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CAPÍTULO II VIOLÊNCIAS NA GEOGRAFIA ESCOLAR

4. Comportamento de desrespeito pelas regras escolares, como chegar atrasado, manter deliberadamente um comportamento disruptivo e sair das aulas antes de

4.5. Violências sobre os educadores

4.5. Violências sobre os educadores

A partir da década de noventa, também se passou a falar da violência dirigida contra o corpo docente e não docente ou seus pertences, designadamente o automóvel por alunos ou respectivos familiares. A difícil tarefa de ser professor nas actuais sociedades ocidentais foi reconhecida publicamente, há cerca de duas décadas, pelos ministros da Educação da OCDE que sublinharam o papel dos docentes que têm de «responder às expectativas dos pais quanto aos resultados escolares, trabalhar para o objectivo social de um alargamento do acesso ao ensino e empenhar-se numa participação mais democrática no seio das escolas» (OCDE, 1990:109). Além da falta de condições de trabalho e diminuição de apoio da parte da sociedade, que os acusa de tudo um pouco, os professores são confrontados com o aumento de indisciplina e violência nas escolas e vêem questionada a sua autoridade no exercício da sua profissão. Sentem-se, por isso, ameaçados e afectados na sua integridade moral e física, sem a devida protecção dos seus pares e do Estado. A expressão traumática da violência no quotidiano de algumas escolas coabita com a perda do ideal do que é ser professor, determinando, em casos pontuais, o recurso aos media para tornar públicas situações percebidas como violentas pelos actores no terreno.

De acordo com George Fotinos e Jacques Fortin (2001), o maior interesse pelo fenómeno da violência na escola deu-se a partir do momento em que a violência entre alunos (bullying) passou a derrapar para uma violência dos alunos sobre a escola (vandalismo) e sobre o seu pessoal, constituindo-se, por esta via, como uma «clara ameaça ao poder». O poder da cultura do professor, ou seja, o poder simbólico da instituição escolar na relação com os seus públicos mais jovens, revela-se deste ponto de vista fragilizado. A discussão pública sobre as causas que determinam a reacção agressiva/violenta dos alunos à autoridade dos adultos no espaço escolar, parece apontar, em certa medida, para a sua origem no exterior da escola, designadamente no bairro, na família ou ainda por influência dos media. É também anunciada como causa a obrigatoriedade escolar até aos 16 anos «de jovens mal- educados pelas famílias de estruturas frágeis, demissionárias, mais preocupadas com o seu bem-estar do que com o futuro das suas crianças» (Fotinos e Fortin, 2001:237).

A violência sobre os professores não é uma violência de que se goste de falar com objectividade sem os fantasmas, mitos ou nostalgia de um passado ainda recente que povoa as mentes dos sujeitos, na sua leitura do actual estado de coisas, reconhecido como uma degradação e ineficácia do sistema de ensino e do poder dos educadores. Os castigos corporais do passado, a que estava associada a aprendizagem escolar, e tema de debate no contexto inglês com alguma frequência, são factores traumáticos por infligirem sofrimento intencional na vítima com a finalidade de reparar uma ofensa. Também é de difícil compreensão a violência de crianças e jovens sobre o adulto, a afectar neste caso o professor ou pessoal não docente, na medida em que parece questionar alguns dos valores democráticos e de uma escolarização desejada para todos os cidadãos, mas ainda por cumprir e já em crise.

A investigação universitária do contexto nacional revela algumas reservas no tratamento desta modalidade de violência, apesar das orientações pedagógicas «envergonhadas», postas nas fileiras dos confins de reflexões académicas, que silenciaram em alguns casos a realidade no terreno, concorrendo para um certo obscurantismo do fenómeno. Já explicámos que a pesquisa se focaliza preferencialmente no bullying, na etiologia e consequências da violência. Estudam-se designadamente as desigualdades sociais, os problemas familiares e sociais, as características dos estabelecimentos de ensino, além da “autoridade” do professor que não deve confundir-se com “autoritarismo”, ou seja, discute- se a legitimidade do poder do professor. Desde os anos 90 do século passado, em que também por cá foram tornadas públicas pelos media, as agressões aos professores deixaram de ser silenciadas para se tornarem uma realidade em evidência, que alguns diziam ser resultado do sensacionalismo jornalístico e outros sentiam necessário combater.

