• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II O lugar do desastre e da incidência das políticas públicas

2.4. Vale do Cuiabá, Itaipava, Petrópolis Conhecendo seu território para além

2.4.2. O dia 11 de janeiro de 2011

A tragédia aconteceu em 11 de janeiro de 2011. A destruição foi total. É como se um dilúvio tivesse caído exatamente em cima do Vale do Cuiabá. Em algumas horas, choveu 145 mm de água. Como a água caiu por muitas horas em cima do mesmo lugar, o barro foi descendo, as árvores, e o rio foi enchendo muito rápido.

O relatório feito pela Equipe da Universidade Federal de São Carlos, a partir do pleito do Conselho Federal de Psicologia, “Abandonado nos desastres” (VALENCIO, 2011), faz referência a Valverde et al. (2011: 2-3), trazendo a narrativa meteorológica dos acontecimentos no dia do evento:

“(...) poderemos resumir a cadeia de acontecimentos da seguinte forma: 1. Precipitações continuadas, entre o final de dezembro de 2010 e janeiro de 2011, em grande parte da Região Serrana Fluminense, devido à expressiva ação da Zona de Convergência do Atlântico SUL (ZCAS), condicionando grande umidade antecedente e fluidificação (Solifluxão) dos solos das montanhas.

2. Precipitações de magna cópia, na noite de 11 para 12 de janeiro de 2011, sobre a linha de cumeada de parte da Serra do Taquaril, na divida de municípios Petrópolis-Teresópolis.

3. Início de movimentos de massa, na alta bacia (escorregamentos), intensamente conectados entre si, sob vigência de chuvas incessantes de alta cópia. Nesse momento, também eram atingidos Teresópolis e o Brejal. 4. Convergência de fluxos, com alta concentração de materiais fluidificados e grande viscosidade, provenientes dos escorregamentos e sobrecarregando linhas de vazão natural das encostas, que eram predominantemente cobertas por florestas artificiais, lavouras abandonadas e pastagens degradadas. Este fluxo altamente viscoso e de grande turbidez removeu notáveis volumes de solos, assim como a vegetação natural ou não, que não possui enraizamento profundo, nesta região.

5. A torrente/corrida de lama atingiu o Vale do Cuiabá, que representa uma caixa de sedimentação natural. Acompanhada de gigantesca quantidade de

troncos, blocos de rocha e outros corpos removidos e transportados com notável facilidade, pelas suas propriedades viscosas, aduzindo-se de inúmeros fluxos, provenientes da borda da bacia ela chegou ao centro da várzea. Foi neste segmento que se concentrou a maior força destruidora, com a mais relevante velocidade, em todo o seu percurso. Decorreu disso a grande quantidade de vítimas fatais e os mais expressivos fenômenos de arrasto de construções e objetos.

6. O fluxo atingiu a média e baixa bacia do rio Santo Antônio, já mais diluído e com menor velocidade, mais com grande aporte de outros caudais, tributados por outras bacias colaterais, tais como o rio Jacó e outras linhas de drenagem locais. Neste trecho, predominou a cheia lateral do rio e a inundação dos bairros marginais. (págs. 78 e 79)

Um mar de lama desceu pelo rio Santo Antônio, levando casas, carros, pessoas, deixando uma história trágica para todos os moradores e um rastro de 77 mortos e muitos desaparecidos. Os moradores relatam que foram cerca de 120 mortos. Esta diferença se dá em razão de que a declaração de morte é um instituto jurídico e só pode ocorrer após a identificação do corpo ou através de um processo judicial. O número de mortos da região serrana, e não só do Vale do Cuiabá, não condiz com os relatos locais.

Segundo o 2º Entrevistado, “a chuva começou umas 11 horas da noite, sem trégua e aumentando de intensidade. Quando foi umas 2 horas da manhã começou a encher e o pico foi umas 2 e pouco da manhã.”106.

São muitos relatos que falam de como as pessoas saíram de suas casas e conseguiram chegar na estrada ou em algum lugar seguro. As pessoas foram se juntando nas casas onde tinham abrigados. Alguns sítios abrigaram os primeiros moradores e vinham pessoas de todos os lados. Fugiam pelo mato, por montanhas. Muitos contam que foram levados pelas águas até dentro de carros. A força da água não tinha proporção com nada que tinham visto até então.

