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2.2 Polifonia: constituinte da enunciação

2.2.2 A polifonia de locutores

A polifonia de locutores, de acordo com Ducrot (1987), caracteriza-se no interior do discurso relatado, por meio do relato em estilo direto. De acordo com a teoria em estudo, em enunciados dessa natureza existe uma pluralidade de responsáveis “distintos e irredutíveis” (idem, ibidem, p.182).

Para o autor, esse tipo de polifonia é demarcado pela presença de, no mínimo, dois locutores diferentes, que são os responsáveis pelas informações do enunciado. Assim, o Locutor 1 (L1) é o responsável por todo o enunciado, e os demais locutores serão responsáveis pelos enunciados que surgirão no discurso. Estes podem ser identificados por Locutor 2 (L2), Locutor 3 (L3) e assim sucessivamente.

Exemplo 7:

Ana me disse: “Eu não participarei do evento”.

Podemos identificar, no enunciado do exemplo 7, a Polifonia de Locutores – presença de mais de um locutor. Isso fica evidenciado através das marcas linguísticas pronominais “me” e “eu”. Notamos que a marca pronominal “me” é reveladora do locutor responsável por todo o enunciado, o Locutor 1 (L1) = “Ana me disse: Eu não participarei do evento”. Já a marca “eu” evidencia a presença do outro locutor, Ana, Locutor 2 (L2), responsável pelo segmento relatado: “Eu não participarei do evento”. Portanto, observamos a presença de mais de um “eu” no discurso: o “eu” responsável pelo enunciado como um todo; e o segundo “eu”, que é posto em cena pelo primeiro para se responsabilizar pelo trecho relatado.

É por isso que a enunciação na polifonia de locutores é apresentada como dupla, uma vez que “o próprio sentido do enunciado atribuiria à enunciação dois locutores distintos, eventualmente subordinados” (DUCROT, 1987, p. 186). Assim, como afirma o próprio autor, “é possível que uma parte de um enunciado imputado globalmente a um primeiro locutor seja, entretanto, imputado a um segundo locutor” (DUCROT, 1987, p. 185).

Essa característica de desdobramento do locutor no discurso permite a existência da inclusão de outras vozes em um mesmo enunciado. Ducrot (1987, p. 187) postula que, “[...] do ponto de vista empírico, a enunciação é ação e um único sujeito falante, mas a imagem que o enunciado dá dela é a de troca, de um diálogo, ou ainda de uma hierarquia de falas”.

Para explicar esse desdobramento do locutor, Nascimento diz que:

De acordo com Ducrot, essa possibilidade de desdobramento do locutor permite não somente dar a conhecer o discurso atribuído a alguém como também produzir um eco imitativo, ou ainda organizar um teatro no interior da própria fala, ou que alguém se torne porta-voz de um outro e empregue, no mesmo discurso, eus que remetem tanto ao porta-voz quanto à pessoa da qual é porta-voz (NASCIMENTO, 2009, p. 23-24, grifos do autor).

Esse desdobramento do locutor está previsto por Ducrot, no caso exclusivo do discurso relatado em estilo direto. Já o discurso relatado em estilo indireto não é considerado pelo autor como polifonia de locutores, uma vez que nesse estilo não existiria a demarcação, na estrutura do enunciado, de uma dupla enunciação.

Em estudos realizados no grupo de pesquisa “Estudos Semântico-Argumentativos de Gêneros do Discurso (ESAGD)”, Nascimento (2014) percebe que esse desdobramento de

locutores, responsáveis pelo enunciado, não constitui exclusividade do estilo direto, ficando evidenciado também no estilo indireto.

A principal razão pela qual consideramos o discurso relatado em estilo indireto um caso de polifonia de locutores é que, no próprio sentido do enunciado, o locutor responsável pelo discurso (L1) atribui a responsabilidade do discurso relatado a um outro ser do discurso, explicitamente identificado no próprio enunciado (NASCIMENTO, 2014, p. 6).

Vejamos uma demonstração da existência da polifonia de locutores em estilo indireto: Exemplo 8:

Ana me disse que não participaria do evento.

No exemplo 8, percebemos a existência do desdobramento do locutor. O discurso relatado em estilo indireto “não participaria do evento” é a voz de Ana, outro ser do discurso, diferente do locutor responsável por todo o enunciado, L1, demarcado no discurso pela marca linguística “me”. Assim, é possível observar “o teatro”, previsto por Ducrot no estilo direto, também evidenciado no estilo indireto, já que existe um locutor que se torna “porta-voz” de outro locutor.

