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CAPÍTULO II VIOLÊNCIAS NA GEOGRAFIA ESCOLAR

5. Violências escolares, regulamentação disciplinar e a le

5. Violências escolares, regulamentação disciplinar e a lei

No início do século XX, Durkheim (1984) teorizava a disciplina como um conjunto de regras morais e sociais, leis emanadas da sociedade, um sistema de punições e de recompensas. A organização da classe e do trabalho escolar experimentava mecanismos de socialização metódica e de regularização da conduta dos sujeitos, sendo qualquer delito entendido como uma infracção às regras ou normas estabelecidas. As regras podiam ser de três tipos:

Regras formais, estruturadas segundo a produção legislativa e quadros penais,

regulamentavam a organização pedagógica e disciplinar da escola pública, definindo um sistema geral de obrigações, interditos e punições;

As regras não-formais, elaboradas num estrato intermédio do sistema, vigoravam

nos regulamentos internos, adaptados às características próprias de cada instituição;

As regras informais, decorrentes da relação educativa entre professor e aluno,

eram muitas vezes descritas em termos conflituais e que Friedberg (1995:18) chamou jogo social da cooperação e do conflito.

A abordagem “jurídico-política” dos castigos corporais ou punição, largamente ilustrados na literatura impulsionada pelos trabalhos de Michel Foucault (1975, 1977, 1988, 1996) evidencia algumas técnicas disciplinares que tinham por objectivo imediato tornar a classe um aparelho eficiente de trabalho escolar, ao mesmo tempo que contribuíam, em termos mediatos, para a socialização de cada indivíduo. Assim, através da disciplina escolar:

Organizava-se o espaço analítico e serial, inserindo os alunos num espaço individualizado, de modo a que cada um tivesse o seu lugar em função das

suas capacidades, fazendo da instituição «uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar» (Foucault, 1996:134);

Determinava-se uma nova economia positiva do tempo de aprendizagem para sujeitar os corpos aos imperativos temporais, estabelecendo-se a hierarquização dos saberes e a divisão dos alunos em classes;

Vigiavam-se as condutas e o trabalho: a vigilância hierárquica, exercida sobre os alunos e adultos, baseava-se num mecanismo panóptico38 em que os sujeitos

deveriam sentir-se constantemente observados, «Uma relação de fiscalização, definida e regulada, (…) como um mecanismo que lhe é inerente e multiplica a sua eficiência» (Foucault, 1996:158);

Instituiu-se o mecanismo penal, a sanção normalizadora que tinha como objectivo reprimir uma série de condutas mais ténues, que escapavam aos grandes sistemas de castigo para identificar e reduzir os desvios.

Encarada com uma função social complexa, a punição tinha repercussões que não se limitavam ao simples efeito sancionatório, na medida em que os métodos punitivos não eram o mero resultado da aplicação da justiça pois traduziam mecanismos de poder, o poder do adulto sobre a criança ou jovem. Daí que a punição ou castigo passassem de «uma arte de sanções insuportáveis», física ou psicologicamente, a «uma economia de direitos suspensos» (Foucault, 1988:17, citado por Penedo, 2003:83), dando origem a uma sociedade disciplinar estruturada em torno do suave controlo, que implica, como se referiu, vigilância dos corpos no espaço e no tempo, e participação de técnicos, convertendo-se a punição numa arte dos efeitos em que a justiça ganha novo valor simbólico.

Assim, segundo Eirick Prairat (1994, 2003) e Michel Foucault (1996), os castigos disciplinares tinham como propósito fazer respeitar a ordem da classe assente numa dupla referência jurídico-natural. Um dispositivo institucional de interditos, formulados pelas leis e normas escolares, definia a falta e a respectiva punição. Cada contexto educativo elaborava um regulamento interno a partir de um sistema psicológico de valores para regimentar as

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O Panóptico de Bentham consiste no poder intervencionista do Estado e das instituições que o representam, através de sofisticados mecanismos de dominação para exercer o controlo individualizado de cada sujeito, a partir de um ponto de observação (como a torre de controlo). Nos tempos mais recentes, este princípio de vigilância hierárquica passa também a ser exercido na escola por sistemas electrónicos complexos que captam as condutas das pessoas, mediante um dispositivo central e câmaras instaladas estrategicamente nos locais considerados mais sensíveis (pátios, corredores, sala de convívio, à excepção de casas de banho e salas de aula).

relações entre mestre e alunos. Este último plano não representava uma estrutura jurídica

rígida, mas antes uma estrutura psicossociológica que avaliava e determinava a maior parte

dos comportamentos e acontecimentos da vida quotidiana da classe e da escola (Prairat, 2003:139-140).

