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2. Capítulo

3.2. A manutenção dos limites da ciência

Uma leitura sistemática dos desafios a serem enfrentados no Ensino Superior brasileiro não pode prescindir da constatação de que as coisas estão longe de ir bem: contenção por meio do vestibular, evasão / exclusão, falta da qualidade de ensino, ausência de estímulo à pesquisa etc. Um dos passos a serem dados para compreender tais desafios é sua consideração científica, que requer uma reflexão também sobre o próprio estudo, do quê pautar e do por quê questionar a situação se há hoje um conjunto de dados suficientes

sobre essa problemática, em condições de serem analisados cientificamente, desde que se deseje compreendê-la e superá-la, o que não tem acontecido. Uma estagnação ou uma manutenção prolongada do desvio da rota que a ciência poderia trilhar na sociedade atual ocorre porque, conforme Florestan Fernandes,

Indivíduos empenhados em manter o status quo pensam segundo critérios em que o essencial é a estabilidade da ordem. A inovação pode surgir em seu horizonte cultural como uma contingência. Já o técnico e o cientista prendem-se, intelectualmente, a uma civilização altamente dinâmica, na qual a continuidade da ordem não se liga tanto à preservação de certos controles estabelecidos. Ao contrário, o destino do homem passa a depender de sua capacidade de criar controles novos, de explorá-los e, assim, expandir os limites de poder conferidos pela herança social recebida. (FERNANDES, 1975, p. 29).

O procedimento aqui adotado busca considerar, dessa forma, outras perspectivas possíveis a partir das condições atuais de produção e reprodução da ciência que, apesar de tudo, têm sido responsáveis pela ampliação da distância entre os setores sociais que têm acesso efetivo às informações (e aos saberes) e a maioria da sociedade, cujo acesso é restringido ou negado. O monopólio dos conhecimentos produzidos pela ciência tem contribuído para perenizar esse abismo produtor e produto de desigualdade social. Por isso, é necessária a defesa do caráter social de toda a produção científica, desde os mais especializados até os aspectos mais técnicos e tecnológicos, que podem e devem estar ao alcance de todos e em condições de serem vivenciados quando necessário. Trata-se de universalizar o que de fato é universal, o conhecimento, que tem sido transformado em propriedade de poucos. Segundo Bourdieu,

As ciências sociais, as únicas capazes de desmascarar e de fazer frente às estratégias de dominação inteiramente inéditas para as quais contribuem por vezes como nutrientes e fontes de inspiração, deverão de uma vez por todas escolher entre dois partidos: posicionar seus instrumentos racionais de conhecimento a serviço de uma dominação cada vez mais racionalizada, ou, então, analisar racionalmente a dominação, em especial a contribuição do conhecimento racional para a monopolização de fato dos ganhos da razão universal. A consciência e o conhecimento das condições sociais dessa espécie de escândalo lógico e político que vem a ser a monopolização do universal sinalizam, sem equívoco, os fins e os meios de uma luta política permanente em prol da universalização das condições de acesso ao universal. (BOURDIEU, 2001, p. 102).

A sonegação total ou parcial do conhecimento produzido pela ciência tem conseqüências negativas para a sociedade, pois resulta em desequilíbrios de toda ordem (econômicos, éticos, políticos). Vale dizer, é necessário garantir a apropriação mais ampla dos saberes socialmente relevantes, que são fundamentais para o fomento de ações condizentes com as exigências de transformação do contexto histórico atual. Por certo, há quem alegue que este não é o papel da ciência, que o desenvolvimento científico e técnico alcançado por si só se justifica. Mesmo que assim fosse, é de se questionar se o estágio alcançado pela ciência tem sido suficiente no que se refere a apontar caminhos para enfrentar os desafios postos à humanidade. Sem essa perspectiva, a ciência teria chegado ao seu limite ou pelo menos estaria limitada nas atuais condições de seu desenvolvimento.

Não apenas a (re)produção do conhecimento parece estar em suspensão, mas também a (re)produção da sociedade de um modo geral. O limite alcançado está invariavelmente associado à concentração de poder, no que diz respeito às decisões políticas e econômicas, e pela destinação restrita, no que se refere aos resultados obtidos graças às riquezas geradas direta e indiretamente pelo conjunto dos trabalhadores.

É o trabalho que produz valor e propicia a constituição daqueles fatores necessários a (re)produção do conhecimento científico e técnico e da própria sociedade. O trabalho do pesquisador depende dessas condições (em especial de recursos públicos) e, de certo modo, tem agregado valores não necessariamente compartilhados. Cabe ressaltar, a destinação dos resultados do trabalho tem sido feita de uma maneira bastante singular: uma parte para a subsistência do trabalhador, outra para o rendimento dos proprietários, outra ainda maior para o lucro dos “empreendedores”, outra para a manutenção de uma burocracia destinada a se apropriar de parte considerável dos frutos do trabalho alheio e, finalmente, uma parcela para a constituição de um fundo público, alvo de constante disputa quanto à sua destinação no processo de acumulação e concentração das riquezas.

