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2. Capítulo

6.3. O medo liberal da democracia em Hayek

O arcabouço liberal foi sendo constituído, pouco a pouco, e impôs uma proeminência política e econômica. Ainda que inicialmente ofuscado, na década de 1940, a continuidade da luta reduzida à defesa dos ricos frente à miséria foi conduzida tempos depois por Friedrich Hayek na promoção do ataque ao que considerava socialismo. É através desse autor que a força dos acontecimentos e a necessidade de definir um inimigo concreto, propiciou ao liberalismo colocar-se como alternativa aos desastres históricos das

45 “Realmente, apenas quando a sociedade se encontra, em geral, numa situação de tal atraso, que não poderia providenciar ou não providenciaria, por si mesma, quaisquer instituições convenientes de educação salvo empreendendo o governo a tarefa, só então, na verdade, pode o governo, como o menor de dois grandes males, tomar sobre si o cuidado das escolas e das universidades, como pode assumir o das sociedades anônimas quando o empreendimento privado, numa forma adequada à realização das grandes obras da indústria não existe no país. Mas, em regra, se o país conta um número suficiente de pessoas qualificadas para atender à tarefa da educação sob os auspícios do governo, as mesmas pessoas teriam capacidade e boa vontade para fornecer uma educação igualmente boa dentro do princípio da voluntariedade, uma vez garantida a sua paga pela existência de uma lei que tornasse compulsória a educação, combinada com a ajuda do Estado aos incapazes de custear as despesas” (MILL, 1991, pp. 149-150).

experiências totalitárias. Optou-se por associar, então, as forças e as idéias retrógradas em operação na Alemanha durante e após a Primeira Guerra Mundial e o rumo das idéias nas democracias, numa demonstração dos termos em que ocorreria mais uma batalha da luta de classes. Sem distinguir as forças atuantes no cenário mundial daquele momento, Hayek (1974, p. 14) considerava que “A tendência moderna para o socialismo implica num rompimento não apenas com o passado recente mas com toda a evolução da civilização ocidental”.

A história da humanidade passa então por uma nova interpretação, segundo a qual é por meio do liberalismo que se empreende uma luta contra os supostos privilégios, ou seja, dos direitos que o Estado concede e garante a alguns, impedindo que outros os obtivessem em iguais condições. A doutrina liberal caminhava, isso sim, para a defesa da manutenção de privilégios bem definidos, como a concentração de riquezas ao lado de incontáveis mazelas sociais.

Procurando inverter o sentido da realidade, sob Hayek (1974), o corpus ideológico liberal, como expressão do ponto de vista dos setores dominantes da sociedade, haveria de (re)agrupar o individualismo, o comércio e a liberdade, como agentes naturais até então obstaculizados, responsáveis pela evolução humana, quando garantidas as suas prerrogativas. Segundo esse autor,

[...] as características essenciais do individualismo, que partindo de elementos fornecidos pelo cristianismo e pela filosofia da antiguidade clássica desenvolveu-se pela primeira vez, plenamente, durante a Renascença e desde então evoluiu e penetrou o que chamamos de civilização ocidental, são o respeito pelo homem individual na sua qualidade de homem. (HAYEK, 1974, p. 15).

Diante de tanta miséria e desigualdade social, caberia questionar o significado desse “respeito pelo homem individual”. Hayek, porém, após elaborar uma explicação com base na transformação gradual de um sistema rigidamente hierárquico num outro no qual, individualmente, os homens podiam pelo menos tentar dirigir sua própria vida, a partir do desenvolvimento do comércio, e, depois de observar os grandes passos dados pela ciência, nos últimos cento e cinqüenta anos, graças ao livre uso dos novos conhecimentos, realizaria uma “cruzada” carregada de elementos constitutivos de uma verdadeira epopéia, ocultando a realidade em prol de uma idéia em que o “vilão” é construído passo a passo:

Difundiu-se cada vez mais a opinião de que um novo progresso não poderia vir dentro das velhas linhas e da estrutura geral que possibilitaria o progresso passado [...] E uma vez que a esperança da nova geração se voltou de todo para algo inteiramente novo, o interesse pelo funcionamento da sociedade existente, bem como a compreensão desse funcionamento, declinaram rapidamente. (HAYEK, 1974, p. 20).

Subjacente à preocupação com o funcionamento da sociedade, hierarquizada e desigual, encontra-se uma discussão sobre o Planejamento Estatal46, tido como uma ameaça às forças responsáveis pela coordenação dos esforços humanos na direção de guiar, da melhor maneira, as iniciativas individuais através da defesa intransigente da competição. Somente quando representassem um alto encargo para o investimento individual ou de um pequeno grupo de indivíduos, o empreendimento estatal poderia ser considerado. Segundo Hayek era preciso,

Criar as condições em que a concorrência seja tão eficiente quanto possível, completar-lhe a ação quando ela não o possa ser, fornecer os serviços que, nas palavras de Adam Smith, “embora ofereçam as maiores vantagens para a sociedade, são contudo de tal natureza que o lucro jamais compensaria a despesa de qualquer indivíduo ou pequeno grupo de indivíduos” – eis aí tarefas que na verdade estabelecem um campo vasto e indisputado para a atividade estatal. (HAYEK, 1974, p. 37). O movimento em defesa do planejamento era visto como o grande obstáculo a uma suposta dinâmica de concorrência e o socialismo acabou por ser correlacionado à extinção da iniciativa particular, da propriedade privada dos meios de produção e à criação de um sistema de economia planejada (HAYEK, 1974, p. 31). “Eliminando a concorrência nas indústrias uma após outra, essa política deixa o consumidor à mercê da ação conjunta dos capitalistas monopolizadores e dos trabalhadores das indústrias melhor organizadas”. (HAYEK, 1974, p. 39).