São sobejamente conhecidas as teses de Rousseau, Kant e Durkheim e da sua forma de conceber a educação dos jovens. Se para o primeiro a sanção deveria ser natural e decorrer da experiência da criança, para os restantes, a sanção escolar não possui virtudes correctivas porque é totalmente virada para a interiorização da regra. Durkheim (1984), por exemplo, explica o que entende por «castigo» e refere os papéis que a actividade de castigar desempenha numa criança, no espaço social ou na escola, como se depreende do seguinte excerto:

«Castigar, não é torturarmos alguém no seu corpo ou na alma; é sim, perante a falta, afirmar a regra que a falta negou. É esta a grande diferença que existe entre os papéis desempenhados pelo castigo, na educação da criança e no adestramento do animal. É que os castigos que infligimos ao animal para o adestrarmos, somente poderão produzir os seus efeitos se consistirem em sofrimentos efectivamente sentidos. Para a criança, pelo contrário, o castigo é tão-somente um aviso material mercê do qual se traduz um estado interior; é uma notação, uma linguagem, por meio do qual, quer a consciência pública da sociedade, quer a consciência do mestre na escola, exprimem o sentimento que lhes inspira o acto reprovado» (Durkheim, 1984:280-281).

Um novo paradigma disciplinar de referência transnacional – movimento conhecido por Educação Nova assente nos conceitos de autodisciplina, de autonomia, e de self-

governement – investia na subjectividade e na governamentalidade dos sujeitos para o

conhecimento das características pessoais de cada aluno, das suas inclinações e defeitos. Essa linha de discplinação pressupõe uma intervenção organizacional e pedagógica, centrada num rigoroso mecanismo disciplinar com técnicas suasórias e persuasivas. Valoriza a regra e a ordem, privilegia a sanção social, como reabilitação da regra violada, corrigindo o prevaricador e exercendo a exemplaridade perante o grupo. Assente no formalismo da relação pedagógica, a intervenção disciplinar torna-se socialmente eficaz, rentabiliza as características de cada criança/jovem e a mobilização constante do seu corpo, numa pedagogia de postura e auto-controlo.

A breve sistematização das grandes áreas de estudo da violência na escola levantou questões pertinentes a propósito do enquadramento disciplinar e legal dos comportamentos violentos que afectam a vida escolar. Em alguns trabalhos de T. Estrela e Amado (2000), Amado e Freire (2002) são reconhecidas dificuldades para estabelecer fronteiras rígidas entre a agressividade, a violência moral e a delinquência juvenil, admitindo que «a indisciplina escolar pode degenerar, com facilidade, em violência e em delinquência “persistente” [o] princípio de uma carreira de desvio», dependendo da frequência desses comportamentos desviantes (Coulby e Harper, 1985, citados por T. Estrela e Amado, 2000:254).

Leonardo e Pereira (1998), Syr (2001) e Leonardo (2004) apresentam alguns instrumentos que contribuem para uma melhor clarificação da perspectiva legalista das violências escolares, que visa o enquadramento penal das infracções às normas. Em termos comparativos, assinala-se que esta perspectiva foi sobretudo privilegiada pelos investigadores e autoridades francesas apostados na criação de planos39 de actuação visando

a prevenção da violência no universo escolar. Países francófonos como a Bélgica e o Canadá têm desenvolvido políticas de carácter preventivo das “incivilidades”, modalidade de violência que pode contribuir para enfraquecer a ordem escolar.

