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2. Capítulo

6.2. O Liberalismo de Adam Smith

O Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações de Adam Smith continuaria uma crítica de Locke contra as restrições em geral à liberdade e às suas nuances mais imediatas como o autoritarismo e o protecionismo mercantilista. Contribuíram em grande medida para tal empreendimento as condições presentes na sociedade inglesa, como as destacadas por Maurício Chalfin Coutinho:

[...] a coisa pública e as prerrogativas dos capitais privados encontram-se satisfatoriamente demarcadas, e os pensadores podem dar-se ao refinamento de fundar uma ideologia – o liberalismo – em razões filosóficas profundas [...] Deste ponto de vista, Smith é o continuador de uma tradição de filósofos-economistas que remonta a Locke, Hutcheson e Hume. Nela o experimentalismo desloca-se da analogia estrita entre fenômenos da natureza e fenômenos sociais, e o racionalismo expressa-se através de uma elaborada filosofia moral, à qual a economia política inglesa deve os fundamentos. (COUTINHO, 1993, p. 99).

Smith elaborou sua obra principal, o Inquérito sobre a Natureza e as Causas da

Riqueza das Nações, num período marcado por uma mercantilização generalizada, que penetrava inclusive o âmago do processo produtivo, incluindo a própria força de trabalho no regime de trocas. Para o emergente sistema capitalista era preciso criticar as restrições legais e jurídicas (e éticas) que impediam a livre determinação e o comportamento dos indivíduos, entenda-se, dos burgueses e, no limite, daqueles que poderiam representar um beneficio ao comércio em geral. Os trabalhadores, por sua vez, comparáveis a crianças ou animais imoderados, são considerados no mais das vezes, quando organizados, como “crianças ingratas” sendo por isso necessário com freqüência o uso da força para a sua submissão à ordem e a hierarquia. Para o autor,

[...] os trabalhadores recorrem sempre ao mais alto clamor e, em certos casos, à mais chocante violência e desacato. Sentem-se desesperados, e actuam com o delírio e imoderação de homens desesperados, a quem só resta morrer de fome ou, pelo medo, obrigar os patrões a aceitar imediatamente as suas reivindicações. Em tais circunstâncias, os patrões erguem, pelo seu lado, idêntico clamor, reivindicando incessantemente o auxílio das autoridades civis e o rigoroso cumprimento das leis destinadas a, com tanta severidade, se oporem às coligações de criados,

trabalhadores e jornaleiros. Desse modo, os trabalhadores raramente tiram qualquer vantagem da violência dessas coligações tumultuosas que, em parte por força da intervenção das autoridades civis, em parte devido à maior resistência dos patrões, e ainda em parte devido à necessidade em que a maior parte dos trabalhadores se vê de se submeter para garantir a sua subsistência imediata, geralmente ficam em nada, salvo pelo que respeita à punição ou ruína dos chefes do movimento (SMITH, 1981, pp.178-179).

Smith, numa confluência com as exigências econômicas, políticas e ideológicas de seu tempo, não por acaso, defende que a existência de “forças de mercado”, inclusive de mercado de trabalho, (re)estabeleceria valores naturais pela ação da concorrência na oferta e na procura de tudo e de todos. A teoria da lei natural, como ficou conhecida, surge como o ponto de partida da teoria do valor do trabalho e da doutrina do liberalismo econômico, abrindo novas perspectivas para a ação econômica dos homens com base na exploração da natureza e do próprio homem com as suas respectivas conseqüências para o arcabouço das misérias humanas.

São três os pilares fundamentais da obra de Smith que caminham nesse sentido. Primeiro: a defesa de que os homens eram inteiramente impulsionados pelo desejo de melhorar sua condição e o aumento de seus bens (ganho material) era o meio de conseguir essa condição melhor. Segundo: Smith acreditava que, agindo em seu próprio interesse (econômico), quando colocado junto a uma coletividade, cada indivíduo maximizaria o bem estar coletivo. Terceiro: a realização do bem estar coletivo seria resultado inconsciente da motivação individual pelo ganho econômico (CARNOY, 2001). Em outras palavras,

Subjacente a todos os escritos de Smith está a tensão entre a coesão social, originada da própria sociedade civil (a mão invisível, os sentimentos morais individuais), e a existência de um Estado com poder jurídico e educativo. De fato, para Smith, as normas gerais de moralidade oscilam entre ser uma parte inerente do comportamento humano ou ser um objeto de promulgação e disseminação por algum corpo deliberativo que faz essa moralidade. (CARNOY, 2001, p. 41).

Associada, portanto, a uma defesa de um individualismo como propulsor do progresso social caminhando lado a lado a uma determinada crítica do Estado intervencionista que excedesse a defesa dos ricos contra os pobres – dos naturalmente iguais, os proprietários, humanos, perfeitos, pacíficos, membros da comunidade harmoniosa

e legal, contra os naturalmente diferentes, os não proprietários, inumanos, degenerados, animalescos, ferozes, alheios às leis da razão (Franco, 1993) – encontra-se a necessidade de criação de uma nova moralidade como função educacional.

Parte da obra de Smith repousa pois sobre a educação, visto que, desse ponto de vista, uma sociedade estável é impossível sem um grau mínimo de alfabetização e conhecimento por parte da maioria dos cidadãos e sem a ampla aceitação de algum conjunto de valores. Nesta perspectiva a importância da educação é de tal modo central que não deveria ser negligenciada nem mesmo os casos em que a sociedade coloca os indivíduos a se formar com alguma ajuda. Para Smith (1981, p. 416), “é necessário alguma intervenção do governo para impedir a quase total corrupção e degeneração da grande maioria das pessoas”.