A explicação que circula é que foi uma cabeça d’água, outros, tromba d’água. Mas foi uma coisa que nunca aconteceu. “Fazia marola como um tsunami.”107. O 2º entrevistado relata: “abriu a porta e água estava passando vinte centímetros do chão. De repente veio uma onda e a água chegou à metade da janela. Só passava pedra e árvore. Assim que muitos se foram.”

A moradora, 1ª Entrevistada conta que: “minha avó viveu 104 anos e nunca ouvimos os antigos falarem de uma chuva assim”.

106 Entrevista concedida em 20/03/2012. 107 Entrevista concedida pelo 2º Entrevistado.

Todo mundo que foi atingido pela chuva estava nas margens dos rios. As casas do lado direito da estrada, longe do rio, foram pouco atingidas. O processo de ocupação da região, desde do século XIX, imprimia a ocupação das beiradas dos rios. A explicação dada pelos moradores, nas reuniões e entrevistas, da razão pela qual se construía às margens do rio referia-se ao fato desta ser uma área plana, que facilitava a construção. Nenhuma casa seguia os padrões de segurança porque era caro. A forma de construir, sem ferragem, tinha que ser em área de várzea. Assim era o procedimento tanto para os proprietários quanto para os moradores sem condição.

Além ser uma prática na ocupação da região, os moradores tinham certeza que essas áreas não eram perigosas, vez que usavam o modelo de construção adotado pelos antecessores. Os esgotos eram jogados no rio, lixo jogado no rio. Nunca tiveram saneamento básico, coleta de lixo adequada, água encanada.

Agora com a mudança no leito do rio, a descida das encostas, a nova relação com a questão ambiental não tem como se adequar a um novo modelo de construção. Precisam de ajuda para se reinstalarem. “Nada é mais como antes. Muitos amigos estão mortos, tem muita gente fora do Cuiabá que tem medo de voltar, o rio mudou. Somos pobres, ganhamos salário mínimo, se não nos ajudarem não temos como voltar.” (Entrevistado número 2)

Estar na legalidade pressupõe uma série de investimentos financeiros que a população não tem condição de arcar. Por outro lado, conforme se verá nesta tese, os investimentos públicos para a regularização fundiária, acesso a saneamento básico e regularização das demais questões ambientais também não ocorreram.

Além da criminalização da pobreza, responsabilizando o morador pela conduta ilegal de ocupação da área de risco e, conseqüentemente, por sua tragédia pessoal. O ônus de sair da situação de ilegalidade também será individualizado.

O caso dos 1º e 2º entrevistados em nossa pesquisa exemplifica bem essa situação, já que foram beneficiados com uma casa do governo de 40 metros quadrados, fora do terreno de propriedade dos mesmos, pois não possuíam condições de se adequar. O terreno tinha espaço para construção fora de áreas de proteção permanente, mas o custo da legalidade inviabilizou a ocupação. O cerceamento do uso de sua propriedade e o empobrecimento reforçado pela tragédia fez com que os afetados se sentissem felizes com o “benefício” do Estado, porque, sem essa “ajuda” não teriam nada.

A lama levou as casas, os sonhos, as possibilidades, os amigos, a segurança e deixou um mar de incertezas. Poucos conseguiram manter algum vínculo com o Vale do Cuiabá.

Muitos moradores mudaram de bairro e até de cidade por não terem onde ficar. Alguns desejam voltar, mas não obtêm informações suficientes dos poderes públicos se serão beneficiados pelas políticas de reconstrução das unidades habitacionais, se estas se localizarão no bairro. Acabam se afastando também da mobilização realizada pelos moradores que ficaram e desanimam de lutar por seus direitos, desistindo de voltar ao local que moraram, em alguns casos, por toda a vida.

Outros estão traumatizados, sem assistência médica, e percebem a relação com o lugar como um momento de dor. Também acabam desistindo de seus direitos por não quererem mais se relacionar com as lembranças do dia do evento. Se as políticas de assistência social não contemplaram os moradores que ficaram, muito menos, os que partiram. Seus traumas estão sendo revelados nos muitos casos de surtos que são contados por moradores da região. Aos moradores que ficaram coube a luta e a conquista de fazer da região um lugar habitado.