Com a transformação da sociedade de massas e dessacralização da ordem escolar, também as relações de poder de tipo disciplinar sofreram alterações, tendo sido postas em causa com as novas tendências a que a instituição escolar ainda não se adaptou plenamente, sobretudo na gestão dos seus diferentes públicos. Os professores não estão preparados, nem pedagógica, nem emotivamente, para as situações de violência de que são vítimas, nem a organização escolar apresenta procedimentos disciplinares bem definidos e eficazes para a resolução dos conflitos violentos que ultrapassam o exercício da sua função educativa.

Os responsáveis escolares procedem à avaliação dos comportamentos dos alunos, em conformidade com a legislação em vigor em cada país, a regulamentação disciplinar e o regulamento interno criado de acordo com a realidade social das escolas. Quando participadas as ocorrências às autoridades, segue-se um longo processo de inquirição, cujas deliberações finais visam assegurar a protecção da identidade do agressor (aluno ou seus familiares) e, normalmente, as sanções aplicadas não produzem o efeito desejável de

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Para uma revisão dos diferentes planos nacionais e programas de intervenção e de prevenção, implementados em França, consultar Blaya (2006:95-125) que começa por recordar o primeiro dispositivo formal de luta contra a violência na escola, de 27 de Maio de 1992, da responsabilidade de Jack Lang, após o qual sucedem vários planos que a autora explica resumidamente.

reparação dos danos materiais e psicológicos causados nas vítimas, que se sentem desprotegidas perante a lei, o Estado e própria instituição (Horenstein e Voyron, 1997).

Com a autoridade dos educadores a vacilar (Prairat, 2003), face à diluição e subversão do quadro normativo e natureza da disciplina escolar, o direito e seus mecanismos jurídicos tendem a ocupar o seu lugar no espaço intermédio da escola para formar os cidadãos e iniciá- los a uma vivência cívica. Mas o que ganha ou perde a instituição escolar nessa busca de legitimidade com suporte jurídico? Antoine Garapon e Thierry Pech (2001:43, citado por Prairat, 2003) sublinham que a escola se arrisca a perder eficácia, rapidez e coesão ao abdicar da sua função de espaço intermédio, banalizando a sua resolução dos conflitos. Também a tentativa de anular o arbitrário e o carácter repressivo de algumas práticas disciplinares, leva a substitui-las por sanções orientadas por mecanismos pouco satisfatórios do ponto de vista educativo que podem gerar efeitos perversos, aumentando os litígios (Prairat, 2003:121).

É sabido que o tempo do procedimento judicial, decorrente dos actos violentos com expressividade na escola, nem sempre é compatível com o tempo educativo que concilia de forma dialéctica a maturação mais ou menos rápida da resposta à indisciplina dos alunos. Com efeito, enquanto a sanção educativa exige uma resposta suficientemente rápida, com os sujeitos a partilharem a maior parte do tempo o mesmo espaço escolar (sala de aula, corredores), o procedimento jurídico reclama tempo e pressupõe meandros tortuosos com um conjunto de regras impessoais e formais que circunscrevem os limites legais. Prairat (2003:122) reconhece ainda que, nos tempos actuais, o desafio está em saber conciliar direito e disciplina para uma combinação hábil de forma a neutralizar aquilo que os distingue, face à urgência mais recente da criação de grandes orientações em matéria de disciplina nas escolas do primeiro ciclo. Curiosamente, é nesse nível de ensino que os problemas começam a fazer- se notar mais recentemente, avisa o autor.

Ramognino et al (2001:121) propõem uma perspectiva sociológica (e não jurídica) para a identificação das propriedades dos corpos dos actores sociais, física e psíquica, que estão ligadas à esfera da actividade do dispositivo escolar na sua globalidade. O termo

propriedades dos corpos é um empréstimo do pensamento de Foucault e abarca os alunos,

docentes, pessoal não docente e familiares dos alunos. Para os alunos significa o desenvolvimento da capacidade de habitar o mundo natural e social, para os adultos representa a actividade de gestão dos corpos e das suas actividades pedagógicas. O território

abarca o contexto educativo onde decorrem as actividades inerentes ao dispositivo escolar e à sua finalidade objectiva, no encontro dos alunos e adultos.