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CAPÍTULO II VIOLÊNCIAS NA GEOGRAFIA ESCOLAR

6. A medição da violência escolar e os inquéritos de vitimização

6. A medição da violência escolar e os inquéritos de vitimização

A medição da violência escolar realiza-se em três sectores principais: as polícias e justiça, a saúde pública e a investigação. Para Jean-Hervé Syr (2001:303), a representação oficial da violência escolar, que pode divergir da percepção dos actores do terreno, está estreitamente relacionada com os factos denunciados às autoridades, junto das quais é apresentada queixa que fica registada e é depois tratada estatisticamente. É a partir dessa imagem, essencialmente quantitativa, que é construída a reacção dos responsáveis oficiais aos resultados reportados pelas vias legais. Convém referir que a maneira como as autoridades policiais procedem ao registo das ocorrências, com base na sua reacção e selecção dos factos participados, é determinante para a qualificação legal da infracção, não significando que esteja em sintonia com a concepção de ordem e disciplina fundada no direito sancionatório, inerente à autoridade, que a docência conferia no passado aos docentes. João Barroso (2003:65) critica a tendência para se recorrer às mais variadas classificações na tentativa de hierarquizar e «medir» o tipo e grau de «desvio» dos alunos e das escolas e potencial risco de uns e de outros. Na sua opinião, esta tendência para calcular a violência contribui para fomentar a ideia de que existe uma linha de continuidade e uma progressão linear entre a «indisciplina» e o «crime», a «pequena violência» e a «grande violência». A partir desta perspectiva, foram criadas as propostas de «tolerância zero» relativas às «incivilidades escolares», já explicadas atrás, inspiradas com se explicou na teoria “broken windows” dos criminólogos norte-americanos George Kelling e James Wilson. A designação de tolerância zero passa também a fazer parte integrante do léxico das medidas securitárias em território nacional, com vista a um controlo mais rigoroso dos sujeitos nas entradas e saídas da escola.

6.1. Os inquéritos de vitimização

6.1. Os inquéritos de vitimização

Os primeiros inquéritos de vitimização surgem nos EUA, em meados dos anos 60 (Debarbieux, 2006:78), quando o presidente Johnson confia ao seu procurador-geral, Katzenbatch, a responsabilidade de realizar um inquérito sobre a delinquência e o medo do

crime, para recensear os factos e medir a criminalidade nesse país. Em 1967, Biderman, Ennis e Reiss demonstram a utilidade científica de uma abordagem baseada na vitimização para melhor compreender a frequência dos crimes e do seu impacto nos sujeitos e no corpo social. Comparados os dados obtidos por meio da inquirição, concluíram que as “cifras negras” excedem largamente as estimativas precedentes, podendo atingir até cinco vezes mais os valores obtidos pela polícia (Reiss, 1967, citado por Debarbieux, 2006:78-79). O primeiro inquérito do género, intitulado Safe School Study (Baker, Rubel, 1980), decorreu em 1977, envolvendo 31 273 alunos, 23 895 docentes e 623 funcionários de 642 escolas.

De um excerto do NCVS (2003:6), Nonfatal Student Victimization, retiraram-se alguns resultados indicadores das tendências da criminalidade norte americana e, em particular, dos dados sobre a violência e vitimização nas escolas, num período de 10 anos, indo de 1992 a 2001. As conclusões desses inquéritos proporcionaram uma melhor condução das políticas públicas no terreno (Weisel, 1999, citado por Debarbieux, 2006:79). Os valores de vitimização violenta, com incidência em alunos com idades entre os 12 e os 18 anos, para avaliar os roubos, actos violentos e crimes violentos com expressividade na escola e na sua periferia, terão declinado nesse período. Nos Estados Unidos, são também aplicados ora o inquérito Monitoring the Future (MTF), desenvolvido durante 26 anos, ora os inquéritos dos Centers for Disease Control and Prevention.