Embasados em Nascimento (2014), consideramos, no estilo indireto, a existência do segundo locutor (L2), pois, além de estar explicitado na estrutura do enunciado, está subordinado a L1 e trata-se de um ponto de vista apresentado tanto por L1 quanto por L2.

Convém ressaltar que, ainda que se apaguem marcas dêiticas da voz alheia no estilo indireto, o locutor a reconhece como tal e a identifica através de expressões e verbos dicendi, tais como o verbo dizer [como no exemplo acima]. A presença dos verbos e expressões dicendi, além de demarcar, no próprio sentido do enunciado, a subordinação da voz de um segundo locutor (L2) com relação à voz do locutor responsável pelo enunciado como um todo (L1), pode indicar como L1 se posiciona diante do discurso de L2 (NASCIMENTO, 2014, p. 6, grifos do autor).

Vejamos fenômeno semelhante, apresentado por Nascimento (2009, p. 92): Exemplo 9:

No exemplo 9, o locutor responsável pelo enunciado como um todo – L1, o locutor narrador, organizador do “teatro” de vozes – traz para o seu discurso a voz alheia, de um segundo locutor, Ciro – L2. Notamos que L1, além de trazer a voz do L2 para o seu enunciado, faz questão de deixar essa voz estranha identificada e explicitamente marcada como uma acusação. L1 mostra que o enunciado que apresenta o ponto de vista “Serra não apoiou o Plano Real” trata-se de um posicionamento de Ciro. E mais: ao empregar o verbo dicendi modalizador “acusar”, L1 deixa explícito, no enunciado, uma avaliação, um juízo de valor acerca do posicionamento de L2, evidenciando que o ponto de vista de Ciro é uma acusação; ou seja, deixa impresso que este deve ser lido como uma acusação.

Em face do exposto nos exemplos 8 e 9, percebemos uma ilustração de como o discurso em estilo indireto pode ser considerado um tipo de polifonia de locutores. Isso fica evidenciado porque:

1º) O locutor trouxe a voz alheia para seu discurso;

2º) Essa voz é identificada como voz do outro através do verbo dicendi;

3º) Fica demarcado no dito do enunciado que essa voz é pertencente ao outro e está subordinada a L1;

4º) L1 pode assumir posicionamentos com relação ao discurso alheio.

Esses fenômenos não constituem exclusividade do discurso relatado em estilo direto. “Essa é, portanto, uma característica comum tanto ao discurso relatado em estilo direto como ao discurso relatado em estilo indireto, o que justifica a nossa opção por tratarmos ambos como casos de polifonia de locutores” (NASCIMENTO, 2014, p. 7).

No que se refere à diferença entre os estilos direto e indireto, Ducrot afirma:

A diferença entre estilo direto e estilo indireto não é que o primeiro daria a conhecer a forma, o segundo, só o conteúdo. O estilo direto pode também visar só o conteúdo, mas para fazer saber qual é o conteúdo, escolhe dar a conhecer uma fala (ou seja, uma sequência de palavras, imputada a um locutor). (DUCROT, 1987, p. 187).

Nascimento (2009), em estudo realizado acerca da argumentação na notícia jornalística, acrescentou aos estudos já existentes outra perspectiva de realização do fenômeno da polifonia:

No estilo direto, o locutor responsável pelo discurso (L1) não se compromete com o discurso dos outros locutores introduzidos em seu discurso, uma vez que não assume a responsabilidade pelo relato dos outros locutores. No indireto, por sua vez, L1 se compromete com os relatos dos outros locutores, porque torna seu o discurso do outro, incorporando as palavras alheias e deixando de sinalizá-las (com aspas ou travessão) como tal. Logo, trata-se de uma questão de maior ou menor comprometimento, já que

no estilo indireto há uma assimilação e, no indireto, um distanciamento das palavras do outro (2009, p. 27).

No corpus analisado por Nascimento, constatou-se a evidência de graus de comprometimento, assimilação ou distanciamento no uso dos estilos direto e indireto. Em pesquisas recentes, coordenadas por Nascimento e realizadas no ESAGD, foi possível constatar em corpora descritos pelo projeto que:

A assimilação, o distanciamento e a avaliação do discurso relatado, por parte do locutor responsável pelo discurso, dão-se muito mais pela presença de outros elementos linguístico-discursivos, como as aspas de diferenciação, os verbos dicendi, entre outras estratégias linguístico-discursivas, do que pelo fato de esse discurso ter sido apresentado em um ou outro estilo (NASCIMENTO, 2014, p. 8, grifos do autor).