A justa distribuição da produção social é, portanto, uma grande meta, ainda que contraposta pelas idéias concebidas pelo liberalismo, acolhidas no terreno nacional justamente para prolongar a desigualdade social através da manutenção de um aparelho estatal destinado a prover políticas distintas; umas voltadas para os pobres, como polícia e sistema judiciário repressivos; e outras voltadas para os ricos, para o mercado, por exemplo,

isenção de impostos para as classes abastadas e socialização de perdas de eventuais projetos malsucedidos. O que se observa é que o valor incrementado dentro das condições estabelecidas para tal produção tem contribuído cada vez mais para a acumulação privada de uma minoria, de acordo com uma dinâmica competitiva de mercado, altamente destrutivas do ponto de vista social:

De fato, o mundo da ciência, como o mundo econômico, conhece relações de força, fenômenos de concentração do capital e do poder ou mesmo de monopólio, relações sociais de dominação que implicam uma apropriação dos meios de produção e de reprodução, conhece também lutas que, em parte, têm por móvel o controle dos meios de produção e reprodução específicos, próprios do subuniverso considerado. (BOURDIEU, 2004, p. 34).

Desse modo, não faz sentido compreender os desafios existentes no Ensino Superior, principalmente o da sua expansão, se as sus implicações ficarem restritas ao domínio de uma minoria, de técnicos e especialistas, muitas vezes dependentes do oportunismo, da barganha políticas, da convergência de fatores políticos em geral pouco favoráveis a uma compreensão que possa resultar numa mudança social consistente.

Diante de tal “multiverso tensionado”, a perspectiva deste trabalho é a busca do entendimento coletivo de medidas que, tomadas isoladamente, talvez não expressem "inovações" destinadas a manter, senão ampliar a dominação desejosa de impedir qualquer ruptura social que possa culminar em profundas transformações culturais, políticas e econômicas.

Como veremos mais adiante, o caminho trilhado até os dias de hoje no que se refere à elaboração, proposição, aprovação e implementação de políticas para o Ensino Superior no Brasil aponta ensinamentos e desafios para a superação dos entraves que ocorrem sucessivamente nas esferas legislativas, executivas e judiciárias responsáveis por barrar o ímpeto das mudanças necessárias, mas sem ser capaz de extinguí-las. A compilação de medidas relacionadas com a Educação Superior feita neste trabalho visa propiciar, portanto, uma tomada de posição a partir de seu conjunto e de seus limites, tendo em vista algumas predeterminações liberais, que podem ser superadas ou aprofundadas, o que é uma opção.

Para Smith e seus seguidores, os ditames liberais e a situação educacional alcançada ao invés de serem superados até deveriam ser aprofundados dispensando, sob um prisma

peculiar, qualquer preocupação social, por apresentarem apenas poucos e “pequenos inconvenientes”, como por exemplo, a baixa remuneração dos profissionais a ela dedicados. É emblemática a naturalidade como são vistas a falta de prestígio do professor e as condições miseráveis de trabalho na área educacional, frutos da “intocável” e “vantajosa” lei da oferta e procura:

Antes da invenção da imprensa, o único emprego em que um homem de letras podia ganhar alguma coisa pelos seus talentos era o de professor, público ou privado, pelo qual comunicava às outras pessoas os interessantes e úteis conhecimentos que ele próprio tinha adquirido. [...] Mas a remuneração normal do professor eminente não sofre confronto com a do advogado ou do médico, porque a profissão do primeiro está cheia de indivíduos que para ela foram educados a expensas públicas enquanto, nas dos outros, são muito poucos os membros que não foram educados à sua própria custa. Todavia, por muito reduzida que pareça a remuneração normal dos professores, públicos ou privados, ela seria decerto ainda menor se não tivesse sido afastada do seu mercado a concorrência daqueles homens de letras ainda mais indigentes que tem a escrita como ganha-pão. Parece que, antes da invenção da imprensa, os termos “homem de letras” e “pedinte” eram mais ou menos sinónimos. Ao que se sabe, nessa época os responsáveis pelas universidades concediam aos seus professores licença para mendigar. [...] É possível que a desigualdade que tenho vindo a referir seja mais vantajosa do que desfavorável para o público em geral. É possível que degrade até certo ponto a profissão de professor público; mas o baixo preço da educação literária constitui decerto uma vantagem que compensa esse pequeno inconveniente (SMITH, 1981, pp. 285-289).

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A degradação contínua da situação educacional se encontra sob uma tentativa de se transformar a sociedade inteira num mercado, onde prevalece a oferta e procura de tudo e de todos. Mas, tendo em vista que, na verdade, o mercado só poderia ser resultado da organização da sociedade, pretende-se atribuir a particulares a capacidade de providenciar a educação escolar, tendo o ensino como mercadoria. Ou seja, se outrora a sociedade como um todo delineava as relações dela consigo mesma e com as outras, agora pretende-se que empreendimentos, voltados somente para si mesmos, explorem e definam as relações a serem estabelecidas para o conjunto da sociedade e da humanidade na manutenção da

ordem vigente. Qualquer ameaça à ordem assim estabelecida apresenta-se como contrária a “evolução” preconizada pelo liberalismo. Mas, para a ciência nada se constitui como definitivo, nem mesmo as distorções liberais.

4. Capítulo IV