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CAPÍTULO III – NOTICIABILIDADE DA VIOLÊNCIA ESCOLAR

3. Os jornalistas na mediação simbólica da realidade

3. Os jornalistas na mediação simbólica da realidade

Os estudos sobre a história do jornalismo contemporâneo inscrevem a participação activa dos seus profissionais na redacção das notícias e (re)construção da realidade, investidos de grande responsabilidade na representação dos eventos. São eles, pensados como “comunidade interpretativa” (Ponte, 2002:94), que detêm o poder central de propor quadros conceptuais no interior dos quais é interpretada a informação bruta, fornecendo orientações para a compreensão dos factos em função de interesses políticos, empresariais, económicos ou outros que as diferentes entidades vão gerindo no espaço social.

A natureza de temáticas mais polémicas requer especiais cautelas e respeito pelas normas e regras profissionais, éticas e deontológicas, com a consciência das consequências que possam resultar dos meios e métodos usados. Importa também o conhecimento razoável dos assuntos de interesse público que o jornal se propõe cobrir, o que equivale a dizer que é importante a acumulação de experiência – o saber profissional da experiência feita, ou

tarimba - nestes profissionais, aquilo que Berger e Luckmann (1966:61) designam «acero

social de conhecimentos» para a validação cognitiva dos significados objectivos, escreve Cristina Ponte. Dos jornalistas espera-se, então, uma pesquisa que permita aferir a realidade dos factos para legitimar a actividade jornalística e o seu direito de informar consagrado no Estatuto do Jornalista – Lei nº 1/99, de 13 de Janeiro.

Aqueles autores distinguem quatro níveis de legitimação e que passamos a referir: i) a legitimação incipiente, fundamento pré-teórico do conhecimento sobre o qual devem alimentar-se todas as teorias subsequentes, que conhecemos na legitimação do inquestionável – é assim porque sim; ii) a legitimação com proposições teóricas elementares e esquemas explicativos que relacionam conjuntos de significações objectivas; iii) a legitimação com teorias explicativas em torno de um corpo diferenciado de conhecimentos, fornecendo quadros de referência para a conduta institucionalizada de pessoal especializado, podendo atingir um grau de autonomia em relação às instituições legitimadas; iv) a legitimação por universos simbólicos, corpos de tradição teórica que integram diferentes áreas de significação, numa totalidade de processos simbólicos referentes à experiência do quotidiano (Berger e Luckmann, 1966: 128-131, citados por Ponte, 2002:94-95).

As interacções entre repórteres, as suas fontes e outros funcionários da redacção colocam o jornalista inserido numa organização social e económica que impõe constrangimentos sobre a sua actividade profissional (Breed, 1955),81estando o seu estatuto

dependente da gestão jornalística das fontes noticiosas. DeFleur e Ball Rokeach (1989) teorizam a «dependência dos media» em relação às fontes jornalísticas, afirmando «quanto mais uma audiência confia nos media de massas para a informação, e quanto mais uma sociedade está em estado de crise ou instabilidade, tanto maior será o provável poder dos media (ou que lhes será atribuído)».

O trabalho etnográfico de Fishman (1980), baseado numa observação participativa dentro da redacção de um jornal na Califórnia, permitiu concluir que os jornalistas estão atulhados em estruturas burocráticas das organizações que orientam a sua actividade profissional (Fishman, 1980:51, citado por Schudson, 1991:271). O processo de produção e selecção de informação depende do fluxo das matérias jornalísticas, que têm de passar por diversos gates ou portões (Traquina, 2001). Essas áreas de decisão obrigam o jornalista a fazer escolhas subjectivas e arbitrárias, um ajuizar de valores baseados na sua experiência, atitudes e expectativas (White, 1993:145, citado por Traquina, 2001:69), para decidir se vai ou não escolher e publicar determinada matéria jornalística.

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Breed (1955) identifica seis factores que accionam o conformismo dos profissionais dos media com a política editorial da empresa para que trabalham, além da influência individual: a) a autoridade institucional e as sanções; b) os sentimentos de obrigação e de estima para com os seus superiores; c) as aspirações de mobilidade para arranjar «grandes estórias»; d) a ausência de grupos de lealdade em conflito; e) o prazer da actividade na obtenção de “informações secretas”; f) as notícias como valor ou valor-notícia implicam um desafio constante para vencer a hora de fecho (Traquina, 2000:72-74).