A literatura mostra que além da inquirição oficial para a recensão dos factos de violência nas escolas, em países como a Inglaterra, Espanha, Alemanha, ou Estados Unidos, há uma dezena de anos na Europa e duas dezenas nos USA, deu-se um acréscimo de inquéritos científicos e empíricos sobre o fenómeno. Mais recentemente, a comunidade científica internacional, impulsionada pelo Observatório da Violência Escolar, entre outros organismos, também tem vindo a mobilizar-se na América latina (Abramovay e Das Gracias Rua, 2002), no Japão (Mojita, 2001), além da envolvente da pesquisa empreendida no Canadá (Beaumond, Bigras, Day; Fortin, Paquin, Royer, Vitaro e Gagnon) e na Austrália (Morisson, Slee).

Estes inquéritos baseiam-se na sua maioria nos Self-report studies (Farrington, 1993) sobre os comportamentos de risco, de vitimização, de delinquência autoreportada ou reportada pelos profissionais ou parentes, ou no European School Survey on Alcohol and

Other Drugs (ESPAD, 1997, 1999; OMS, 2001), que compreende uma parte referente à

e os EUA, foi aplicado em França por uma equipa dirigida por Marie Choquet (Choquet, Hassler e Morin, 20005). O ESPAD 1999 compreende um número de questões sobre os comportamentos violentos no meio escolar (N= 95 000; alunos no 10º ano), cujos resultados revelam que são mais as «microviolências», com vitimizações menores («minor victimizations») e as injúrias e os gestos obscenos («indignities») que constituem o fundo do problema.

Tais conclusões admitem o pouco fascínio pelo crime de sangue e a violência paroxística, geralmente conotada com as escolas dos EUA, como resumiram dois investigadores americanos que referem que «a experiência típica de vitimização pessoal na escola para os alunos e professores é um incidente menor. Os incidentes sérios são raros.» (Gottfredson e Gottfredson, 1985: 5). Na opinião de Debarbieux (2006), as conclusões evidenciadas por estes dois investigadores há mais de duas décadas continuam válidas, muito embora a inquirição aos docentes revele o sentimento de um importante aumento dos problemas de violência na escola, mas poucos inquéritos confirmam essa percepção dos professores. Por isso, o autor lembra que o «cruzar estatísitcas oficiais e outros tipos de estudos é útil: se existir uma contradição demasiado forte nas tendências reveladas, é preciso que nos interroguemos, simultaneamente, sobre o eventual viés dos estudos científicos e sobre as incitações políticas, corporativistas ou hierárquicas, que minorariam ou majorariam os números» (Debarbieux, 2004: 322).

Na Grande Bretanha, as sondagens, embora menos frequentes que do outro lado do Atlântico, são também produzidas e publicadas por instituições oficiais como o British Crime Survey, enquanto nos Países Baixos essa função é da responsabilidade do Dutch Crime Survey. Em Israel, foi aplicado o inquérito de vitimização e clima escolar de Benbenisthy e Astor (2005), nas escolas judaicas e árabes. Para a realidade francesa, Debarbieux (2006:80) lembra que este tipo de inquéritos começou por achar fortes reticências numa «guerra» administrativa para saber quem deveria medir este género de violência, tendo a construção do objecto «violência na escola» suportado uma amálgama de outras violências exteriores à escola.

Em França, os primeiros inquéritos de vitimização foram realizados pela equipa formada por Cécile Carra e François Sicot (1996) e por uma outra encabeçada por Éric Debarbieux (1996), sendo essa inquirição duplicada em 1998, 1999, 2000 e 2003. Na sua abordagem do problema, Carra e Sicot (2001: 61-82) privilegiam o ponto de vista e as

reacções da vítima, as circunstâncias em que são produzidos os actos, as consequências físicas, financeiras e psicológicas da acção sofrida. Os inquéritos de vitimização de 1996 utilizam uma amostragem de 3 000 alunos, revestindo menor aplicação em França, comparativamente aos Estados Unidos, onde os investigadores dispõem de informações sobre a vitimização, como se disse, da Safe School Study, dirigida pelo National Institute of Education (NIE), desde 1976, e do National Crime Victimization Survey (NCVS) do departamento de justiça, há mais de trinta anos. Carra e Sicot (2001:65) dizem seguir de perto o trabalho de Gottfredson e Gottfredson (1985) que utilizam esse tipo de inquéritos para estudar a violência na escola.