Dado que a pesquisa nesta matéria é pouco consistente, lembramos os trabalhos de João Amado e Isabel Freire (2002) que incluem os comportamentos violentos dos alunos sobre os docentes, ou outro pessoal da escola, no terceiro nível de indisciplina, que os autores definem como «conflitos da relação professor-aluno» que põem em causa o estatuto de ambos e a autoridade do professor. Os insultos, obscenidades, ameaças, coacção, desobediência, contestação afrontosa, réplica desabrida a chamadas de atenção e castigos, para além da agressividade e violência contra docentes e funcionários e o vandalismo contra a propriedade dos mesmos e da escola, são englobados nesse terceiro nível de análise do fenómeno.

Ainda segundo estes autores, as situações de maior agressividade, atingindo, por vezes, as «raias» da delinquência, passam-se nos corredores, recreios e nos arredores da escola. Consideram que estes comportamentos anti-sociais contra professores ou entre pares podem também ocorrer dentro da sala de aula, ainda que em número limitado. Para que aconteçam de forma sistemática, T. Estrela e Amado (2000:258) dizem ser necessário que se reúna um conjunto de condições, estreitamente relacionadas com o «permissivismo e falta de assertividade do professor». Socorrem-se da literatura (Marsh, Rosser e Harré, 1980; Werthman, 1984; Amado, 1989; Johnson e Johnson, 1999) para enunciar diferentes constrangimentos pessoais e contextuais, designadamente o estilo de autoridade do professor, as suas estratégias de ensino, a organização da actividade e da comunicação, a estrutura e clima relacional da turma, etc. (Amado, 1998; T. Estrela e Amado, 2000:257). Assim, estes autores atribuem às características comportamentais dos docentes, em especial dos mais permissivos e tolerantes, ou ainda à sua diminuta experiência profissional, as manifestações de carácter violento dos alunos no espaço escolar.

De forma diferente, Yves Tyrode e Stéphane Bourcet (2000,2002:87) interpretam este tipo de violência sobre os professores como uma consequência da confusão ambiente que o aluno utiliza para fazer reagir os pais, manipulando-os, no sentido de agredirem o professor ou restantes actores da escola. Semelhantes procedimentos inscrevem-se na perspectiva de

vitimização dos docentes e pessoal não docente a que aludem alguns trabalhos reunidos sob a

designação «Les personnels victimes de la violence: leurs réactions et celles des institutions» (Charlot e Émin, 2001:283). Essas abordagens de diferentes campos disciplinares propõem novas formas de encarar e tratar a violência escolar, que atinge os diferentes públicos no terreno, a partir de inquéritos de vitimização, de avaliações físicas ou psicológicas traumáticas, de testemunhos e reacções dos actores vítimas dos eventos produzidos intencionalmente pelos alunos e seus familiares. São trabalhos do campo médico do ramo da psiquiatria (Horenstein e Voyron-Lemaire, 2001) e da criminologia (Syr, 2001).

É sobretudo no Canadá e nos Estados Unidos da América que estão em funcionamento estratégias de encaminhamento e células de intervenção do ramo da psiquiatria para irem ao encontro das vítimas de violência escolar, que se encontram em situação de crise. Aqueles autores também fazem notar que, após um traumatismo psicológico, como é por exemplo um atentado à dignidade e auto-estima do professor, as diversas representações, teorias e crenças pessoais sobre o mundo, que formam a base da percepção da realidade, mudam bruscamente. Lembram que, enquanto não ocorre a reconstrução narrativa viável, a pessoa afectada

persiste na demanda de sentido, o que desencadeia a persistência do evento traumático e das emoções associadas que entram em conflito com a regulação das emoções.

