• Nenhum resultado encontrado

2.2 Polifonia: constituinte da enunciação

2.2.3 A argumentação por autoridade

2.2.3.2 O arrazoado por autoridade

Quando pensamos na palavra “arrazoado”, reportamo-nos à argumentação, à exposição, a um discurso bem organizado. E quando refletimos acerca da palavra “autoridade”, reportamo-nos a poder, competência, prestígio.

Nesse sentido, ao pensarmos no termo “arrazoado por autoridade”, poderíamos remeter a uma exposição argumentativa por prestígio, por poder.

Mas que ligações esse pensamento tem com o conceito ducrotiano de arrazoado por autoridade? Como Ducrot compreende esse arrazoado? E por que ele o classifica como um tipo de polifonia de locutores?

A argumentação por autoridade na forma de arrazoado por autoridade acontece, de acordo com Ducrot (1987), quando um locutor responsável pelo enunciado (L1) põe em cena outro (s) locutor (es) (L2, L3), que constituem autoridades no assunto do enunciado. Mas não é só essa razão: acontece também que L1 traz L2 para o seu dizer porque se identifica com essa outra voz que optou por trazer para constituição do enunciado, ou seja, “L assevera que há uma asserção de P por X” (DUCROT, 1987, p. 148).

Vejamos as palavras do autor acerca dessa forma de argumentação:

Essa [...] forma de argumentação por autoridade, parece-me, ao modo de demonstração que os novos filósofos do século XVII, os cartesianos, como também Pascal, atribuem aos escolásticos, e que condenam como incompatível com a existência, no indivíduo, de uma faculdade que lhe permite, pelo menos com relação a certos problemas, separar por si mesmo o verdadeiro do falso (DUCROT, 1987, p. 148).

Ora, se na visão desses filósofos a que Ducrot faz referência, para organizar um conhecimento seria necessário um rigor prático de observações e demonstrações, já que por si só o sujeito não teria condições de organizar esse conhecimento, reconhece-se a importância de se embasar o discurso em outras demonstrações de sucesso para se aproximar ao máximo do que seria a verdade. Esse tipo de modelagem da linguagem, em que L1 traz para seu discurso as vozes de outros locutores, enquanto autoridades constituídas, institui-se no arrazoado por autoridade.

O arrazoado por autoridade constitui um tipo de demonstração entre outros, e deve ser catalogado ao lado do raciocínio por recorrência, da indução e do raciocínio por analogia, num inventário de tipos de prova reconhecidos como válidos em dada época, em determinada coletividade intelectual (DUCROT, 1987, p. 157).

A escolha feita por L1 acontece para dar sustentação ao seu ponto de vista, para, de maneira especial, dar credibilidade ao enunciado proposto, pois se trata de uma argumentação que se embasa em outro dizer – e não é um dito qualquer, trata-se de um pronunciamento de uma autoridade constituída no assunto.

Para tanto, ele se fundamenta na ideia de que X, tendo em vista sua situação ou sua competência, não se pode enganar, ou, pelo menos, tem poucas probabilidades quando diz P. O fundamento do arrazoado é, assim, uma espécie de implicação entre a proposição segundo a qual X assevera P e a própria proposição P. (DUCROT, 1987, p. 148-149).

Vejamos, no trecho abaixo, retirado do corpus deste trabalho, um exemplo de arrazoado por autoridade:

Exemplo 11: A2T4

Além da experiência que lhe possibilitou a passagem da conversão, a estratégia assumida por Freire é também cristã: a prática do testemunho aparece como sua maneira de evangelizar, de anunciar a boa nova. “O testemunho, na teoria dialógica da ação, é uma das conotações principais do caráter cultural e pedagógico da revolução” (2005, p. 203) e, sendo “ousado e amoroso, serve à organização” (Idem, p.204).

Neste exemplo, observamos o desdobramento de locutores: a presença da voz do locutor responsável por todo o enunciado, pesquisador que escreve sobre a teoria de Paulo Freire (L1); e da voz de Paulo Freire (L2), a voz colocada em cena por L1, relatada em estilo direto através da citação.