Nesse sentido, concordamos com Nascimento e ressaltamos que, na nossa investigação, é possível observar fenômenos semelhantes. Nosso trabalho evidencia que, para relatar essas relações de envolvimento como comprometimento, assimilação ou distanciamento, o locutor responsável pelo discurso, além de fazer uso dos estilos direto e indireto, faz uso de alguns recursos linguísticos, como, por exemplo, emprego de aspas, verbos dicendi, entre outros. Prova disso é a constante ocorrência em nosso corpus do arrazoado por autoridade, atuando em conjunto com a modalização (discussão apresentada no capítulo de análise desta tese, o IV).

Outro recurso presente na polifonia de locutores é o uso das aspas, que, “além de assinalar a voz de um locutor [...] possuem outras diferentes funções, permitindo, inclusive, ao locutor se distanciar do que ele introduz no discurso” (NASCIMENTO, 2005, p. 57).

Authier-Révuz (1998), na obra “Palavras Incertas: as não-coincidências do dizer”, estuda o uso das aspas no discurso de divulgação científica. Conforme a autora:

“[...] as palavras entre aspas são marcadas como pertencentes a um discurso outro; por isso, o contorno que eles traçam no discurso é revelador daquilo que o discurso tem a demarcar como ‘outro’ em relação àquilo em que ele se constitui”. (AUTHIER- RÉVUZ, 1998, p. 118).

A autora nos mostra que palavras entre aspas constituem elementos indicativos de palavras alheias. Esses elementos são demarcadores de fronteiras no discurso, uma vez que indicam, na constituição do discurso, a palavra do outro, de um estranho, que se une para constituir um único enunciado, embora as palavras aspeadas nem sempre abordem a mesma intenção do locutor. “Isso significa que, através das aspas, o locutor traz o discurso de um

‘outro’ para dentro do seu discurso, deixando claro que aquele discurso assinalado pertence a esse ‘outro” (NASCIMENTO, 2009, p. 28, grifos do autor).

Uma ilustração da estratégia de uso de aspas é a forma que acabamos de utilizar na estruturação do parágrafo acima, quando trouxemos as palavras aspeadas de Nascimento inclusas no nosso enunciado, como um contínuo da nossa fala, mas deixando evidente que o discurso assinalado não é de nossa autoria e sim de “outro” locutor, Nascimento, que é trazido para compor o enunciado.

As palavras aspeadas “[...] são palavras assinaladas como ‘deslocadas’, ‘fora do seu lugar’, pertencendo e adequando-se a outro discurso” (AUTHIER-RÉVUZ, 2004, p. 221). Por essa razão, o locutor pode trazer as palavras alheias, aspeadas, tanto para se identificar com o dizer do outro, como para se distanciar. Ao apresentar as palavras aspeadas, o locutor pode assumir, ou não, as responsabilidades por esse dizer alheio.

Em estudos sobre gêneros DISCURSIVOS da esfera acadêmica, Garcia Negroni (2011) evidenciou que as aspas são usadas, pelo locutor, no discurso científico, para indicar a utilização das falas de outros pesquisadores, para validar os seus pontos de vista e também para manter distanciamento do dizer aspeado. Assim, de acordo com o contexto, as aspas podem assumir diferentes e variadas significações.

Koch (2007, p. 69), partindo de Authier-Révuz, apresenta seis diferentes funções de distanciamento das aspas. Considerando as palavras das autoras, organizamos o quadro a seguir, sobre os tipos de aspas e suas respectivas funções.

QUADRO 3:TIPOS E FUNÇÕES DE ASPAS DE DISTANCIAMENTO

Tipos de aspas Funções das aspas

Diferenciação Diferenciar a voz do locutor das palavras aspeadas, mencionadas.

Condescendência Marcar uma palavra que parece estranha ao locutor, mas que o interlocutor a usaria dessa maneira.

Pedagógicas Assinalar um termo vulgar que será substituído por um termo técnico.

Proteção Assinalar que certa palavra não é inteiramente apropriada e está sendo substituída por outra.

Ênfase Assinalar a ênfase do sentido de uma expressão. Questionamento

Ofensivo ou Irônico

Assinalar expressão usada “pelo interlocutor por prudência ou por imposição da situação” ( 2007, p. 69).

As aspas, constantemente, fazem-se presentes nos discursos científicos e, geralmente, são indicadoras da presença de outros locutores.

A seguir, discorremos acerca do fenômeno da argumentação por autoridade, mecanismo discursivo que se manifesta na polifonia de locutores e na polifonia de enunciadores.