação verbal, de modo que todo discurso, seja ele oral ou escrito, constitui enunciado; já diálogo refere-se às relações dialógicas.

Dessa forma, para compreender o sentido da interação verbal, de acordo com Bakhtin, faz-se necessário entender o sentido da enunciação, o qual é demarcado pelo movimento dialógico instituído na relação estabelecida entre as pessoas, através da linguagem. Essa relação, por sua vez, sustenta-se na interação do “eu” com o “tu” – filosofia do diálogo ou da relação, instituída pelo filósofo Buber23. É embasado nesse princípio dialógico que Bakhtin designa o dialogismo, esboçando uma noção de recepção e compreensão estabelecida através da e na palavra, como “[...] o território comum do locutor e do interlocutor” (1995, p. 113). Assim, é possível perceber que a interação entre os pares – locutor e interlocutor – gerada pelos signos linguísticos institui a enunciação.

Para Bakhtin (1995, p. 123):

A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas, nem pela enunciação monológica, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.

Como forma de dar sustentabilidade à tese de que “a enunciação é de natureza social”, Bakhtin lançou uma crítica ao objetivismo abstrato e ao subjetivismo idealista, estudos linguísticos acerca das funções comunicativas da linguagem no início do século XX, mostrando que nem o objetivismo abstrato (que considera os estudos da língua dando ênfase a formas linguísticas, desconsiderando os sujeitos no instante da enunciação), nem o subjetivismo individual (que só considera a fala como ação individual) constituem a realidade fundamental da língua. Para o autor, “ [...] a língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta” (BAKHTIN, 1995, p. 24). Com isso, é possível entender que o processo comunicativo ocorre não apenas através do locutor, do interlocutor, ou muito menos da palavra isolada, mas também através da interação verbal.

Ressalvamos que essa concepção de interação verbal não é tão simples, uma vez que se trata de sujeitos e de enunciados que são constituídos por histórias de vida. Tanto a situação social mais imediata como o meio social mais amplo são determinantes da estrutura da enunciação (BAKHTIN, 1995). Trata-se de uma interação situada, demarcada e embrenhada de inúmeras marcas socioculturais, políticas, filosóficas, religiosas, ou seja, uma interação que se tece sempre assinalada por sujeitos de linguagem com diálogos prenhes de outros enunciados.

23 O filósofo austríaco Martin Buber foi um dos principais representantes da filosofia do diálogo, tendo publicado

Segundo o estudioso, é possível perceber essa complexidade da interação, pois a enunciação, por mais significativa e completa que pareça ser, compõe apenas um fragmento de uma corrente de comunicação verbal contínua referente à vida cotidiana, à literatura, ao conhecimento, à política etc. É esse vínculo da comunicação verbal com a situação concreta que jamais poderá ser rompido, pois essa conexão é sempre acompanhada por atos sociais de atitudes não verbais como, por exemplo, atos simbólicos de um ritual e cerimônias dos quais ela é muitas vezes apenas o complemento, desempenhando um papel meramente auxiliar (BAKHTIN, 1995).

Os vínculos sociais se fazem presentes no diálogo, instauram a intersubjetividade e a alteridade dos sujeitos, de maneira que entender o dialogismo significa compreender o caráter essencialmente dialógico da linguagem. E para que haja essa compreensão, é importante considerar tanto a presença do interlocutor, como o discurso alheio que se fazem presentes no momento da enunciação.

Para Bakhtin (1997, p. 316):

O enunciado está repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado ao interior de uma esfera comum da comunicação verbal. O enunciado deve ser considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados anteriores dentro de uma determinada esfera: refuta-os, confirma-os, completa-os, baseia-se neles, supõe- nos conhecidos e, de um modo ou outro conta com eles.

Essa relação dialógica do enunciado de refutação, confirmação, embasamento, aproximação, distanciamento constitui uma situação corriqueira no âmbito acadêmico, pois, na prática da construção do saber, na realização de pesquisas e na produção de discursos acadêmicos, estamos sempre interagindo com “o outro”, realizamos diálogos com os nossos parceiros; estudamos teorias que foram construídas por sujeitos mais experientes que se embasaram em outras posições já consagradas; lemos e refletimos sobre ideias já amadurecidas; construímos ideias, embasando-nos em outros conceitos já existentes. O discurso científico é uma arena de embasamentos, trocas, aperfeiçoamentos, críticas, concordâncias, discordâncias no qual a interação verbal se faz sempre presente, ou seja, é um campo de constantes e heterogêneos diálogos.

As manifestações de linguagem são materializadas em forma de diálogos, em forma de discursos. “A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana” (BAKHTIN, 1997, p. 279). É por essa razão que o autor considera pertinente realizar investigações acerca dos enunciados por meio das formas de comunicação, ou seja, pelos gêneros discursivos.

Assim sendo, quando pensamos em enunciação, discurso, interação verbal, reportamo- nos à natureza discursiva e existencial da linguagem, natureza essa que se presentifica em todas as esferas das ações humanas através dos tipos estáveis de enunciados que o filósofo da linguagem denominou de gêneros discursivos.

4.2 Caracterização, identificação e classificação do gênero discursivo artigo científico