Subjacente a esta “preocupação” está a consideração, explicitada por John Stuart Mill (1991), de que um pai que traz à existência um filho sem uma justa perspectiva de poder dar-lhe não só alimento ao corpo, como também instrução e treino ao espírito, comete um crime moral, tanto contra o infeliz rebento como contra toda a sociedade. Neste caso, o Estado deveria velar pelo cumprimento de uma instrução mínima, não por bondade, mas para a garantia da ordem vigente. “A educação da gente comum, numa sociedade civilizada e comercial, requer talvez mais a atenção do público do que a educação das pessoas de posição e fortuna”. (SMITH, 1981, p. 418).

Sob o pressuposto de que a divisão social do trabalho conduz os homens a se ocuparem de operações muito simples, impedindo também que estes tenham a ocasião para exercitar e desenvolver as suas capacidades intelectuais necessárias ao “convívio” social, para Smith (1981), as classes desfavorecidas teriam pouco tempo para “desperdiçar” com a sua educação considerando que precisam começar a trabalhar cedo em atividades simples para garantir a sua subsistência. Bourdieu questiona esse ponto de vista:

Se a descrição das condições de trabalho mais alienantes e dos trabalhadores mais alienados soa freqüentemente falso – e, antes de mais, porque ela não permite que se compreenda que as coisas sejam e continuem a ser o que são – é porque, funcionando na lógica da quimera, ela não consegue explicar o acordo tácito estabelecido entre as condições de trabalho mais desumanas e os homens que estão preparados para as aceitar por terem condições de existência desumanas (BOURDIEU, 1998, p. 96).

Se, por um lado, em Smith a educação destinada aos trabalhadores que precisam começar a trabalhar cedo em atividades simples é somente mínima, totalmente oposto é o caso dos pais e tutores das pessoas de estirpe e fortuna, seres supostamente “virtuosos”, que procuram realizar cedo nos seus filhos os “talentos” para o negócio particular, a profissão e / ou o ofício. Não aflorando, por ventura, qualquer esfera de “talentos” dos seus educandos de estirpe, Smith atribui a culpa a uma má aplicação das despesas escolares com professores negligentes e incapazes, responsáveis por degenerar os “dons” naturais dos quais são portadores os seres afortunados em decorrência do pertencimento a uma linhagem familiar.

Para Smith (1981), em uma sociedade civilizada, embora não se possa garantir uma educação “a altura” das pessoas de posição e fortuna a todos, dever-se-ia garantir ao menos o ensino e a aprendizagem da leitura, escrita e aritmética para a gente comum com a criação de uma pequena escola, por exemplo, onde as crianças poderiam ser ensinadas através de um pagamento tão reduzido, que até o trabalhador comum o poderia suportar; o mestre seria em parte, mas não totalmente, pago pelo público, porque se fosse totalmente ou em grande parte pago por ele, depressa aprenderia a negligenciar a sua atividade. Segundo esse autor,

Mesmo que o Estado não viesse a tirar qualquer vantagem da instrução das camadas inferiores do povo, deveria mesmo assim interessar-se por que não fossem completamente ignorantes. O Estado, contudo, não deixa de recolher consideráveis vantagens na sua instrução. Quanto mais instruídos forem, menos sujeitos estão aos enganos do entusiasmo e da superstição, que entre as nações ignorantes freqüentemente ocasionaram as mais terríveis desordens. Um povo instruído e inteligente é, além disso, geralmente mais decente e ordeiro do que um povo ignorante e estúpido. Sentem-se, cada um individualmente, mais respeitáveis e mais susceptíveis de obter o respeito dos seus superiores hierárquicos, estando portanto mais dispostos a respeitar esses superiores (SMITH, 1981, p. 425).

As “vantagens” da instrução na constituição de um povo ordeiro e respeitoso com relação aos seus “superiores” hierárquicos poderiam ser alcançadas desde de que o Estado deixasse aos pais a obtenção da educação onde e como lhes agradasse, contentando-se em auxiliar o pagamento das despesas de escola das crianças mais pobres, custeando as

despesas totais das que não têm quem por elas pague. O problema seria o fato de o Estado assumir a direção dessa educação e Mill45 expõe mais claramente o seu por quê:

Uma educação geral pelo Estado é puro plano para moldar as pessoas de forma exatamente semelhante [...] Uma educação estabelecida e controlada pelo Estado só deveria existir, se devesse, como um dentre muitos experimentos em competição, executando com o fim de exemplo e estímulo, para manter os outros em harmonia com um certo padrão de excelência (MILL, 1991, p. 149).

Mill traz à tona um viés possivelmente instrumental da educação onde a ação governamental era entendida como uma interferência na liberdade natural. A idéia do

laissez-faire acabou tomando corpo, sustentando que a atividade dos indivíduos, libertos tanto quanto possível de restrições políticas, é a principal fonte do bem-estar social e fonte última do progresso social (DEWEY, 1970). “E seu apelo será tanto mais eficaz quanto mais agir no sentido de proteger os indivíduos no exercício de seu próprio interesse. Essas idéias, apenas implícitas em Smith, fizeram-se explícitas em seus sucessores” (DEWEY, 1970, pp. 22-23).