A crítica não pode ser de todo ignorada, se bem que ela não corresponde à descrição feita, ou seja, não é lícito associar monopólio, economia planejada e falta de concorrência.

46 “A grande lição da experiência universitária soviética e, ainda mais, da China, é que uma planificação politicamente conduzida permite elevar em poucas décadas o nível de ensino e de investigação, do atraso mais profundo aos mais altos índices, preenchendo assim os requisitos culturais indispensáveis ao desenvolvimento autônomo” (RIBEIRO, 1969, p. 64).

Oligopólios e monopólios são marcas persistentes na arena nacional e internacional, sendo que, na fase atual do capitalismo, as constantes fusões de empresas, inclusive educacionais, como veremos a seguir, estão pautando as políticas, ainda que a idéia de concorrência47, numa economia de mercado, persista sem conexão com exemplos concretos:

No regime de concorrência, os preços que temos de pagar por um artigo, a proporção em que podemos trocar uma coisa por outra, dependem da quantidade dos outros artigos da mesma espécie que ficam disponíveis para os outros membros da sociedade depois de termos adquirido o nosso. Esse preço não é determinado pela vontade consciente de pessoa alguma. E, se um certo meio de conseguirmos os nossos fins se mostra demasiado dispendioso, temos liberdade de tentar outros meios. (HAYEK, 1974, p. 88).

Um certo temor pela “força coletiva” ajuda a entender uma estratégia de individualização e um certo desprezo por empreendimentos organizados de forma pública. Somente as “forças ocultas”, privadas, individualizadas, estariam aptas a darem algum direcionamento ao movimento e às variações da “oferta e da procura” de tudo e de todos. A simples hipótese de alguma forma de participação popular era tida como indesejável, visto que, do ponto de vista de Hayek,

Pode suceder que a vontade do povo unanimemente expressa requeira a organização de um vasto sistema econômico pelo seu parlamento, sem que o povo nem seus representantes sejam capazes de concordar a respeito de qualquer plano determinado. A incapacidade das assembléias democráticas para realizar o que parece ser um evidente mandato do povo não pode deixar de causar descontentamento com as instituições democráticas. Os parlamentos chegam a ser considerados inúteis “casas de balbúrdia”, incapazes ou incompetentes para realizar as tarefas para os quais foram eleitos. Cresce a convicção de que, para fazer um planejamento eficaz, a direção deve ser “retirar dos políticos” e posta nas mãos de especialistas – funcionários permanentes ou organismos autônomos e independentes [...] A dificuldade é bem conhecida dos

47 Não apenas Hayek como também Stuart Mill tentaram uma definição de benesses atribuídas às forças competitivas em operação, inclusive nas interações sociais. “Quem quer que logre êxito numa profissão superlotada, ou num concurso, quem quer que seja preferido a outrem numa disputa por um objeto que ambos desejem, colhe benefício do prejuízo do outro, do seu esforço, desperdiçado e da sua desilusão. Mas, para o interesse comum dos homens, é melhor, por consenso geral, que as pessoas procurem seus objetivos sem se desviarem por esse tipo de conseqüências. Em outras palavras, a sociedade não admite o direito, legal ou moral, dos competidores decepcionados à imunidade desse gênero de sofrimento. E sente-se solicitada a interferir somente quando os meios de sucesso empregado não são permitidos, por contrários ao interesse geral, como a fraude ou a deslealdade, e a violência” (MILL, 1991, p. 138).

socialistas. (HAYEK, 1974, p. 59).

Seguramente, esse é justamente o projeto levado a cabo pelos (neo)liberais no país, sem que tenha crescido a convicção na eficácia e eficiência do planejamento feito por “especialistas”, na manutenção dos limites democráticos hoje postos pelo cerceamento à participação de setores organizados da sociedade, conduzindo, inevitavelmente, à utilização da força na manutenção da ordem:

Sem um âmbito público politicamente assegurado, falta à liberdade o espaço concreto onde aparecer. Ela pode, certamente, habitar ainda nos corações dos homens com desejo, vontade, esperança ou anelo; mas o coração humano, como todos o sabemos, é um lugar muito sombrio, e qualquer coisa que vá para sua obscuridade não pode ser chamada adequadamente de um fato demonstrável. A liberdade como fato demonstrável e a política coincidem e são relacionadas uma à outra como dois lados da mesma matéria (ARENDT, 2000, p. 195).