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CAPÍTULO II O lugar do desastre e da incidência das políticas públicas

3.1 Políticas Públicas e Participação Popular

3.1.1. A análise das políticas públicas e o enfrentamento da política

O campo de reflexão sobre políticas públicas vem crescendo dentro da ciência política em interlocução com vários ramos das ciências sociais, com uma metodologia própria por considerar as nossas características políticas e fragilidades burocráticas na constituição de nossa forma organizativa de Estado.

ROMANO (2009), na introdução de seu livro, ressalta a importância da produção da política nas políticas públicas, pois esta define os problemas e soluções das questões vivenciadas pela sociedade dentro de um contexto de disputas de interesses. Assim, podemos dizer que “políticas públicas poderiam ser entendidas como ações ou propostas – promovidas principalmente pelos governos – de regulação dos múltiplos problemas e contradições que afrontam as sociedades contemporâneas.” (ROMANO, 2009, p. 13)

Toda política pública requer um processo de definições de prioridades e alocação de recursos, ensejando num processo conflituoso de interesses entre atores do Estado e da sociedade civil, tendo em vista que as opções feitas pelos governos estão enraizadas em valores, paradigmas e ideias, às vezes, divergentes das lógicas familiares, mercantis e associativo-comunitárias.

Para ROMANO (2009), é preciso entender a política dentro da produção da política pública. Para tanto, há que se iluminar as contradições que se apresentam na expressão de diversos atores da sociedade civil e do mercado na priorização de alocação de recursos. Ampliar a conceituação clássica de política pública que afirma ser “a análise do Estado em ação” (JOBERT E MULLER,1987), para entendermos a atuação dos governos, em interação com atores da sociedade civil e mercado: por que escolhem fazer ou deixar de fazer, quem se beneficia com as escolhas, o que muda com elas.

A reflexão desses conflitos na concepção e execução da política pública nos leva a questionar também as instituições114 e suas formas organizativas onde o processo opera, “entendendo-o como um espaço social no qual se concentra um grande número de padrões de

114 Apoiamo-nos conceitualmente na definição ampliada utilizada por ROMANO (2009), para ser entendida “tanto como um conjunto de pautas de atividades supraorganizativas, através das quais os seres humanos regem sua vida material no espaço e no tempo, quanto como um conjunto de sistemas simbólicos que servem para categorizar essas atividades e atribuir-lhes significado (Alford e Friedland, 1991 apud Romano, 2009, p. 14)

comportamento coletivo. Implica em interrogar sobre como e em que grau a distribuição de poder nas unidades do Estado e da sociedade distorce-se em poder burocrático, o qual, ao surgir, interfere na consecução dos objetivos do governo inicialmente estabelecidos. Faz-se necessário discutir acerca da luta das principais forças sociais para impor um projeto de direção ideológica ao Estado e à sociedade (Torres, 1998, p. 119). Cabe também indagar sobre os atores envolvidos nos processos – governamentais ou não – de alocação pública, suas preferências, recursos, estratégias, a intermediação dos seus interesses, as relações pessoais e institucionais que se estabelecem, a interpretação de interesses privados e públicos, a cooperação e/ou conflito resultante. Envolve, enfim, compreender as relações entre um nível micro de análise – como este do papel dos interesses privados e do governo no contexto de decisões políticas particulares – e o nível macro da distribuição de poder na sociedade” (ROMANO, 2009, p.14)

Embora o contexto neoliberal tenha propiciado um afastamento da política pela administração, esse deslocamento significa uma perda de sentido e de conteúdo governativo, desaparecendo a relação do governo com a sociedade e o mercado. (p. 17)

O Estado desenvolvimentista, promotor da industrialização e do crescimento econômico no Brasil desde a década de 30 (FIORI, 1992), a partir da década de 1980, e principalmente a partir da década de 1990, vai se transformando num Estado Neoliberal, em que o Mercado se torna o principal motor da economia e das relações sociais, afastando a gestão estatal das políticas públicas para todos para se tornar o agenciador das políticas públicas do mercado115.

Segundo CARINHATO (2008), das Reformas de Estado implementadas pelo Governo de Fernando Henrique Cardoso, o Estado brasileiro foi assumindo um Estado gerencial, em que as linhas do desenvolvimento econômico deveriam estar nas mãos da iniciativa privada. A transferência de serviços públicos para entidades civis privadas também são efeitos de um sistema que vem tentando reduzir o papel do Estado e afastar as disputas políticas em torno das prioridades das ações políticas. A redução do Estado provedor dos direitos sociais, por confiar na competitividade econômica como produtora de riqueza e distribuição da mesma, vem dificultando o acesso a direitos e à promoção das políticas públicas redutoras de

115 Reforçamos a ideia de que o neoliberalismo não é a ausência do Estado na economia, mas a readequação de sua atuação, voltada prioritariamente para garantir o mercado em benefício de algumas ideias e grupos sociais. Retomamos a análise de Braudel (1985), que afirma não existir capitalismo e mercado sem Estado e que, portanto, este é imprescindível para o desenvolvimento deste modelo econômico e para a obtenção de lucros por alguns grupos.

desigualdades sociais. O modelo neoliberal aumentou a miséria, excluiu mais pessoas dos benefícios do desenvolvimento e fez o Estado brasileiro ainda mais ineficaz na promoção de políticas públicas sociais. Segundo o autor:

