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A investigação internacional sobre as violências escolares A investigação internacional sobre as violências escolares

CAPÍTULO II VIOLÊNCIAS NA GEOGRAFIA ESCOLAR

4. A investigação internacional sobre as violências escolares A investigação internacional sobre as violências escolares

Um resumido historial das violências escolares, desde a América Colonial dos anos 1647-1779 aos nossos dias, de Elizabeth Midlarsky e Helen M. Klain (2005:37-57) e também de Debarbieux (2006), sustenta a ideia de que o fenómeno não é uma realidade recente e tem vindo a assumir diferentes formas ao longo dos tempos. A pesquisa permitiu a estes autores identificar alguns factores relacionados com o fenómeno, nomeadamente as crenças religiosas, as diversidades raciais ou étnicas, os direitos civis, valores e processos revolucionários.

No universo americano, foi entre 1964 e 1968 que se deram várias ofensas no espaço escolar, na ordem das 396 ocorrências, com elevados ataques a professores que atingiram as 253 unidades (Beavan, 1967, citado por Midlarsky e Klain, 2005:44). O exponencial de violência referenciada para a época pode ser atribuído ao aumento do número de estudantes envolvidos no “Baby Boom Generation”, que afectou as escolas americanas durante a década de sessenta (Crews e Counts, 1997, citados por Midlarsky e Klain, 2005:44).

Na Europa, mais precisamente em França, Maio de 68 é conotado como uma viragem significativa na educação, cuja influência se alargou a outros horizontes, também sensíveis às ideologias estudantis defendidas na época pelos jovens franceses. Como contraponto, os estudos europeus sobre as violências escolares assinalam, com alguma regularidade, a complexidade da cultura americana, percebida como «um formidável laboratório

urbano» (Body-Gendrot, 1997). Nesse universo parece existir uma cultura da violência, que

consta de algumas investigações dos anos setenta sobre os conteúdos da televisão,11 e uma

geração social que demonstra interesse pelo consumo de produtos culturais apreendidos como violentos.

As abordagens inclinam-se a demonstrar que a violência nos media, ainda que apareça estreitamente vinculada à natureza do mundo social em que ocorre, a sua visibilidade obriga a ter em conta algo mais do que uma causalidade linear, na medida em que se tem passado da era da «violência vivida» para a era da «violência vista» (Chesnais, 1982). Logo, como anuncia Thierry Vedel (1995), a relação entre meios de comunicação e violência envolve múltiplos subterfúgios que permitem abrir um debate vivo e apaixonado com diferentes registos. Princípios organizativos das sociedades democráticas e a legitimidade do Estado

11 Num estudo sobre a violência e televisão, George Gerbner adianta que, na Grande Bretanha, a violência

estabelecem valores, normas, leis e relações entre a esfera pública e privada (Vedel, 1995:11).

A investigação sobre a violência escolar distingue a firmeza das políticas norte- americanas na gestão do fenómeno da criminalidade pelo recurso massivo à reclusão, segundo o paradigma da “tolerância zero”, em detrimento de políticas de prevenção mais apreciadas nos países europeus que valorizam simbolicamente a “negação da violência”. São notadas diferenças significativas de ordem histórica e cultural entre os dois continentes, actualmente orientados pelo consumo de bens culturais, na maioria norte-americanos. Tais conteúdos circulam nos media como um mal virtual, bem longínquo, mas que exerce nos jovens fascínio pela violência, sentindo-se assim estimulados a resolver os problemas pela força na relação com o “outro”. Essa aprendizagem é conseguida através de filmes, bandas desenhadas ou outras narrativas com modelos comportamentais violentos e sugestivos para crianças e jovens menos acompanhados pelo adulto (Body-Gendrot, 1997:331).

As crianças e adolescentes que observam muita violência na televisão, vídeo, cinema ou outros suportes tendem a tornar-se frequentemente mais agressivos e sentem menos empatia para com as vítimas de agressão (Pearl et al., 1982; Eron e Huesman, 1986; Olweus, 2000:45).12 À semelhança do que adiantou Lauwe (1986), relativamente à convivência

quotidiana da criança com os adultos, Brendtro e Long (1995:54) frisam que os modelos e as mensagens violentas dos adultos podem incutir na criança ou no jovem uma actuação violenta. Os autores acentuam também que esses jovens podem vir a fazer uso de substâncias aditivas, como o álcool ou outras drogas que alteram a fisiologia cerebral e o comportamento sócio-emocional, conduzindo à perda de auto-controlo na resolução dos conflitos de modo flexível.

