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CAPÍTULO II O lugar do desastre e da incidência das políticas públicas

3.1 Políticas Públicas e Participação Popular

3.1.2. Direito Constitucional Administrativo: princípios que regem os atos

Essa introdução de direito administrativo tem a intencionalidade de guiar os leitores também para uma visão mais técnica do direito, por interpretações doutrinárias majoritárias e de conhecimento de qualquer servidor público ou operador do direito. Escolhemos os livros quase que obrigatórios para a formação jurídica, também para demonstrar que, quando estamos falando de ilegalidades, arbitrariedades, não estamos falando de nada que seja muito oculto ou que merece grande conhecimento jurídico, mas de afronta ao que há de mais básico ao Estado Democrático de Direito.

Na evolução histórica dos direitos humanos, vimos que a materialidade das normas em leis, regras que fossem comuns a todos, foi um avanço para a sociedade, pois expressa as conquistas da classe trabalhadora contra a opressão e arbítrio do Estado e da classe dominante.

Ao falarmos de política pública, remetemo-nos à Constituição Federal de 1988 e suas regras e princípios aplicáveis a todos os entes federativos. Os princípios são ditames conceituais que visam

“orientar a ação do administrador na prática dos atos administrativos e, de outro lado, a garantir a boa administração, que se consubstancia na correta gestão dos negócios públicos e no manejo dos recursos públicos (dinheiro, bens e serviços) no interesse coletivo, com o que também se assegura aos administrados o seu direito a práticas administrativas honestas e probas.” (AFONSO DA SILVA, 2006, p. 666).

Os princípios da Administração Pública explicitados no artigo 37 da Constituição Federal são o da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Os que se extraem dos incisos e parágrafos são os da licitação, prescritibilidade dos atos ilícitos administrativos e o da responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público. O principio da finalidade está implícito ao da legalidade. (AFONSO DA SILVA, 2006, p. 666).

A legalidade é um principio constitucional que trata das garantias individuais, dos direitos individuais da pessoa humana contra o arbítrio, bem como dos princípios que norteiam a administração pública. Portanto, ele pode ser identificado no artigo 5º e 37 da Constituição Federal. São considerados como direitos humanos porque tratam da liberdade humana, da possibilidade de viver sem intervenção do Estado na vida dos cidadãos, que não em favor de um bem público fundamental e mediante regras e ponderações.

Os atos administrativos que desconsiderem os princípios constitucionais administrativos são nulos e podem ser assim revisadas pela própria administração pública ou através de uma decisão judicial. A análise de políticas públicas por juristas permite o exercício da preocupação com a política foi desenhada, como foi materializada em atos administrativos e se estes são consoantes com a Constituição Federal de 1988. Trata-se de uma preocupação com as garantias individuais e coletivas da sociedade. Sem esse respeito, as violações de direitos são recorrentes, porque não há uma universalidade de atuação do Estado. Saber o que acontece, participar e reconhecer a ação do Estado são elementos fundamentais da cultura de direitos.117

O princípio da legalidade significa dizer que todas as atividades administrativas devem ser autorizadas por lei. Sem isso a atividade é ilícita. (CARVALHO FILHO, 2003, p. 13). Este princípio é o consagrador do Estado de Direito, garantidor dos direitos em face do arbítrio.

O princípio da impessoalidade, que também pode ser expresso como princípio da isonomia, tem a intenção de exigir dos agentes públicos a igualdade de tratamento para com os administrados. Aqui também se reflete o princípio da finalidade, pois a decisão administrativa somente deve alcançar o interesse público. Ou seja, entre uma atividade e um fim deve existir uma norma entre ambos que estabeleça o nexo necessário. (CARVALHO FILHO, 2003, p. 14)

117 Cultura de direitos que vem de uma educação em direitos humanos em que se reconhece os limites do Estado diante do cidadão e também a capacidade de se avançar na efetivação do bem estar social e da dignidade da pessoa humana. (BENEVIDES, 2003)

O princípio da moralidade tem a intenção de coibir atos que agridam a administração pública e o senso comum. Ela possui vários efeitos jurídicos, como nos casos de improbidade administrativa ou de lesão ao patrimônio publico, e permite responsabilizar os gestores públicos civil e criminalmente por seus atos.