No que respeita à população das escolas francesas, vítima de agressão física e/ou de ameaças graves e de morte, Horenstein e Voyron-Lemaire (2001:286) recordam que os estudos apontam uma média de 90,5, comparativamente à escala Mississipi34 para as

populações civis. Estes dois psiquiatras consideram os docentes uma população de risco, em especial as mulheres que aparentam ser atingidas mais frequente e gravemente que os homens dentro das salas de aulas. Os estudos apontam as professoras em maior número na docência daí se pensar que são mais vítimas de violência, mas desconhece-se em concreto as reacções dos professores homens às provocações dos alunos. Os autores defendem que as lesões físicas graves, decorrentes de armas brancas, tendem a estar mais relacionadas com os homens-professores que participam com maior frequência as agressões. Para as mulheres- professoras, pelo contrário, por vezes em situação de famílias monoparentais e fragilidade orçamental, procuram preferencialmente tratamento médico e não dão seguimento às agressões, nem participam às entidades legais as ocorrências de que são vítimas no seu local de trabalho.

Nem as estatísticas dos diferentes Ministérios ou a recolha de dados pelas forças policiais, nem certas investigações norte-americanas ou europeias permitem chegar com algum rigor a conclusões sobre o estado físico e emocional dos docentes e não docentes, vítimas de violência dos alunos e respectivos familiares, asseguram Horenstein e Voyron- Lemaire (2001:289). Face a este panorama, coloca-se a questão das «cifras negras» relativas às agressões violentas aos docentes que, por motivos bem díspares, não são denunciadas à polícia, do que se pode conjecturar uma realidade bem mais problemática do que aquela que é divulgada com certa regularidade pelos meios de comunicação social. Não consideram adequado estabelecer uma relação simples e directa entre a ocorrência de violência e a inexperiência dos docentes, como foi defendida nomeadamente por T. Estrela e Amado (2000), entre outros investigadores que se inscrevem na mesma linha de análise, por não se verificarem diferenças traumáticas significativas em função do factor idade. A abordagem do fenómeno por inquéritos de vitimização conduz a resultados que não correspondem à imagem e representação habituais do problema, que inscrevem a falta de preparação dos professores como a principal causa para a expressão de violência na sala de aula.

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A escala Mississipi permite definir um perfil de estado de stress pós-traumático das vítimas de atentado, acidentes graves de trabalho ou da vida pública, a partir de uma base de presunção de doença fixada pela literatura internacional à volta de uma média de 100 (Horenstein e Voyron-Lemaire, 2001:286).

Para apreciar as representações das violências nas escolas pela óptica dos diferentes actores implicados no acto, Jean-Hervé Syr (2001:301), do campo da criminologia, baseia a sua análise nas informações obtidas através de entrevistas35 realizadas a esses actores para as

relacionar posteriormente com a percepção do fenómeno por parte das autoridades policiais. Dos resultados obtidos, constatou que a maioria das agressões era praticada por familiares dos alunos do sexo feminino, o que pode explicar-se pelo facto de serem as mães que mais vezes se mantêm em contacto com a escola, atendendo ao número de famílias monoparentais. Com base nas questões analisadas, Syr (2001:321) infere que um funcionário se encontra em risco de vitimização, mais ou menos grave, sempre que esteja na presença de um intruso36 em relação ao qual passe a adoptar uma atitude disciplinadora ou

autoritária. Apreende os alunos como «agressores imediatos» que recorrem à violência verbal e física, sendo esta geralmente precedida daquela. Também são apontados como causa principal que acciona eventuais diferendos opondo familiares à instituição educativa e, consequentemente, aos docentes, funcionários ou outros alunos e suas famílias (Syr, 2001; Tyrode e Bourcet, 2002:87).

Da leitura dos dossiers sobre as informações recolhidas através de entrevistas aos actores sociais no terreno, Syr (2001) regista dificuldades sentidas pelos funcionários à medida que têm de enfrentar atitudes de certas famílias com carências económicas e diferentes culturas. A origem étnica é susceptível de influenciar o clima da instituição escolar à medida que decorre o processo de adaptação/inserção dos familiares e seus descendentes, detentores de hábitos distintos daqueles que são habituais na escola do país de acolhimento. Neste encontro multicultural de actores, que não partilham das mesmas formas de estar na vida, nascem tensões e conflitos complexos. Para minimizar eventuais diferendos, Syr (2001:353) sugere a criação de uma dinâmica de bairro propícia à inserção das famílias num quadro de vida favorável às crianças e adolescentes, sobretudo os que estão inseridos nas comunidades marginais, ao mesmo tempo que as escolas investem no desenvolvimento de projectos inovadores que possibilitem uma intervenção conjunta com as forças vivas do espaço social.