Trabalhos mais recentes (Debarbieux, 2006) admitem de novo alguns perigos associados à influência da cultura americana, tendencialmente valorativa da violência, que tem vindo a preencher as grelhas da programação televisiva, no contexto global e europeu, e marca presença no cinema ou noutros meios electrónicos, como é o caso da Internet. A busca de sensações fortes e prazer leva ao uso de técnicas eficazes, sofisticadas e efeitos especiais para a adesão das audiências ao espectáculo encenado. Essa influência, ainda que de natureza ficcionada, tende a afectar as crianças e os jovens europeus que podem vir a reproduzir

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Para traçar algumas linhas condutoras do conhecimento sobre o fenómeno da violência entre pares, ou maus-tratos entre iguais, designado pelo termo bullying, na terminologia Escandinávia, Olweus (1993:7-8) parte de quatro histórias de jovens alunos, entre os 10 e os 13 anos, que colheu na imprensa para ilustrar algumas relações conflituosas que ocorrem entre alunos no universo escolar.

modelos comportamentais marginais, exibidos por algumas personagens mais atractivas e passíveis de imitação. Também as múltiplas potencialidades das novas tecnologias proporcionam o cyberbullying, considerada uma forma emergente de violência a que recorrem cada vez mais jovens para atingirem os seus pares, usando mensagens obscenas com a intenção de denegrir a vítima. São problemas, por vezes, transpostos para dentro da escola, onde se pode dar o encontro de agressor e vítima, embora os jovens pareçam pouco informados sobre o impacto que estas práticas podem causar nas suas vidas.13

Segundo Pedro Nogueira (1995), cuja pesquisa incidiu no contexto norte-americano, a viragem nas relações vividas nas escolas públicas desse país dá-se em meados dos anos 60, mais cedo que na Europa, tornando visíveis e «incrivelmente comuns» a agressão e insubordinação dos estudantes para com os professores, sendo a violência nas escolas, especialmente entre estudantes, vista como «norma». O autor reconhece uma «crise de autoridade» dos professores americanos que têm de «pensar duas vezes sobre a forma como repreendem um aluno» para a medida não ser entendida como um «desafio para uma confrontação física, para a qual muitos [professores] não estão preparados» (Nogueira, 1995: 197).

Também Joaquim Azevedo (1994:153-154) admite que em países com aceleradas mutações sociais, como os Estados Unidos da América, se assiste a contradições dos valores pedidos à escola, não raras vezes desprezados pelas famílias e pelos meios de comunicação social que exercem uma forte influência negativa sobre o público jovem. As imagens de uma cultura contemporânea, com cenários de acções violentas, seduzem as crianças e adolescentes que se deixam efectivamente impregnar em massa. O autor menciona a propósito os resultados de inquéritos realizados naquele país, há cerca de 30 anos, a partir dos quais foi possível concluir que a maior percentagem dos entrevistados afirma ter sido objecto de disparos com armas de fogo, durante o ano anterior a inquirição.

Na América do Norte, o Safety School Survey, desde 1976, e o National Crime

Victimization Survey (NCVS) beneficiam de inquéritos oficiais de vitimização, com relatórios

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Sobre o bullying através das novas tecnologias (cyberbullying), são de considerar os dados de Daphne Project (Smith, Thomson e Tippett, Goldsmiths, University of London, U.K.); o estudo exploratório de Genta, Brighi e Guarini (Departmento de Psicologia, Universidade de Bologna, Italia); a pesquisa de Calmaestra, Ortega e Mora- Merchán (Universidade Córdoba e Universidade de Sevilha, Espanha) e o estudo de Almeida, Correia, Esteves, Gomes, Garcia e Marinho (Universidade do Minho, Instituto da criança, Portugal).

anuais compilados e publicados pelo National Center for Education Statistics (NCES, 2004),14 indicadores da delinquência e da segurança na escola. Desde 1993, os inquéritos

anuais do NCVS partem de uma amostragem de 70 000 alunos e de 60 000 docentes e membros do pessoal da direcção escolar; a do Youth Risk Behaviour Survey abarca entre 11 000 a 16 000 alunos e, desde 1995, é usada uma amostragem de 9 000 alunos, para o School

Crime Supplement.