No exemplo supracitado, o locutor responsável pelo enunciado (L1), para abordar uma discussão acerca da problemática do fatalismo na ótica freireana, traz para o seu discurso a voz de Paulo Freire (L2), uma autoridade reconhecida academicamente neste assunto. Ao utilizar esse fenômeno na organização do seu enunciado, L1 apresenta a voz de uma autoridade sobre o assunto como prova para o seu dizer, ou seja, com a intenção de alicerçar seu ponto de vista. Nesse caso, “[...] o discurso de L2 traduz o ponto de vista de L1” (NASCIMENTO, 2009, p. 30).

O movimento enunciativo apresentado no exemplo 11 ilustra como no arrazoado por autoridade não se trata de simplesmente mostrar um discurso de um segundo locutor, pois, de

acordo com Ducrot, “[...] a premissa de um arrazoado por autoridade, em um discurso seguido, deve ser a asserção de uma asserção, e não a simples mostração de uma asserção” (DUCROT, 1987, p. 149).

Embora o locutor responsável pelo enunciado faça uso do arrazoado por autoridade para sustentar o seu dizer, essa sustentação, de acordo com Ducrot, pode ser recusada, como se vê a seguir:

Como toda forma de prova, um arrazoado por autoridade pode, além do mais, ser recusado. Ou se considera que, em geral, a palavra de um homem não prova nada, ou sustenta-se que X, em particular, em se tratando de certo ponto particular, provavelmente deva ter se enganado (DUCROT, 1987, p. 157).

Ducrot revela o cuidado que o locutor responsável pelo enunciado como um todo deve ter ao fazer uso do arrazoado por autoridade, pois a escolha dos pontos de vista a serem colocados em cena deve ser algo bem planejado e que garanta sustentabilidade para o seu dizer. Para isso, é condição imprescindível, na organização de um bom arrazoado por autoridade, escolher autoridades competentes no assunto. “A palavra de honra, dada por alguém, dependerá da opinião que se tem dessa pessoa como homem de honra” (PERELMAN; TYTECA, 2005, p. 347)19.

Assim, é possível perceber que o arrazoado por autoridade pode trazer uma segurança para o locutor responsável pelo enunciado, em casos exitosos. Já em casos de recusa, o uso do arrazoado por autoridade pode trazer fragilidades para o locutor. “Se a argumentação é fraca, e mesmo cômica, não é em razão do esquema que a embasa, mas porque é uma argumentação pelo modelo, empregada fora de suas condições de aplicação, quando o modelo carece totalmente de prestígio” (PERELMAN; TYTECA, 2005, p. 348).

Ressalvamos que o tipo de argumentação por autoridade, na forma de arrazoado por autoridade, é recorrente nos gêneros textuais acadêmicos. Para Elichigoity:

O arrazoado por autoridade é muito usado para dar legitimidade ao que se está afirmando, por exemplo, um jornalista em sua reportagem – pois a voz que ele incorpora a sua fala lhe dá credibilidade, ou um estudioso em seu trabalho científico, como respaldo teórico (2007, p. 159, grifos do autor).

19 Embora Perelman e Tyteca estudem o fenômeno da argumentação através da perspectiva retórica, optamos por

citá-los reconhecendo que a argumentação por autoridade também é objeto de análise de autores de outras áreas diferentes da Teoria da Argumentação na Língua e que as considerações de Perelman e Tyteca são importantes para a compreensão do funcionamento discursivo desse tipo de argumentação.

No discurso científico, a incorporação das vozes do outro, para validar o próprio dizer, constitui uma marca desse estilo linguístico, uma vez que as vozes citadas são os posicionamentos de autores que já tiveram suas ideias expostas e reconhecidas no meio científico; são ideias, portanto, que já passaram por crivos de juízos de valor, ou seja, são asserções e, por essa razão, podem ser usadas para legitimar o que está sendo dito – outra asserção.