O princípio da publicidade indica que os atos devem ter a mais ampla divulgação, devem ser de conhecimento de todos e da forma mais facilitada possível.

O principio da eficiência ou da qualidade do serviço prestado tem a intenção de conferir direitos aos usuários de serviços públicos. Diz respeito a forma como uma política deve ser executada, zelando-se pelo bom atendimento, realizado de forma perita, responsável e prudente.

Além dos princípios constitucionais, a administração pública se orienta por outros princípios de igual relevância: princípio da supremacia do interesse público; da autotutela, que restaura as situações de irregularidade cometidas; da indisponibilidade, que zela pelos bens públicos; da continuidade dos serviços públicos; da razoabilidade, daquilo que se situa dentro dos limites aceitáveis; da proporcionalidade, que visa limitar o excesso de poder.

O princípio da proporcionalidade merece destaque para nossa pesquisa, pela explicação do próprio jurista Carvalho Filho (2006):

“para que a conduta estatal observe o princípio da proporcionalidade, há de revertir-se de tríplice fundamento: 1) adequação, significando que o meio empregado na atuação deve ser compatível com o fim colimado; 2)

exigibilidade, porque a conduta deve ter-se por necessária, não havendo

outro meio menos gravoso ou oneroso para alcançar o fim público, ou seja, o meio escolhido é o que causa menor prejuízo possível para os indivíduos; 3)

proporcionalidade em sentido estrito, quando as vantagens a serem

conquistadas superarem as desvantagens.” (CARVALHO FILHO, 2006, p. 25)

A burocracia criada pelo Estado deve garantir o cumprimento desses preceitos que são direitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, garantidos em Constituição Federal e permitem que o cidadão em conflito com o Estado possa se proteger e fazer valer os seus direitos.118

Ainda como introdução ao Direito, parece relevante para a nossa tese o tema da construção das leis. O princípio da legalidade deve ser fundamentado em leis produzidas em

consonância com as regras constitucionais de produção do nosso ordenamento jurídico: Leis, Decretos, Portarias. Há uma hierarquia de normas e formas que devem ser seguidas.

A relevância desse conteúdo se justifica porque, como veremos mais adiante, os Decretos expedidos pelo Governo Estadual para amparar o direito à legalidade violado há tempos não se fundamenta nas leis nacionais e, muito menos, em leis estaduais. No Estado, as políticas nacionais que tratam de proteção e defesa civil e de reconstrução de moradias para os afetados se transformam em remendos que permitem uma atuação descomprometida com a fiscalização e a defesa dos direitos do cidadão em face do Estado.

O Decreto é um ordenamento proposto pelo Executivo e deve, sempre, estar vinculado a uma Lei do mesmo tema. Quem legisla é o legislativo. Cabe ao Executivo estabelecer critérios para o cumprimento da Lei e, por isso, a Constituição autorizou a edição dos Decretos. Quando o Executivo cria Decretos legislando o que lhe convém, está violando o equilíbrio entre poderes e realizando ações que deveriam ser praticadas pelo Poder Legislativo.

Ademais, as leis não retroagem no tempo quando geram prejuízos a terceiros. Trata-se do respeito ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito. A ideia de que vários cidadãos pudessem ter amparos legais distintos, ferindo a igualdade, a isonomia entre as partes, foi repudiada pelo direito pelo menos desde a Revolução Francesa. Mas o que veremos é uma temporalidade confusa e usurpadora de direitos.

A pesquisa apontou que a burocracia criada pelo Estado na execução das políticas públicas não favoreceu o respeito aos direitos individuais contra o arbítrio do Estado, conforme aqui demonstrado. Há pelo menos duas ações judiciais, sobre as quais falamos mais adiante, que visam restabelecer esses direitos violados. Ao contrário, mostrou-se que as normas legislativas mais consolidadas nas práticas jurídicas para os afetados foram totalmente desconsideradas: não existem procedimentos administrativos, ampla defesa, contraditório e sequer desapropriação das áreas que foram removidas. Tudo feito à margem da lei, à margem da justiça, à margem da estabilidade social.