Além dos Estados Unidos, a que Hannah Arendt (1972:225-228)15 dedicou uma

reflexão crítica a propósito da «crise» da educação e da «americanização» dos filhos de imigrantes, também o Brasil é representado na investigação como um universo com elevada carga de violência nas suas escolas. A literatura brasileira oferece quatro estudos no período 1980 a 1995 (Sposito, 1998)16 e, em 1998, a UNESCO promove o ponto da situação numa

população jovem com idades compreendidas entre os 15 e os 24 anos de idade nas escolas deste país.17 Em 2002 são divulgadas as conclusões de um novo estudo conduzido pela mesma

entidade internacional em 2000, dando as escolas brasileiras como locais dominados pela violência dos gangs e porte de armas.

O difícil «clima» escolar vivido nos estabelecimentos de ensino destes dois países (EUA e Brasil) tem vindo a exigir a implementação de medidas que se prendem com a instalação de detectores de metais e sistemas de vigilância electrónica para o controlo das entradas no recinto escolar e identificação de armas transportadas pelos alunos. Comparando o clima escolar brasileiro ao da favela Rocinha de Rio de Janeiro, o etnógrafo e investigador

14 NCES é uma entidade federal cujo mandato depende do congresso dos EUA e tem ligação ao Governo

desse país por intermédio do Bureau of Justice Statistics.

15 Para Arendt (1972:226), é pela escolarização, educação e americanização das crianças que se podem fundir

os mais diversos grupos étnicos num único povo, reconhecendo que num país de imigrantes, como os EUA, são as escolas que desempenham esse papel de inclusão social. Sublinha ainda que crianças bem-educadas acabam por afectar os pais para edificar um «mundo novo» (a expressão Novus Ordo Saeclorum – Uma Nova Ordem do Mundo – é o lema inscrito em cada dólar) construído pelos vivos e por aqueles que a imigração vai incluindo, a partir de um «mundo preexistente» em cuja construção também participaram os antepassados relembrados.

16 Marília Pontes Sposito (1998) cita: Guimarães, Áurea (1984). Escola e Violência; relações entre vigilância,

punição e depredação escolar. Dissertação de Mestrado. Campinas: PUC; Guimarães, Áurea (1990). A depredação escolar e a dinâmica da violência. Tese de Doutoramento. Campinas: UNICAMP; Guimarães, Maria Eloísa (1995). Escola, galeras e narcotráfico. Tese de Doutoramento. Rio de Janeiro: PUC; Oliveira, Cláudia Regina (1995). O fenómeno da violência em duas escolas: um estudo de caso. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: UFRGS. Laterman, Ilana (1999). Violências, incivilidades e indisciplinas no meio escolar: um estudo em duas escolas da rede pública. Dissertação de Mestrado em Psicologia. Florianópolis: UFSC; Waiselfisz, Julio (coord.) (1998). Juventude, violência e cidadania: os jovens de Brasília. UNESCO; Minayo (coord.) (1999). Fala galera: juventude, violência e cidadania na cidade do Rio de Janeiro. UNESCO; Abramovay (1999). Gangues, galeras, chegados e rappers: juventude e cidadania nas cidades da periferia de Brasília. UNESCO.

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A pesquisa realizada pela UNESCO baseou-se num corpus colhido nos jornais Folha de São Paulo, de 09/12/1998, e A Gazeta, de 10/12/1998, actualizado em 2000 com Waiselfisz, Julio Jacobo (2000). Mapa da Violência II: os jovens do Brasil. Brasília: UNESCO.

do Observatório Europeu da Violência Escolar, Benjamin Moignard, observa uma “paz escolar” com menos vítimas, apesar do contexto de violência extrema no seio da comunidade pobre onde se situam as escolas públicas estudadas.

Um inquérito aplicado no Brasil por Debarbieux/UNESCO (2004, Debarbieux, 2006:184) mostra que a percepção da violência escolar nos alunos brasileiros de 12 a 16 anos de idade é menos consistente que para os seus homólogos franceses e ingleses, sendo a condição de vitimização declarada também menos relevante naquele país. Contudo, o autor verifica uma elevada exclusão social e escolar, na medida em que, por motivos de fraco investimento material e humano nas escolas públicas brasileiras, os alunos têm aulas apenas de manhã ou de tarde. Tal distribuição horária parece atenuar as circunstâncias de delinquência no interior da instituição, verificando-se também uma débil escolaridade dos adolescentes pelo seu reduzido acesso ao ensino público secundário, à excepção de uma elite limitada.

Os trabalhos de um seminário-atelier18 sobre a violência nas escolas da Guiné,

encontro que teve lugar nesse país em Julho de 2003, evidenciam similitudes entre as realidades das escolas norte-americanas e guineenses. As conclusões em acta desse encontro (République de la Guinée, 2003: 10; Debarbieux, 2006: 63-64) fazem notar que as condições de pobreza e de analfabetismo na Guiné favorecem a formação de grupos de jovens com condutas marginais – os “clãs” – em analogia com a acção destrutiva dos gangs, organizados segundo o padrão americano, que semeiam o terror e a desolação nas escolas de ambos os países.