Convém ressaltar que pesquisas realizadas no LASPRAT, em diferentes corpora, têm nos mostrado que o arrazoado por autoridade pode ou não vir identificado no próprio texto. A identificação social do locutor presente no texto vai depender da funcionalidade do gênero discursivo. Em investigação realizada por Nascimento (2005) acerca do arrazoado por autoridade no gênero jornalístico notícia, o autor constatou que:

[...] a identificação social dos outros locutores (L2, L3 etc.) nas notícias que compõem o corpus obedece a um critério rígido de apresentação. Ou seja, em ambos os jornais e em todas as notícias, esses são identificados, na primeira ocorrência da notícia, pelo nome e sobrenome, seguidos da posição social (profissão ou outra função ocupacional) do indivíduo (2005, p. 118).

A pesquisa de Nascimento mostra que a identificação social do locutor é própria do gênero notícia, uma vez que aparece sempre intrínseca ao texto. Isso ocorre, de acordo com o autor, por duas razões: primeiro, para dar credibilidade à informação que está sendo veiculada e, segundo, para deixar esclarecida a procedência do discurso relatado (NASCIMENTO, 2005).

O exemplo 12, abaixo, retirado do corpus de Nascimento, ilustra como a voz dos demais locutores é identificada socialmente no gênero em estudo.

Exemplo 12:

Jornal B: O Estado de São Paulo

Notícia 1

Segundo o diretor da UP e especialista em marketing político, Sidney Kuntz, a margem de erro da pesquisa é de 4,5% para mais e para menos. Portanto, a mostra dá um empate técnico entre Lula e Ciro. Outros dados da pesquisa foram: 2,4% afirmaram que nenhum dos candidatos se saiu bem no debate e 1,2% consideraram todos os presidenciáveis muito bons.

“Levando em conta que o Serra foi o que mais apanhou dos adversários, até que ele não foi mal na pesquisa. Outro dado é que

os paulistanos não demonstraram simpatia por quem partiu para o ataque, como foi o caso de Garotinho”, disse Kuntz, e completou: “A tática de metralhar todo mundo não agradou.” (NASCIMENTO, 2005, p.147, grifos do autor)

No exemplo 12, o locutor responsável por todo o enunciado (L1) introduz o relato de um segundo locutor (Sidney Kuntz), em seu discurso, sob a forma de arrazoado por autoridade. Essa autoridade é identificada socialmente, uma vez que, L1 diz que se trata do “diretor da UP e especialista em marketing político”, logo uma autoridade socialmente constituída no assunto, qual seja, pesquisas sobre intenções de votos. Conforme Nascimento (2005), a identificação social do segundo locutor, na notícia jornalística, não só confere credibilidade ao dizer de L1, o locutor responsável pela notícia, como também produz efeito de argumentatividade no texto. Convém ainda ressaltar, como afirma o próprio autor, que o fato de a voz da autoridade aparecer explícita e socialmente identificada no texto não deixa o L1 isento de responsabilidades pelo dizer alheio (NASCIMENTO, 2005).

Já em pesquisa realizada por Carvalho (2014) sobre o arrazoado por autoridade no gênero acadêmico projeto de pesquisa, diferentemente de como ocorre no gênero notícia, a identificação social dos demais locutores não aparece intrínseca ao texto. O exemplo 13, extraído do corpus de Carvalho, ilustra como o arrazoado por autoridade aparece no gênero projeto de pesquisa:

Exemplo 13 Trecho 135- A6:

Nesse sentido, a falta de concordância de número na língua falada, entre outros exemplos de variação, pode ser considerada um erro para algumas pessoas. No entanto, Scherre (2005) demonstra que a variedade linguística independe do nível social ou de escolarização de alguém, visto que:

“Estudos diversos têm mostrado que, na modalidade falada do português brasileiro, a concordância de número plural nem sempre ocorre. Mesmo pessoas escolarizadas deixam de colocar todas as marcas formais de plural em construções diversas.” (SCHERRE, 2005, p. 19). (CARVALHO, 2014, p. 73, grifos da autora).

