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CAPÍTULO II O lugar do desastre e da incidência das políticas públicas

2.5. Síntese conclusiva

O presente capítulo buscou apresentar o conflito de interesses diante da análise do ocorrido em 11 de janeiro de 2011. Tentamos desvelar as disputas pela concepção de meio ambiente e a relação das comunidades pobres com seu meio e, também, como são utilizados os conhecimentos técnicos para justificar intervenções no meio ambiente, que não necessariamente provocarão melhorias na qualidade de vida da população.

O discurso técnico tem sido utilizado para justificar as remoções nas áreas que são apontadas como de risco, por serem áreas de proteção ambiental, estigmatizando esse público ocupante como responsável pelos desastres socioambientais ocorridos.

A visão dos moradores, seus saberes, não foi contemplada pelos diversos estudos realizados após o evento extremo. Também não foi dada nenhuma atenção pelo Estado aos “saberes técnicos” que discordavam de sua metodologia de trabalho, demonstrando que havia uma política a ser executada independentemente da realidade local, dos saberes locais. Ou seja, fecharam os olhos para o entendimento de que o discurso técnico atende a interesses e que não se trata de um “melhor conhecimento”, mas daquele que pode ser utilizado para justificar os interesses dos grupos sociais no poder.

Os moradores, embora se mantivessem em resistência, com reuniões, manifestações, denúncias, não tiveram condições de intervir no discurso produzido. A consequência é a produção de inúmeros materiais a serviço do Estado que desconsideram as questões sociais envolvidas, a relação dos moradores com a natureza, a fragilidade de acesso a direitos, criando, assim, uma situação de criminalização da pobreza, de precariedade de direitos e de remoção de famílias, desconsiderando a história do local, seu processo de ocupação.

No próximo capítulo, pretendemos demonstrar que não houve uma política de reconstrução de moradias e de território, mas sim uma política de remoção, divergente dos interesses locais.

CAPÍTULO III – A INTERVENÇÃO DO INEA/RJ NO VALE DO CUIABÁ – UMA POLÍTICA DE RECONSTRUÇÃO OU DE REMOÇÃO?

O presente capítulo pretende fazer uma análise da política pública de intervenção do Estado do Rio de Janeiro na reconstrução do Vale do Cuiabá, município de Petrópolis, RJ.

Partindo do conceito de políticas públicas, desafiamo-nos a conhecer as políticas nacionais de proteção e defesa civil, a política nacional de habitação e sua relação com o Programa Minha Casa Minha Vida, para depois refletir como os princípios públicos propostos em Leis Federais estão sendo implementados no local onde a política deve incidir, e qual o grau de participação e mobilização da população, mais precisamente, no processo de reconstrução do Vale do Cuiabá.

Nossa hipótese é que, em nome de uma política de reconstrução, fora desenvolvida uma política de remoção, com o cadastramento de 193 famílias que deveriam sair da faixa marginal do rio Cuiabá, sendo 50 beneficiadas por unidades habitacionais e as demais por indenizações financeiras. As famílias atingidas pela enchente que estavam fora da área de exclusão do INEA não tinham previsão de atendimento, embora algumas tenham sido atendidas em razão da pressão social.

A execução de uma política pública requer a mediação legal para intervenção do Estado. Se o que rege nossa democracia é o Estado Democrático de Direito, a obediência ao princípio da legalidade é fundamental. Esforçamo-nos a compreender o aparato legal que sustenta a intervenção do INEA nos territórios, bem como se realiza a materialidade de seus atos. Ou seja, de que forma suas decisões são fundamentadas, como é garantido o direito de se opor, de argumentar contrariamente as decisões do Estado. Essas capacidades são chamadas de princípio do devido processo legal, contraditório e ampla defesa.

Vale ressaltar que, desde o evento natural de 2011, algumas ações foram implementadas pelo município como limpeza da lama, socorro e assistência, em parceria com o Estado. Assim como o próprio Estado, através de muitas secretarias, promoveu o pagamento do Aluguel Social, desassoreamento dos rios, obras de infraestrutura, mas nossa grande questão é a política de moradia, fundamentada na pergunta que circulou a região por três anos: quando a casa sai? Para nós, mais do que a casa sair é como ela saiu, de que forma foi construída e quais os conflitos que estavam presentes na defesa do direito à moradia.