A escolha por políticas sociais focalizadas, pelo racionamento dos gastos, pela redução da responsabilidade do Estado enquanto provedor de direitos sociais básicos à população foram corolários direitos da negação de uma política social inclusiva, a qual se mostra como única resposta razoável em um país de milhões de miseráveis que, durante o governo FHC, passaram a depender uma ajuda monetária relevante enquanto forma de mantê-los vivos, porém ínfima em relação a um modelo que buscasse a emancipação da extrema pobreza que os acomete. (CARINHATO, 2008, p. 45)

Reconhecer a ação política das políticas públicas e não considerá-las como mera ação administrativa é visualizá-las como produto de um complexo processo político em que devem ser consideradas questões tradicionais da Ciência Política: “como se distribui o poder; em que consiste o conflito; e quem ganha e quem perde com cada alternativa política.” (ROMANO, 2009, p. 19)

Nesse contexto, embora se possa identificar o Estado como não homogêneo116, capaz de vivenciar disputas políticas dentro de sua constituição, a priorização do Estado neoliberal em gerir a capacidade da iniciativa privada em obter negócios e lucros deve ser considerada nesta análise. Um Estado que gerencia o mercado é ineficiente em realizar políticas sociais, silenciando vozes e grupos que estão fora do mercado.

GRISA (2011) contribui na construção do quadro analítico da política pública de reconstrução de moradia para os afetados em desastres socioambientais ao trazer a sistematização da produção acadêmica na Europa e Estados Unidos acerca da abordagem cognitiva das políticas públicas e sua expressão em diferentes perspectivas analíticas.

A abordagem cognitiva concebe a política como “resultado de interações sociais que dão lugar à produção de ideias, representações e valores comuns” (GRISA, 2011, p. 93) Dentro dos quadros analíticos apresentados pela autora, os aspectos comuns que reforçam a abordagem cognitiva são:

“a) as ideias não são consideradas como simples justificações posteriores da ação, pelo contrário, elas fazem parte do processo de produção das políticas públicas e são vetores e garantias de alianças, cumplicidade e conflitos

116 O Estado dentro de um contexto de Estado ampliado de Gramsci (2000), em que a sociedade civil é incorporada a essa superestrutura, por disputar as ideias e formas de atuação.

presentes em toda ação pública; b) as ideias dizem respeito a representações mais ou menos partilhadas da questão pertinente, da sociedade e do Estado; e c) as mudanças nas políticas públicas são compreendidas como transformações nos elementos cognitivos e normativos característicos de uma política, de um problema ou de um setor de intervenção específico.” (GRISA, 2011, p. 131)

A análise das políticas públicas como narrativas ou discursos são compreendidas como argumentações consideradas “verdades” que podem influenciar o decorrer da política. As narrativas dão contorno aos problemas sociais e acessibilidade à ação humana, sugerindo um conjunto de ações em vez de outras, e ligando o passado ao futuro: “Se o cenário apocalíptico for convincente e ações são executadas, então a incerteza científica converte-se em certeza política.” (GRISA, 2011, p. 127)

Construída pelos atores como recurso a ser utilizado na disputa de interesses, uma vez escolhida como narrativa dominante, esta “constrange as escolhas e reorienta preferências” (GRISA, 2011, p.127). A autora esclarece: “é importante considerar a narrativa pelo que ela não diz, ou seja, o poder que tem de reduzir o silêncio às narrativas concorrentes. Uma narrativa dominante age como um prisma conceitual que obscurece as possibilidades de ações alternativas.” (GRISA, p. 127-128)

Embora não deva ser considerada isoladamente, a análise das narrativas pode nos ajudar a entender como se constrói a legitimidade da intervenção do Estado nos territórios fragilizados pelos eventos naturais, cerceando a população de uma série de direitos.

Pesquisadores de políticas públicas afirmam que nossa tradição é analisar resultados que, em sua maioria, são produzidos pelo aparato estatal. Tanto ROMANO (2009) quanto GRISA (2011) apontam para a reflexão da forma como estão sendo pensadas as políticas e suas consequências. O resultado é decorrente do público a que a ação de governo pretendeu beneficiar. ROMANO (2009) chama a atenção à produção da política e, GRISA (2011), acerca da necessidade de se perceber as crenças, ideias, discursos, enfim, as múltiplas abordagens em que o debate cognitivo pode contribuir.

Os referenciais teóricos trazidos pelos autores nos interessam porque na reflexão da política de reconstrução das moradias para os afetados pelas chuvas de 2011 no Vale do Cuiabá, pretendemos nos concentrar não só nas moradias, mas nas mudanças territoriais ocorridas em decorrência da execução das políticas. Desafiamo-nos a explicitar as ideias que circularam em torno do debate, os discursos, as crenças e também dar visibilidade às

contradições e conflitos de interesses existentes. O resultado pode nos ajudar a reconhecer as opções políticas da política, e quem foi definido como público beneficiário.

Na atuação do Estado é preciso esclarecer qual a interação do governo com a sociedade civil e o mercado, definindo de que sociedade civil estamos falando, quem são os atores que estiveram disputando essa produção da política. Neste contexto, qual o grau de poder dos afetados nas definições da política e na execução das mesmas. Dentro das definições estratégicas de execução da política, é preciso saber quem se beneficia com elas e o que muda a partir delas. E ainda, como a burocracia foi desenvolvida na produção da política de reconstrução das moradias.

3.1.2 Direito Constitucional Administrativo: princípios que regem os atos