A metodologia empregue por Carra e Sicot (1996) é retomada na Suécia (Anderson e Hibell, 1995; Lindström, 2001) estabelecendo protocolos para estudar a vitimização, o clima escolar e o sentimento de insegurança experimentados pelos alunos, docentes entre outros profissionais da instituição (Debarbieux, 1996). O Observatório Europeu da Violência Escolar, em paralelo com os estudos etnográficos, realiza inquéritos mistos em países como a Alemanha, Bélgica, Brasil, Espanha, França, Inglaterra, também extensivos à Argentina, Canadá, Chile México, etc., vindo comprovar o interesse da comunidade científica internacional pela questão, organizando uma importante base de dados que pode servir para futuras intervenções no terreno.

Em França, o software SIGNA,40 desenvolvido pelo Comité Nacional Anti-violência,

permite contabilizar as violências escolares recenseadas oficialmente e o reconhecimento das vítimas, ou seja 14 780 actos assinalados para 2001-2002 que, segundo Debarbieux (2006) escondem as «cifras negras» entre factos contabilizados e vitimizações sofridas. Uma das razões é que as instituições de ensino revelam resistência em divulgar os incidentes com receio de manchar a sua reputação e, com isso, fazer fugir determinadas famílias (Ballion, 1991).

Assim, os inquéritos de vitimização realizados no seu país (Debarbieux, 1996; Carra e Sicot, 1997; Debarbieux et al., 1999) revelam um enorme desfasamento comparativamente

40 Baseando-se numa abordagem jurídica, o SIGNA é um instrumento de recenseamento dos factos de

violência escolar que dizem respeito aos delitos e infracções, como as violências físicas com ou sem arma, o consumo de estupefacientes, a extorsão, etc. Está dividido em quatro secções respeitantes aos ataques: a terceiras pessoas, aos bens, à segurança, ao tráfico ou consumo de estupefacientes, permitindo ainda distinguir os actos de carácter racista e xenófoba. Este instrumento de medida tem por objectivo o registo em tempo real dos factos violentos, num período de dois meses, para depois serem retransmitidos pela Direcção de Avaliação e Perspectiva (DEP) aos inspectores da Academia para orientar a prevenção e luta contra o fenómeno.

aos registos administrativos informáticos do Ministério, por meio do software SIGNA, que não permitem obter a dimensão exacta do fenómeno. As vitimizações auto-declaradas nos protocolos científicos, com inquéritos, revelam um número muito superior de alunos na situação de vítimas. A inquirição oficial é deste modo pouco fiável.

Para concluir que existe ou não realmente um aumento de violência na escola e que não se trata de uma construção fantasmagórica em torno da insegurança, com manipulação política ou mediática, Debarbieux (2006: 68) assinala a necessidade de serem criadas bases de dados actualizadas no tempo, a partir de inquéritos de vitimização. Sugere igualmente que esses inquéritos sejam reduplicados, para responder de maneira razoavelmente sustentada à questão sobre o possível aumento de violência na escola, frequentemente colocada pelos jornalistas aos políticos, investigadores, forças policiais, etc. Propõe, ainda, que um inquérito, além de medir a frequência das ocorrências e a sua prevalência, deverá também calcular simultaneamente a sua associação (multi-vitimização) e intensidade, na medida em que um número inferior de vítimas pode significar uma vitimização mais profunda e traumatizante.