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CAPÍTULO II O lugar do desastre e da incidência das políticas públicas

2.4. Vale do Cuiabá, Itaipava, Petrópolis Conhecendo seu território para além

2.4.3. A luta da comunidade pela reconstrução do lugar

Os moradores do Vale do Cuiabá que ficaram na região, após viverem tantos momentos difíceis, acreditavam que os órgãos públicos atuariam para reconstruírem o que foi destruído pela chuva no bairro, permitindo que as pessoas que quisessem voltar a viver ali o fizessem com dignidade.

Todavia, não foi o que ocorreu. O Estado do Rio de Janeiro, através de vários órgãos, EMOP, CASA CIVIL, INEA, criaram inúmeras necessidades de obras e retiradas de áreas de risco e gastaram, até dezembro de 2013, cerca de 63 milhões com obras na calha dos rios Carvão e Cuiabá. Identificaram 193 famílias como moradores de áreas de risco, negociando com 124 famílias, num montante de R$ 4.206.625,56, e apontando a necessidade de construção de 54 unidades habitacionais. Em fevereiro de 2014, foram entregues 50 unidades habitacionais.108

Moradores que, embora afetados e nitidamente em áreas de risco, que não habitavam as faixas de exclusão do INEA, não foram indenizadas ou beneficiadas por qualquer tipo de política pública. Na verdade, sua condição de invisibilidade e violação de direitos, permaneceu inalterada.

108 Informações obtidas na audiência pública, ocorrida na Câmara Municipal de Petrópolis em 2013, através da apresentação do INEA.

Nesse contexto, conseguimos acompanhar o processo luta da comunidade pela reconstrução pública e privada de territórios, de resistência passiva e ativa para manutenção do seu lugar. Atuamos como parceiros, educadores e até advogados na sistematização de documentos e na assessoria jurídica popular.

Recorrendo à reflexão da história ambiental (WORSTER, 1991), desafiamo-nos a trazer o conflito da comunidade com o poder público estadual em defesa do seu território e na produção de políticas públicas.

Foi através da organização popular, dos muitos ofícios, participação em reuniões na comunidade e com os poderes constituídos, sistematização que possibilitou reconhecer, claramente, o que tem acontecido no território do Vale do Cuiabá e o quanto o Estado tem utilizado a tragédia de 2011 para promover políticas distintas da necessidade da população, o quanto a tragédia permitiu a intervenção estatal para alterar a paisagem local e as relações com a natureza, em detrimento da territorialidade negada a população mais carente.

WORSTER (1991) ressalta que a reflexão sobre o poder de tomar decisões acerca do uso da natureza deve ser apropriada pelo historiador ambiental a fim de desvelar as situações de conflitos naturalizadas pelas formas de dominação: “O poder de tomar decisões, inclusive as que afetem o ambiente, raramente se distribui de forma igualitária por uma sociedade, de modo que descobrir as configurações do poder faz parte desse nível de análise.” (WORSTER, 1991, p. 05)

Assim, quando observamos algumas pautas de reivindicações feitas pelas comunidades, e como mesmo depois de anos estas não foram atendidas, podemos pensar que Estado tem imposto seu domínio naquele território de forma a modificá-lo de acordo com seus interesses e conveniências. Embora exista um Estado de Direito e, de certa forma, controle público e institucional, não existe força que coloque barreiras a uma atuação tão descolada da realidade e necessidade da população local.

Após 365 dias passados da ocorrência das chuvas, foi possível narrar a situação da comunidade através da representação109 apresentada pelo CDDH de Petrópolis e a Associação de Moradores ao Ministério Público Estadual. Os investimentos não foram suficientes para tornar o lugar habitável, muito menos promover a segurança necessária para o desenvolvimento da vida dos moradores. Em janeiro de 2012, destacavam-se alguns pontos que ainda não foram resolvidos, abordados a seguir.

109 A Representação apresentada ao MPE, em 13 de janeiro de 2012, foi construída coletivamente com os moradores nas reuniões semanais com a comunidade.

Nenhuma ponte havia sido construída. Foram sete pontes de carros destruídas no vale do Cuiabá: quatro no Buraco do Sapo; uma em Santo Antônio da Providencia; duas no ponto final do Vale do Cuiabá. Não há informações confiáveis sobre esta obra até 2014.

O rio foi desassoreado apenas em 2013. Mesmo assim, um trabalho questionado por muitos engenheiros, o que já foi anteriormente apresentado. Na época, a terra que foi retirada do rio foi colocada na margem do mesmo. A prefeitura contratou dragas para tirar a terra de dentro do rio e jogá-la em suas margens, num trabalho similar a “enxugar gelo”, com o agravante de continuar colocando a vida de pessoas em risco.

