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A persistência do liberalismo e as suas conseqüências

2. Capítulo

8.1. A persistência do liberalismo e as suas conseqüências

Historicamente restrito a uma pequena parcela da população, o Ensino Superior brasileiro vinha se apresentando, no início do século XX, como fator necessário à independência cultural, política, científica da nação, apesar de não ter fomentado práticas que fossem responsáveis pela sua ampla institucionalização. Sequer chegou a ser transformado em objeto de interesse ou mesmo de pesquisa. Somente com as transformações ocorridas no início da década de 1930, bem como a amplitude e a repercussão social em torno da difusão dos ideais, princípios e propostas propagados pelo “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, de 1932, constituíram-se marcos de referência numa mudança do modo de ver e de procurar participar do “Sistema de Ensino” brasileiro, incluído o nível superior, e das políticas de um modo geral.

O início da década de 1930 constitui-se num ambiente turbulento da geopolítica e da economia nacional e internacional. O mérito do “Manifesto” de 1932, diante das instabilidades generalizadas no mundo todo, encontra-se justamente na abrangência de suas preocupações e no reconhecimento da relação entre a educação e as outras áreas sociais, mapeando desafios e demandando um maior envolvimento coletivo para seu enfrentamento e acompanhamento, inclusive antecipando questões que ainda permanecem pendentes em pleno século XXI.

O "Manifesto" pôde constituir uma referência básica na onda de discussões que vinham acontecendo, desde 1924 quando foi fundada a Associação Brasileira de Educação (ABE), considerada como uma das primeiras tentativas mais consistentes de institucionalizar a discussão sobre os problemas da escolarização nacional. Após a ABE, três Conferências Nacionais de Educação, realizadas em três importantes capitais54 do país, foram responsáveis por pressionar o Estado para levar adiante as perspectivas debatidas. Todavia, a República Velha não tinha a capacidade para implementar as modificações que vinham sendo propostas. Caberia à Revolução de 1930 apontar para o atendimento de diversas medidas que poderiam ser adotadas, a favor ou contra, as quais, posteriormente, envolveriam disputas estratégicas. Conforme Bourdieu,

Paradoxalmente, as grandes oposições taxativas acabam unindo os mesmos que se opõem através delas, visto que é preciso concordar em admiti-las para que se esteja apto a contrapor-se a seu propósito, ou, valendo-se de sua mediação, de produzir então tomadas de posição imediatamente reconhecidas como pertinentes e sensatas mesmo por parte daqueles aos quais elas se opõem e que por sua vez se lhes opõem. (BOURDIEU, 2001, p. 122).

Desde então, uma “tomada de consciência” sobre a disputa entre os defensores do setor educacional e os mais variados poderes econômicos, permitiu que o “Manifesto” de 1932 fosse discutido e repercutisse pelo país, devido a importância das questões nele tratadas e dos princípios adotados com vistas ao planejamento da educação nacional. Dadas as condições sociais, filosóficas, científicas e técnicas alcançadas pela sociedade, era importante a determinação de novos objetivos e fins da educação, a constituição de uma unidade de pensamento e a sua continuidade em planos de reformas.

Com uma certa lucidez, o “Manifesto” considerava que era preciso socializar as questões mais urgentes presentes no sistema de ensino daquele momento, debatê-las e trocar experiências que pudessem ser compartilhadas. Indicava a necessidade de

[...] transferir do terreno administrativo para os planos político-sociais a solução dos problemas escolares [...] Multiplicaram-se as associações e iniciativas escolares, em que esses debates testemunhavam a curiosidade dos espíritos, pondo em circulação novas idéias e transmitindo aspirações novas com um caloroso entusiasmo (MANIFESTO DOS PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA In: AZEVEDO, 1958, p. 61).

A tomada de consciência sobre a importância da educação escolarizada revelou, de certa forma, a sintonia do “Manifesto” de 1932 com a necessidade do despertar da sociedade no que se refere à centralidade da educação para o seu desenvolvimento integral. Sob tal perspectiva, o desenrolar dos acontecimentos haveria de incrementar as exigências pela garantia das oportunidades educacionais a um contingente maior de brasileiros. Mesmo assim,

[...] ainda não se podia considerar inteiramente aberto o caminho às grandes reformas educacionais [...] Era preciso, pois, imprimir uma direção cada vez mais firme a esse movimento já agora nacional, que arrastou consigo os educadores de mais destaque, e levá-lo a seu ponto

culminante com uma noção clara e definida de suas aspirações e suas responsabilidades. Aos que tomaram posição na vanguarda da campanha de renovação educacional, cabia o dever de formular, em documento público, as bases e diretrizes do movimento que souberam provocar, definindo, perante o público e o governo, a posição que conquistaram e vêm mantendo desde o início das hostilidades contra a escola tradicional. (MANIFESTO DOS PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA In: AZEVEDO, 1958, p. 62).