Se vivemos em um Estado Democrático de Direito, com regras claras de limitação do poder do Estado sobre os cidadãos, garantidas na Constituição Federal, por que assistimos, no decorrer desta pesquisa, a postura arbitrária do Estado do Rio de Janeiro diante dos afetados pelos desastres socioambientais no Vale do Cuiabá em 2011? A possibilidade de utilização da lacuna do direito, da exceção que justifica a ordem, prevista no próprio Estado de Direito, talvez seja uma explicação a esse fenômeno social.

Agamben (2004) nos ensina que muito das tradições jurídicas dividem o Estado de Exceção para inseri-lo no âmbito do ordenamento jurídico ou exterior a esse ordenamento, como um fenômeno essencialmente político ou extrajurídico (p. 38). Todavia, a compreensão do problema do Estado de Exceção pressupõe sua correta localização, percebendo que a suspensão da norma não implica em sua abolição e nem a destituição de relações jurídicas. Trata-se de um fenômeno interno às ordens estabelecidas.

“Na verdade, o estado de exceção não é exterior nem interior ao ordenamento jurídico e o problema de definição diz respeito a um patamar, ou uma zona de indiferença, em que dentro e fora não excluem mas se indeterminam. A suspensão da norma não significa sua abolição e a zona de anomia por ela instaurada não é (ou pelo menos, não pretende ser) destituída da relação com a ordem jurídica. Donde o interesse das teorias como a de Schimtt, transformam a oposição topográfica em relação topológica mais completa, em que está em questão o próprio limite do ordenamento jurídico. Em todo caso, a compreensão do problema do estado de exceção pressupõe sua correta localização (ou sua deslocalização). Como veremos, o conflito a respeito do estado de exceção apresenta-se essencialmente como uma disputa sobre o locus que lhe cabe.” (AGAMBEN, 2004, p. 39)

O Estado de exceção pode existir dentro do Estado Democrático de Direito e para um grupo social segregado, excluído dos benefícios da sociedade contemporânea, do modelo de desenvolvimento econômico, ou, por outras palavras, para aqueles em que o Estado, o Capital, o Mercado, definiu que não vigeriam as leis consideradas para todos.

O Estado de Exceção119 permitiu e permite todo o processo de remoção de famílias afetadas pelos desastres socioambientais no país, porque existe um consenso social de negar aos grupos sociais menos favorecidos quaisquer direitos, sejam eles contra as violências do Estado, sejam direitos sociais da dignidade da pessoa humana. Há uma projeção de realidade, em que a aparência de sociedade democrática instaura instrumentos legais e estruturas de execução de políticas, mas que uma vez questionada remete à dura realidade da violência institucional em sua veia mais cruel.

Nesse contexto, quando falamos das leis vigentes que deveriam ser aplicadas para as famílias afetadas pelos desastres socioambientais na região serrana em 2011, chamamos ao

119 Aqui trazemos mais uma vez um conceito de Agamben (2004, p. 63) como:“a abertura de um espaço em que aplicação e norma mostram sua separação e em que uma pura força de lei realiza (isto é, aplica desaplicando) uma norma cuja aplicação foi suspensa. Desse modo, a união impossível entre norma e realidade, e a consequente constituição no âmbito da norma, é operada sob forma de exceção, isto é, pelo pressuposto de sua relação. Isso significa que, para aplicar uma norma, é necessário, em última análise, suspender sua aplicação, produzir uma exceção.”

leitor a desnaturalizar a prática adotada não só por gestores públicos, mas também por membros do poder judiciário e executivo, que assistem passivamente as violações rotineiras em desfavor dessa população em “nome da vida”. Vida que soa como uma caricatura para um povo que teima em existir.

Lutar pelos direitos humanos em favor dessas famílias passa por reconhecer o direito a um processo, a uma indenização, a um atestado de óbito, a informações jurídicas corretas, a ser atendido por um servidor público e não por um contratado terceirizado que desconhece o problema, a exercitar a cidadania no sentido de usufruir os direitos consolidados na Constituição Federal e demais instrumentos legais.

O debate sobre a legalidade favorece a confirmação da nossa hipótese do processo de remoção vivenciado pelas famílias e reforça nosso olhar de acesso a direitos como instrumentos importantes para a redução dos desastres socioambientais.