A única estrada restaurada foi a via principal. O bairro continua aguardando obras de infraestrutura.

Os locais em que ocorreram os deslizamentos não foram reflorestados, o trabalho de alerta de cheias não funciona.

Não houve e ainda não há qualquer política de atendimento psicossocial às famílias que perderam seus entes queridos, atendimento médico, ou qualquer outra assistência que permita cuidar dessas pessoas. O Posto de Saúde sequer foi construído. Existem muitos casos de depressão (adulta e infantil), doenças crônicas agravadas, todas sem um atendimento direcionado para reduzir os danos da tragédia.

Não existe assessoria jurídica nas questões previdenciárias, fundiárias ou referentes às indenizações.

Desde a época do primeiro cadastramento, moradores vêm denunciando irregularidades: famílias que não foram atingidas estão recebendo benefícios: pessoas estão recebendo aluguel e morando na casa destruída; outros que estão recebendo o benefício e alugando a casa, que deveria estar desocupada, para terceiro, enfim, desvios de toda ordem.110

A população não conseguiu até hoje ter entendimento do que foi apresentado como prestação de contas e muito menos sobre as definições de prioridade por parte dos poderes públicos.

Em 09 de janeiro de 2013, foi ao ar uma reportagem da Inter TV, afiliada da Rede Globo, relatando a situação do Vale do Cuiabá, demonstrando o completo abandono desses últimos anos. A jornalista procurou o Estado do Rio de Janeiro, através da Emop (Empresa de

110 Depois de muitas denúncias ao MPE, que deram início a inquéritos civis de investigação das práticas do INEA, o órgão estadual tem se colocado como impossibilitado de atender às demandas da sociedade. Os inquéritos deram azo a dois processos judiciais.

Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro) e este afirmou que as casas estariam prontas em Junho de 2013.

Na reportagem, também foi ouvido o Secretário de Meio Ambiente da atual gestão do prefeito eleito, Rubens Bomtempo, e este afirmou que será criada uma secretaria especificamente para atuar no Vale do Cuiabá e recuperar o bairro em todos os sentidos. Seria dada prioridade ao acompanhamento do Estado do Rio de Janeiro e à reconstrução das casas populares.

Ainda na semana da reportagem televisiva, o Jornal o Globo de 05 de janeiro de 2013, trouxe uma matéria sobre a reação lenta às tragédias. Os jornalistas Fábio Vasconcellos e Luiz Ernesto Magalhães fizeram um levantamento no Portal da Transparência, da Secretaria Estadual de Fazenda, e verificaram indícios que, do total de R$ 600 milhões para serem aplicados em 2012 no programa “recuperação de localidades atingidas por catástrofes”, apenas R$ 198 milhões foram usados. A região serrana teve utilizado em obras R$ 175 milhões dos R$ 505 milhões liberados para reconstrução das áreas atingidas.

A Secretaria Estadual de Obras manifestou-se em nota, afirmando que o “percentual liberado para o programa mencionado não está necessariamente relacionado ao percentual de execução física das obras: “Isto porque os valores os valores liquidados refletem medições de obras apresentadas pelas empresas contratadas. Entretanto, há serviços executados para os quais as empresas ainda não apresentaram documentação técnica e fiscal pertinente.”

Como bem falaram os jornalistas, no Portal da Transparência aparecem alguns indícios do que pode estar acontecendo. São muitas siglas, nomes de programas, divisões em secretarias que dificultam visualizar o que realmente está acontecendo. O que sabemos é que, embora milhões tenham sido gastos, liberados, projetados e todas as alíneas que puderem inventar, este dinheiro não proporcionou uma melhoria na região e na qualidade de vida da população atingida.

A saga da execução de políticas no Vale do Cuiabá prossegue com intervenções jurídicas, audiências públicas, muitos recursos investidos inadequadamente, processos judiciais e uma Comissão de Acompanhamento das Obras decorrentes das chuvas que se reúne há mais de três anos.

Mas há um acúmulo em conquistas sociais que não podem ser negadas neste período: a maioria dos moradores que necessitavam do aluguel social foram beneficiadas; houve 75 casas reconstruídas no Vale do Cuiabá, denominadas Cuiabá I; todas as obras necessárias

estão planejadas e em processo de execução; as mobilizações fortaleceram a consciência política e a participação dos moradores.