GINZBURG (1989) desafia o pesquisador a utilizar o faro, o golpe de vista, a intuição para que se possam desvelar as informações necessárias às descobertas mais relevantes dos problemas e fenômenos sociais a partir de um objeto de análise que, aparentemente, não revelaria essa dimensão totalizadora do conhecimento. Para o historiador italiano,

“se as pretensões do conhecimento sistemático mostram-se cada vez mais como veleidades, nem por isso a ideia de totalidade deve ser abandonada. Pelo contrário: a existência de uma profunda conexão que explica os fenômenos superficiais é reforçada no próprio momento em que se afirma que um conhecimento direto de tal conexão não é possível. Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios, que permitem decifrá- la.” (GINZBURG, 1989, p. 127)

Em nossa pesquisa, o acesso a documentos produzidos pelo Estado e até mesmo entrevistas com gestores públicos foi prejudicada. Os documentos, porque não existiam, e as entrevistas111, porque abordavam um assunto complexo que exigia um comprometimento do gestor público. Em anos de pesquisa, não identificamos um procedimento administrativo112 que desse direito a um cidadão de se opor à determinação de área de risco e remoção.

As dificuldades vivenciadas não prejudicaram o objeto de análise, pois expressam as fragilidades das políticas públicas e da burocracia governamental em lidar com um espaço de produção do conhecimento, que podemos chamar de campo acadêmico113, e a dificuldade de apresentar os resultados da operacionalização da burocracia para uma reflexão aprofundada:

“Em termos gerais, o predomínio das burocracias públicas na produção sobre políticas públicas, seria resultado, mais que do desinteresse da academia, da capacidade de financiamento – como já foi apontado – e do virtual monopólio dessas burocracias, no que se refere ao acesso aos dados sobre o tema, com a difusão de banco de dados pela internet, tem melhorado o acesso, mas o padrão predominante continua sendo a falta de transparência na produção e difusão de dados, com sua apropriação por consultores e instituições. (Melo, 1999, p.66 apud Romano, 2009, p. 127)

111 Conseguimos entrevistar duas pessoas no Ministério das Cidades, três no Ministério da Integração Nacional e a equipe do trabalho social do INEA de forma coletiva, também o Secretário de Habitação de Petrópolis em 2012 e muitos moradores. Agradecemos imensamente o diálogo e troca de informações desses servidores públicos.

112 Procedimento administrativo é um processo instaurado pela administração pública visando intervir no direito de seus administrados. É regido pela Lei 9.784/99 e deve garantir os direitos da Constituição Federal, sob pena de nulidade do processo e da intervenção estatal na supressão ou reconhecimento de direitos.

113 Conceito desenvolvido por Bourdieu (2005) e utilizado por Romano (2009, p. 21): “Um campo científico se define, assim, por elementos com relações de poder, capitais em disputa, posições e tomada de posição, debates, instituições, publicações periódicas, e controle de recursos de pesquisa e de processos de legitimação.”.

ROMANO (2009) reflete sobre as análises de políticas públicas realizadas no Brasil para demonstrar ser um campo de conhecimento ainda incipiente, pelas razões acima demonstradas.

Com alguns aportes teóricos trazidos pelo autor e outros, pretendemos resgatar o debate político acerca das escolhas feitas pelos gestores e analisar a execução da política dita como de reconstrução pelo Estado do Rio de Janeiro.

O capítulo está dividido em 6 partes: a primeira trata das políticas públicas e participação popular, passando pelos procedimentos legais que devem ser orientados no Brasil, no intuito de traçar um panorama dos espaços de disputa das políticas e o desafio da participação social.

Nos segundo e terceiro tópicos, analisamos a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil e sua relação com a questão habitacional. Como a reconstrução após os desastres socioambientais devem estar vinculados à política urbana e não serem pensados em separado, vez que fazem parte de um mesmo processo social excludente e violador de direitos, notadamente o da moradia. O Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) deve ser analisado neste contexto, já que é o único instrumento nacional com aportes financeiros para construção de unidades habitacionais no contexto dos desastres.

A quarta parte aborda a atuação do Estado do Rio de Janeiro na reconstrução do território do Vale do Cuiabá e os atores envolvidos. A narrativa do conflito de interesses entre o executor da política pública e os beneficiários, sendo ressaltados os espaços institucionais de conflito e os múltiplos instrumentos de acompanhamento pela sociedade civil, as violações de direitos humanos e suas consequências.

No quinto tópico, falamos da judicialização do conflito em torno da reconstrução das moradias, da atuação da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e também do Ministério Público Estadual, com o objetivo de apresentar ao leitor a maior integralidade possível dos fatos ocorridos. A luta política no Judiciário expressa uma parte do conflito e as dificuldades encontradas pela população de verbalizar suas necessidades e obter respostas concretas para atender as suas necessidades.

Por fim, no tópico seis, apresentamos algumas considerações num esforço de coesão das múltiplas percepções de análise.