Um relatório realizado em Inglaterra por Gill e Hearnshaw (1997, citados por Blaya, 2006:63) revela que o «risco de ser vítima aumenta quando um adulto tenta dominar ou conter fisicamente um aluno, excluir da sala de aula um aluno desobediente ou repreendê-

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A investigação foi realizada em colaboração com o Laboratório mediterrâneo de sociologia (LAMES) e o Laboratório de investigação sobre a delinquência e os desvios (LRDD).

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lo», sucedendo esses problemas principalmente «na sala de aula, pátio de recreio» sendo os estabelecimentos com problemas de organização os que mais riscos apresentam. Aqueles investigadores e também Poyner e Warne (1988); Elton (1989) e o Ministério belga (2003), evocados por Blaya (2006:64), concluem que a «violência física contra os docentes continua a ser rara», admitindo no entanto que os empurrões, a violência verbal e o efeito cumulativo de comportamentos perturbadores fazem parte do quotidiano da relação professor aluno e são fonte de «stress crónico». Um estudo do Instituto Nacional Espanhol da Qualidade na Educação (1998) partilha as conclusões daqueles autores e admite que essas condutas são uma «fonte de desmotivação» que pode induzir um efeito de esgotamento (Esperanza, 2001), obstáculo às inovações necessárias a uma melhoria do clima escolar (Gottfredson, 2001), segundo a revisão da literatura realizada por Blaya (2006).

Perspectivam-se, assim, novas linhas de análise ainda por explorar na pesquisa da violência escolar, implicando diferentes modelos de observação com o envolvimento de campos científicos por meio dos quais possam ser estudados os comportamentos sociais dos sujeitos jovens e adultos. Em Portugal, Suécia, Noruega e Inglaterra, esses problemas são abordados do ponto de vista psicológico com estudos académicos a incidirem mais frequentemente no school bullying, com especial enfoque nas relações entre alunos. Blaya (2001)37 convida a reposicionar as práticas da pesquisa no sentido de se vir a contemplar a

violência contra os docentes e pessoal da instituição escolar, entre outras vítimas, e o impacto (negativo) que pode produzir no clima escolar e no sucesso dos alunos e consequências traumáticas daí resultantes.

Além do insucesso escolar, a autora sublinha também a fraca assiduidade de alunos e professores e a perda de auto-estima que podem levar a eventuais condutas auto-violentas, tais como o suicídio da vítima que, diga-se, não recebe, por diversas razões, um acompanhamento especializado adequado para a levar a vencer qualquer tipo de patologia relacionada com a sua vivência escolar. Propõe ainda que se atenda à percepção dos docentes e encarregados de educação para uma abordagem mais fina das práticas estruturais, institucionais e culturais que influenciam as políticas públicas e as situações nacionais ou internacionais. Trata-se, pois, de um dos principais objectivos do trabalho de investigação do Observatório Europeu da Violência Escolar, no âmbito do qual Blaya estrutura o seu Plano

Anti-Violência.

A autora alerta ainda para a vitimização dos docentes pelos colegas e ou pela direcção do estabelecimento de ensino, que a autora diz ser muito pouco abordada pela investigação, à excepção dos trabalhos sobre o stress dos professores ou as vítimas de assédio moral no contexto escolar (O´Moore, 1999; Janot, 2002, citados por Blaya, 2006:65). Considera que o silêncio, que acarreta consequências de auto-estima e culpabilidade da vítima, produz impacto nas «condições de trabalho e na saúde, mas também na escolaridade dos alunos e na atmosfera geral do estabelecimento», não devendo por isso ser negligenciado, adverte.