No exemplo 13, é possível perceber que o arrazoado por autoridade aparece no gênero acadêmico projeto de pesquisa sem a identificação social da voz alheia. Nesse exemplo, a voz da autoridade aparece assinalada através das marcas tipográficas de citações (uso das aspas, identificação do nome do autor, ano da obra e página onde se encontra a citação), bem como nas referências. A estratégia de não identificação social dos locutores trazidos por L1, no gênero acadêmico projeto de pesquisa, não isenta o locutor responsável pelo discurso de responsabilidades pelo dito dos outros locutores. Assim, é possível perceber que essa estratégia se trata de uma característica do gênero em estudo.

Fato semelhante ao encontrado por Carvalho (2014), de não identificação social da voz alheia intrínseca ao texto, encontramos na nossa pesquisa sobre o gênero discursivo artigo

científico. Embora a voz da autoridade não venha identificada socialmente no texto, o locutor responsável pelo enunciado faz uso da asserção de uma asserção, marcando a voz alheia, o local de onde a voz alheia foi retirada, o ano em que tal enunciado foi pronunciado e, em alguns casos, até a página onde se localiza a informação. Não se trata de uma informação qualquer, e sim de um dizer que já foi asseverado.

Assim, o arrazoado por autoridade é um movimento enunciativo bastante utilizado no universo acadêmico, pois, no discurso científico, as asserções são constantemente empregadas para garantir outras asserções, oferecendo, dessa forma, mais legitimidade ao enunciado. Mesmo que a voz da autoridade não venha identificada socialmente, como demonstram os corpora de Carvalho (2014) e desta investigação, através das marcas de citações e das referências, é possível perceber que se trata de vozes alheias, de autoridades constituídas no assunto, que o locutor responsável pelo enunciado traz como forma de legitimar o seu discurso. O fato de o autor aparecer citado no artigo científico já constitui marca do arrazoado por autoridade.

No Capítulo III, subsequente, contemplaremos mais um fenômeno linguístico- discursivo que se materializa argumentatividade no discurso: a modalização. Optamos por estudar esse fenômeno por contemplar aspectos linguístico-discursivos que se fazem presentes no corpus analisado.

3

MODALIZAÇÃO:

FENÔMENO

ESTRATÉGICO

DE

ARGUMENTATIVIDADE

“No seu dizer ninguém tem mais poder você” (FERREIRA).

Neste capítulo, abordamos a discussão acerca da modalização e seus pressupostos teóricos fundamentais, enquanto fenômeno discursivo semântico-argumentativo e pragmático que é materializado em diferentes gêneros discursivos. A modalização é compreendida neste trabalho “[...] como um ato de fala particular que permite ao locutor, além de deixar marcas de suas intenções, agir em função do seu interlocutor” (NASCIMENTO; SILVA, 2012, p. 63).

Nesse sentido, os estudos sobre a modalização esclarecem como um locutor imprime ao seu discurso as marcas de sua subjetividade, por meio de determinados elementos linguísticos, deixando também registrado como o discurso deve ser lido pelo interlocutor.

Ressalvamos que o uso do conceito de modalização foi privilegiado, nesta pesquisa, com o intuito de ilustrar os fenômenos e fatos inerentes à argumentação que Ducrot e colaboradores não ressaltaram na Teoria da Argumentação na Língua. Esse conceito faz-se necessário na realização da nossa pesquisa, já que abordamos questões relacionadas à argumentatividade, aspecto relevante nos estudos sobre o fenômeno da modalização discursiva. Assim, os estudos acerca da modalização assumem importância essencial para a nossa pesquisa, uma vez que a modalização traz no seu cerne a argumentatividade, ressaltando as marcas de subjetividade do locutor impressas no discurso, orientando o sentido dos enunciados, bem como delimitando um maior ou menor comprometimento do locutor com os enunciados.

Para apresentar os estudos sobre modalização, partimos das contribuições de Lyons (1997), Cervoni (1989), Castilho e Castilho (1993), Koch (2002), além das reformulações propostas por Nascimento (2005) e Nascimento e Silva (2012).

Observamos que, nos Estudos sobreModalização, alguns autores utilizam o termo “modalidade” enquanto outros se valem da terminologia “modalização”. Usaremos, no nosso trabalho, embasados em Castilho e Castilho (1993) e em Nascimento (2009), as duas nomenclaturas sem distinções.