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2. Capítulo

6.5. Vão-se os anéis, mas ficam os dedos

Concerne ao (neo)liberalismo, portanto, em tom de única ou melhor alternativa, um papel destacado na produção de idéias cuidadosamente compiladas ao longo do atual estágio histórico em que se encontra a humanidade, responsável por naturalizar as desigualdades e obstaculizar a busca de uma igualdade mais ampla.

Determinado por um corpus de representações e de normas que fixam e prescrevem de antemão o que se deve e como se deve pensar, agir e sentir, o (neo)liberalismo assume, antes de mais nada, uma posição na estrutura das ideologias tão exploradas no século XX, ou seja, de idéias ou representações produzidas para explicar ou compreender a vida individual, social, as relações com a natureza e com o sobrenatural, tomando-as pelo real. Esse corpus é utilizado pelas classes dominantes, que possuem como braço articulado colaborando na sua implantação, um conjunto de agentes internacionais e nacionais, detentores de postos-chave na política e na economia49, responsáveis por tentar transformar o brilho da liberdade na opacidade do interesse pessoal em detrimento da coletividade, a partir da idéia que o Estado é o único responsável pelas mazelas sociais.

A defesa do livre movimento dos interesses egoísticos pela ideologia (neo)liberal tem se caracterizado pela consideração incontestável da acumulação e da concentração de propriedades, na qual tem tomado parte esses “braços articulados” cooptados pelos “organismos e instituições que lhes forneceram o substrato cultural-ideológico e, conseqüentemente, à sua visão de mundo” (AZEVEDO; CATANI, 2002). A soma do

49 “[...] muitos desses atores foram formados ou cooptados, intelectual e financeiramente, pelas sedes transnacionais, sejam elas de bancos multilaterais, bancos de investimento e comerciais, fundo de investimento, departamento de determinadas universidades, grandes empresas transnacionais, escolas de governo, Organizações Não-Governamentais etc.” (AZEVEDO; CATANI, 2002, p. 225).

corpus de representações da classe dominante com o exercício realizado por agentes afinados pelo objetivo de submeter e explorar as classes trabalhadoras tem pautado as questões sociais, políticas, econômicas, culturais etc., no âmbito das mais distintas nações.

De um modo geral, o corpus ideológico que vem sendo propagado cumpre o papel de produzir uma universalidade imaginária incumbida de generalizar para toda a sociedade os interesses e o ponto de vista particulares de um grupo como parte de um exercício de dominação. A intocabilidade e a sacralização do cumprimento de acordos, contratos, saldo de dívidas, o direcionamento do Estado ao suprimento das demandas de lucro das empresas, são os mais recentes interesses particulares “elevados” ao patamar de “questões nacionais” para a preservação da estabilidade econômica do país. Nenhuma ameaça poderia subsistir ante ao imaculado direito de propriedade privada e do dever do Estado em prover lucros para as empresas e para os capitais especulativos.

Ademais, a estratégia liberal tem sido responsável, também, por fornecer aos indivíduos elementos, inclusive lingüísticos, capazes de promover uma localização e uma identificação no interior de justificativas e explicações concebidas, cujo êxito está imbricado num auto-reconhecimento, que em geral legitima determinada divisão social, os méritos e as recompensas da opção pela ordem. Uma explicação da realidade que justifique, por exemplo, a hierarquia, inclusive remuneratória, e a divisão social do trabalho, procurando autonomizar o trabalho intelectual face ao trabalho material, justificando diferenças do valor atribuído às diversas atividades humanas, é uma prática recorrente. A importância da ideologia, como um instrumento de dominação de classe, advém, portanto, da tentativa de impedir que a dominação e a exploração vigente sejam percebidas em sua realidade concreta, essencial, para que se mantenha a divisão social e as suas conseqüências na garantia da ordem (Chaui, 1980).

Para Chaui (1980, passim) a realidade deve ser percebida através das formas de nossas relações com a natureza, que são mediadas por nossas relações sociais, pelos seres culturais, através dos campos de significação variados no tempo e no espaço, dependentes de nossa sociedade, de nossa classe social, de nossa posição na divisão social do trabalho, dos investimentos simbólicos que cada cultura imprime a si mesma através das coisas e dos homens. O real, desse modo, para a autora é um processo, um movimento temporal de constituição dos seres e de suas significações. Esse processo depende fundamentalmente do

modo como os homens se relacionam entre si e com a natureza, criando, em condições determinadas, os meios e as formas de sua existência social, reproduzindo ou transformando essa existência, que é econômica, política e cultural. Trata-se de um movimento histórico cujos homens são os autores.

As idéias50 ou as representações, por outro lado, tenderão a esconder dos homens o modo real como suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e dominação política. A ideologia é assim um instrumento de dominação de classe e uma forma de luta das classes que procura representar os interesses da parte mais forte e poderosa da sociedade com a aparência de interesses de toda a sociedade (Chaui, 1980).

Sem dúvida, o (neo)liberalismo apresenta-se como a ideologia que tem prevalecido frente ao pleno desenvolvimento das potencialidades sociais ligadas ao devir democrático. O predomínio desta “filosofia”, transformada pretensamente em propulsora da evolução histórica, propiciou as condições para que se procurasse equiparar o egoísmo (como se fosse representação de interesses de toda a sociedade) com o patamar dos mecanismos humanos relacionados ao amor próprio, compondo aspectos políticos de defesa de interesses privados em detrimento dos coletivos. A centralidade nos interesses particulares é responsável pelo deslocamento político operado com o intuito de se garantir apenas uma educação escolar mínima, voltada para o trabalho, como um modo de conter um certo caráter subversivo, que supostamente seria induzido pelos estudos mais aprofundados. Para além dessa escolaridade básica, a responsabilidade pelo prosseguimento dos estudos recairia sobre o próprio indivíduo que “escolheria” (ou não), de acordo com a sua “vontade”, a escola de sua preferência num hipotético mercado auto-regulado ávido pelos fundos governamentais destinados para cada estudante, eventualmente acrescidos pelas somas de recursos de cada família.

Entretanto, a institucionalização do egoísmo não pode impedir a consolidação de uma concepção de educação escolar como elemento importante para uma boa convivência social. A luta na esfera política passa a ser estimulada pelas possibilidades apresentadas pelos projetos de lei, emendas orçamentárias, reformas setoriais de cunho social etc. Uma

50 Na sociedade atual pressupõe-se constantemente que as idéias também possuem autonomia quando na verdade as idéias autonomizadas são as idéias da classe dominante.

polarização concorre, portanto, para definir a situação. De um lado, a defesa apenas de uma escolaridade mínima, necessária à manutenção da ordem e, de outro, uma educação política que pode contribuir para a elaboração de políticas mais consistentes para a área. Por sua vez, a implementação de uma política educacional democrática auxilia no estabelecimento de uma educação política e de uma educação para a política, conforme Benevides (1991).

Contudo, a disputa tem pendido para a garantia apenas do Ensino Fundamental, entre outros motivos, dada a pouca participação de setores organizados da sociedade na elaboração e implementação das políticas públicas, em geral utilizadas como concessões bastante limitadas e reversíveis a qualquer momento, isto porque, segundo Fernandes,

As nações emergentes da América Latina apelaram, desde as lutas pela emancipação política, para as ideologias e as utopias do liberalismo europeu e para as instituições econômico, sociais e políticas correspondentes. Como a condição burguesa não era, em nosso continente, um fator revolucionário de reivindicação por eqüidade, o apego ao liberalismo também não possuía sentido revolucionário. (FERNANDES, 1975, p. 126).

7. Capítulo VII