Algumas etapas foram propostas no “Manifesto”, portanto com vistas ao planejamento da educação nacional: 1) a definição do problema, da sua abrangência e da sua importância; 2) as condições necessárias para sua resolução; 3) a determinação de metas; 4) a publicização dos objetivos; e 5) a explicitação da direção política das medidas a serem tomadas. Em seguida, era preciso considerar as condições em que tal planejamento seria implementado. Para o “Manifesto”, toda a educação varia sempre em função de uma “concepção da vida”, refletindo, em cada época, a filosofia predominante que é determinada pela estrutura da sociedade.

Contudo, esse “projeto” manteve um certo distanciamento de medidas que eventualmente pudessem ameaçar o status quo, reflexo de uma postura já tradicional na história brasileira, que tem dado brechas a todo tipo de distorções. É preciso superar tal distanciamento, que hora ou outra parece fazer concessões imediatas, mas no médio e longo prazos é negativo, do ponto de vista social. Considerava-se que,

Em nosso regime político, o Estado não poderá, decerto, impedir que, graças à organização de escolas privadas de tipos diferentes, as classes mais privilegiadas assegurem a seus filhos uma educação de classe determinada; mas está no dever indeclinável de não admitir, dentro do sistema escolar do Estado, quaisquer classes ou escolas, a que só tenha acesso uma minoria, por privilégio exclusivamente econômico. (MANIFESTO DOS PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA In: AZEVEDO, 1958, p. 67).

De fato, a manutenção do status quo não foi determinada em nosso país pela organização de escolas privadas de tipos diversos, mas foi reafirmada pelo acesso privilegiado a uma pequena parcela da sociedade aos níveis mais avançados de ensino, em especial à universidade. Para o “Manifesto” de 1932 a universidade exerceria um papel central na reformulação da sociedade:

A organização de Universidades é, pois, tanto mais necessária e urgente quanto mais pensarmos que só com essas instituições, a que cabe criar e difundir ideais políticos, sociais, morais e estéticos, é que podemos obter esse intensivo espírito comum, nas aspirações, nos ideais e nas lutas, esse “estado de ânimo nacional”, capaz de dar força, eficácia e coerência a ação dos homens, sejam quais forem as divergências que possa estabelecer entre eles a diversidade de pontos de vista na solução dos problemas brasileiros (MANIFESTO DOS PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA In: AZEVEDO, 1958, p. 75).

Através da universidade poder-se-ia estabelecer uma unidade dos setores dominantes da sociedade por meio da difusão de ideais e idéias organizadas segundo uma lógica de manutenção da ordem e do “progresso”. Por conseguinte, nem mesmo o “Manifesto” descuidaria do discurso da importância estratégica da preparação pedagógica dos professores, responsáveis por difundirem esses ideais e essas idéias:

Todos os professores, em todos os graus, cuja preparação inicial geral se adquirirá nos estabelecimentos de ensino secundário, devem, no entanto, formar o seu espírito pedagógico, conjuntamente, nos cursos universitários, em faculdades ou escolas normais, elevadas ao nível superior e incorporadas às universidades. (MANIFESTO DOS PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA In: AZEVEDO, 1958, p. 77). O “Manifesto” de 1932 registra uma prática, que seria adotada também na criação da USP (1934) e demais instituições que se seguiram, limitando a formação do espírito pedagógico dos professores e das atribuições das outras carreiras: a incorporação de faculdades e institutos isolados. Ou seja, explicita uma prática recorrente naquele momento histórico, de unificação artificial de faculdades isoladas, mediadas por uma administração central universitária. A principal medida tomada para superar tal situação e criar uma unidade institucional orgânica seria a tentativa de Anísio Teixeira em 1935, sem êxito na época, e depois a criação “interrompida” da Fundação Universidade de Brasília (UnB, Lei nº 3.998, de 15 de dezembro de 1961)55, logo obstada pela ditadura militar e pela Reforma

55 Art. 9° A Universidade será uma unidade orgânica integrada por Institutos Centrais de Ensino e de Pesquisa e por Faculdades destinadas à formação profissional [...] Art. 13 A Universidade gozará de autonomia didática, administrativa, financeira e disciplinar, nos termos dos Estatutos da Fundação e dos seus próprios estatutos. Art. 14 Na organização de seu regime didático, inclusive de currículo de seus cursos, a Universidade de Brasília não estará adstrita às exigências da legislação geral do ensino superior, ressalvado o disposto no parágrafo único deste artigo e no Art. 15. (BRASIL, Lei nº 3.998, de 15 de dezembro de 1961,

Universitária (Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968), e por legislações correlatas. Os esforços de educadores e da sociedade não foram suficientes para a superação dos inúmeros desafios educacionais colocados ao país pela adoção de um novo padrão de desenvolvimento “dependente”. Mesmo assim, apesar de limitadas, conquistas importantes foram sendo feitas ao longo da história da educação brasileira. Nos tempos mais recentes, um dos exemplos foi a garantia constitucional do Ensino Fundamental público, gratuito e

obrigatório. Por outro lado, não cabe ignorar que, em educação, tais conquistas não ultrapassam princípios liberais de "ofertar" apenas o mínimo, principalmente no que se refere à qualidade do ensino.