Traquina (2001:76) questiona o poder do jornalista-empregado, no que respeita as preferências e decisões inerentes ao exercício da sua profissão, como é o caso de decidir quem entrevistar e quem ignorar, as perguntas que deve ou não fazer, as citações ou aspectos que deve anotar para redigir de seguida o artigo com determinada tonalidade ou ângulo de enfoque. Sobre a actividade de composição textual, aquele autor recorda que uns itens são destacados em detrimento de outros, como uma espécie de «uso de prova forjada» para «iludir a ignorância dos executivos», ainda que atribua aos jornalistas com estatuto de

estrela uma maior capacidade para mais facilmente transgredirem a política editorial.

A actividade do repórter depende do interesse em «agradar» ao editor (Breed, 1955:80, citado por Schudson, 1991:272) e satisfazer as exigências do receptor e cliente (Traquina, 2001:79), podendo daí resultar a modificação dos seus valores pessoais, em função dos requisitos da organização onde exerce as suas funções profissionais (Epstein, 1973:XIV, citado por Schudson, 1991:273). É por isso relevante entender os “output” das organizações e não os sujeitos, quando certa empresa jornalística decide transformar um acontecimento em

notícia.

Para Molotch e Lester (1974, citado por Schudson, 1991:270), os acontecimentos agendados, que se transformam em notícia, são acontecimentos de rotina, «acidentes», «escândalos» e «situações fortuitas». Os «acontecimentos de rotina», relativos a políticas nacionais, são divididos pelos autores em três subcategorias, a saber:

a) Os «promotores de acontecimentos têm acesso habitual a coleccionadores de notícias» (conferências e comunicados de imprensa, assessorias de comunicação…);

b) Os «promotores dos acontecimentos tentam impedir o acesso de rotina por parte de outros de modo a apresentarem os acontecimentos como seus»;

c) O «acesso é garantido pelo facto do promotor e coleccionador de notícias coincidirem» (jornalista).

Esta classificação merece críticas de Schudson (1995) por não contemplar a espontaneidade dos eventos noticiados, nem a observação diária directa de cenários do mundo factual, com pessoas que operam num sistema cultural com padrões de discurso. Recorda que a linguagem/discurso permite incorporar suposições acerca do que importa, do

que faz sentido no tempo e no lugar em que vivemos, assim como as reflexões que devemos tomar em consideração (Schudson, 1995:14). Não admira que da conjugação das diferentes escolhas redactoriais e vozes, eleitas pelo repórter, e da sua própria voz, que ecoa com mais transparência em certas peças jornalísticas, se critique o facto destes profissionais se pronunciarem sobre assuntos que não dominam com o rigor científico intrínseco à pesquisa académica, porque têm de ser polivalentes e responder aos pedidos da redacção (Bourdieu, 1996), indo ao encontro dos anseios do público.

Nelson Traquina (2001), remetendo para Ericson et. al. (1987), identifica três espécies de saber dos membros da tribo de jornalistas, designadamente a) o saber de reconhecimento, ou capacidade para identificar os acontecimentos que respeitam os critérios de valor-notícia e noticiabilidade; b) o saber de procedimento para orientar o processo de elaboração de notícias; c) o saber de narração que pressupõe a aprendizagem da linguagem jornalística, o

jornalês (Philips, 1976,1993), e o domínio de todo um inventário de discurso (Hall, 1984).

Desse inventário fazem parte expressões como compilar e empacotar informações numa

narrativa noticiosa, em tempo útil e de forma interessante, dominar regras estilísticas com uma sintaxe directa e concisa, palavras concretas, a voz activa, a descrição detalhada, a precisão do pormenor (Traquina, 2001:86 e 118-119).

Eliott (1978:189) diz que a «verdade era a única responsabilidade da profissão do jornalista, um objectivo e uma confiança comparável à responsabilidade da profissão médica pela saúde ou a responsabilidade da profissão legal pela justiça». Mas se pensarmos nos distintos ângulos de análise que podem ser eleitos para o tratamento dos eventos do quotidiano, perceberemos que as matérias reportadas não correspondem exactamente à realidade vivenciada pelos actores sociais, ou observada pelos investigadores no terreno. Ainda que seja o próprio jornalista testemunha directo e ocular dos factos, a reconstrução desses mesmos factos produz dissemelhanças entre o tempo do evento e o tempo da sua representação. É esse desfasamento que pode chocar os diferentes actores no terreno e as audiências que também percebem a realidade de forma distinta, não se afigurando essa verdade como irrefutável e axioma universal.