A partir da década de noventa, a orientação da investigação em educação, em certos países europeus, caracteriza-se preferencialmente pelo estudo de fenómenos como a agressividade e a violência nas escolas dos centros urbanos, a suplantar a anterior linha de investigação (1970-1980) sobre a indisciplina, o school bullying com influência da literatura anglo-saxónica, ou outras linhas de análise sobre os conflitos que perturbam o clima escolar. Em Inglaterra, Espanha e Alemanha, a recensão dos factos pelas entidades oficiais é iniciada no seguimento de pressões mediáticas ou sindicais (Debarbieux, 2006). Novas inclinações da pesquisa propõem desconstruir mitos e estereótipos associados a questões como a violência sobre os professores, a delinquência juvenil e etnias na relação com a violência social e escolar, isto de acordo com as componentes dos diferentes países.

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Em termos de políticas reguladoras, Pain (2004) apura um acréscimo substancial de medidas de controlo cada vez mais circunscritas à família e aos jovens, em países como a Inglaterra e o Japão, onde as pessoas estão entregues a si próprias, as famílias deixadas sozinhas, as escolas e os docentes encerrados sobre si próprios, num clima de crise social favorável à violência. Essa crise da família e da escola, com funções educativas estruturantes para os jovens, resulta num défice de transmissão e troca de experiências e saberes entre adultos e jovens, com efeitos para o sucesso escolar. Na verdade, essas instituições têm revelado dificuldades em gerir os comportamentos dos jovens, sobretudo nas periferias, na forma como vão ao encontro das suas necessidades (Carlson e Apple, 2003: 11). Os autores sugerem a criação de programas de prevenção, intervenção ou remediação com metodologias eficazes e enérgicas nos bairros problemáticos, para progressivamente consciencializar as crianças, dando-lhes voz activa para descobrir o “outro” numa relação de cidadania.

Comparativamente, os ingleses e alemães são mais pragmáticos que os franceses (Pain e Barrier, 2001), no que toca à resolução da violência. A actuação dos primeiros incide na prevenção primária e secundária, ao passo que em França são adoptadas medidas políticas para combater o fenómeno. O mesmo parece acontecer em Portugal, onde as questões são pensadas como problemas sociais e tratadas pelas entidades competentes à medida que os factos são participados às autoridades, exigindo a criação de novas formas legais de controlo social. As políticas preventivas, essencialmente focadas no Programa “Escola Segura”, têm- se revelado pouco eficazes na redução efectiva da violência escolar, embora os números oficiais anunciem com alguma regularidade um decréscimo da gravidade do fenómeno.

Neste perscrutar a literatura internacional, relacionando-a com a investigação nacional, pretendemos traçar uma breve cartografia da violência escolar, na história mais recente do fenómeno, evidenciando as linhas condutoras mais pertinentes que podem contribuir para um melhor entendimento da realidade portuguesa. A construção de um quadro teórico operativo favorece a interpretação de eventuais representações preconceituosas, pontuais ou interessadas, em torno deste fenómeno, quer pelo cidadão comum, quer pela comunidade científica ou, ainda, pelos políticos em destaque nos órgãos de comunicação social.

Desses trabalhos emergem em síntese algumas linhas de análise ilustrativas da «mobilização do mundo» (Debarbieux, 2006:53) e, em particular, da comunidade científica que, numa escala mundial, tem vindo a investir na construção de modelos teóricos, com

especial enfoque na violência escolar. As autoras Carra e Faggianelli (2003:205) distinguem dois períodos na investigação sobre a violência escolar:

a) As décadas de 1970 e 1980, com trabalhos raros e de forte prevalência anglo- saxónica sobre o school bullying, na sequência do estudo pioneiro de Olweus (1976);

b) A partir do início da década de 90, com inflação de investigações, publicações e uma progressiva cobertura nos órgãos de comunicação social da América do Norte, Austrália e Europa. Os investigadores tendem a denunciar a subida em flecha da

intromissão dos media na construção social da violência escolar, comparando-a a um flagelo social pelo seu carácter sensacionalista e deturpado da realidade.

As mesmas autoras admitem três principais eixos explicativos do fenómeno:

1. A primeira explicação evidencia os factores de risco individuais e contextuais,