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A perspectiva cultural ou antropológica analisa as notícias como sistemas culturais e simbólicos com implicações ideológicas (Tuchman, 1991:78).

CAPÍTULO III – NOTICIABILIDADE DA VIOLÊNCIA ESCOLAR

3. A perspectiva cultural ou antropológica analisa as notícias como sistemas culturais e simbólicos com implicações ideológicas (Tuchman, 1991:78).

A perspectiva de economia ou acção política, caricaturada como teoria conspiratória por ser entendida com sendo capaz de manipular a opinião pública através de um discurso fechado (Schudson, 1991:267-269),72 é construída a partir do prestígio das ideias clássicas

marxistas e da análise crítica da estrutura política e económica dos media (McQuail, 2000:85). As empresas jornalísticas, que são parte integrante do sistema económico e detêm fortes ligações ao sistema político, promovem a concentração de organizações fazedoras de lucros com o consequente desequilíbrio das notícias e desapreço pelos públicos menos influentes.

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A tradição de economia política ou teoria de acção política (Traquina, 2001:80-81) defende que os outros modelos de análise tendem a ignorar questões de classe e de poder (Golding e Middleton, 1982; Herman e Chomsky, 1988; Murdock, 1982; Murdock e Golding, 1977). No entanto, é-lhes reconhecido o estatuto semi- autónomo para que exerçam hegemonia ao limitar as agendas específicas do processo político e dos universos culturais, através das representações dos media (Gramsci, 1971; Althusser, 1977; Sallach, 1974, in Tuchman, 1991:81).

Um dos trabalhos mais conhecidos, na linha da perspectiva de economia política, é de Herman e Chomsky, intitulado Manufacturing of Consent (1988,1994),73 no qual os autores

anunciam o «modelo de propaganda» dos meios de comunicação social. Para o efeito, inspiram-se nas ideias de Lippman (1922:152) sobre o poder e a manipulação «refinada» dos media que buscam a criação de «consensos» nacionais ou da comunidade, inclinando-se a mostrar os problemas como solucionáveis dentro das «regras estabelecidas da sociedade e

da cultura» (McQuail, 2000:474). Neste sentido, as «desconexões» nas notícias mobilizam

suportes, favorecendo o poder e os interesses dos que dominam a actividade pública e privada (Schudson:1991:269). Nelson Traquina (2001:81) parece concordar com esta opinião, quando afirma que os políticos e agentes sociais utilizam os media consoante a sua cor partidária para projectarem na sociedade a sua visão do mundo.

Um segundo grupo de estudos, tendo por base teórica o interaccionismo simbólico74 ou

visão construtivista75 da sociedade (Molotch e Lester, Tuchman) de inspiração

fenomenológica e etnometodológica,76 advoga a natureza sistémica da vida social e as

interacções entre os indivíduos e a sociedade. A concepção fenomenológica partilha o conceito de «construção social da realidade» (Berger e Luckmann 1966;77 Halloran et al.,

1970; Cohen e Young, 1973; Hall et al., 1973; Molotoch e Lester, 1974; Schlesinger, 1977; Hall et al., 1978; Tuchman, 1978), contrariando a ideia do espelho ou janela como metáforas da mediação simbólica dos media.78

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Herman e Chomsky (1988,1994) desenvolveram, no âmbito da economia política dos media americanos, uma teoria crítica «híbrida» (McQuail, 2000:473-474) dos efeitos sistemáticos a longo prazo, sob a forma de um «modelo de propaganda». Segundo este modelo, as notícias nos países capitalistas passam por vários «filtros» ideológicos, económicos ou publicitários, e dependem da gestão das notícias e da confiança nas fontes oficiais. Os autores reconhecem uma linha tendenciosa relativamente ao governo existente, ao modelo de propaganda, às vítimas que são notícia e aquelas que o não são, como forma de legitimar e ofuscar o Terceiro Mundo.

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A corrente de interaccionismo simbólico surgiu há cerca de 60 anos (Denzin, 1995), quando Mead escreveu o livro Mind, Self and Society. A partir daí passou-se a teorizar que os seres humanos criam um mundo de experiências resultante do processo de interacção social, em que se dá a fusão do self à medida que os seres humanos vão sendo capazes de formar actos sociais ou co-actos (Burr, 1995).

75 O movimento construtivista social adopta a crítica pós-modernista da ciência positivista-empiricista e a sua

concepção de verdade e conhecimento.

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A perspectiva etnometodológica consiste na ida dos académicos aos locais de produção para observarem os profissionais do jornalismo na “fabricação” da matéria jornalística, e compreenderem a sua atitude e acção (Schlesinger, 1978; Tuchman, 1978; Fishman, 1980; Gurevitch e Blumler, 1982,1993).

77 O livro The Social Construction of Reality de Berger e Luckman (1966) influencia o construtivismo social

dentro do ramo da sociologia. Para estes autores existem três processos fundamentais para a construção social da realidade: a externalização (quanto as pessoas agem no mundo), a objectivação (ou consciencialização da existência factual), e a internalização (compreensão da natureza do mundo).

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Segundo a concepção tradicional dos meios de comunicação, o relato mediático é ao mesmo tempo espelho e espectáculo, tecnologia de conhecimento e representação pictórica do real, enquanto outros autores preferem a concepção da janela como metáfora explicativa operada pelos media (Aguado, 2003:60-61).

Gay Tuchman (1978) realiza a sua pesquisa a partir da observação participante em empresas jornalísticas e utiliza a análise de conteúdo da produção de notícias na imprensa do contexto americano. A socióloga reconhece que os jornalistas e outros trabalhadores dos media são produtores de informação, à medida que procedem à selecção e tratamento da matéria noticiosa, no âmbito de estruturas organizacionais, sociais e políticas sujeitas a mudanças tecnológicas, económicas ou ideológicas. Constata que, por força da disseminação dos conteúdos em redes transnacionais, as questões políticas e sociais da realidade norte- americana acabam por desempenhar o estatuto de modelos profissionais e de organização das notícias para outras entidades e universos internacionais.

Esta tendência de «transnacionalização» ou «americanização» (Tunstall, 1977, citado por Tuchman, 1991: 82) globalizante da cultura, numa sociedade de rede global (Castells, 2003), é resultado da abrangência dos canais mediáticos que transportam as mensagens e conteúdos para além das fronteiras estritamente locais, regionais ou nacionais. Nesse sistema de transmissão e recepção dos conteúdos jornalísticos, as novas tecnologias e os meios de comunicação em rede são aceleradores do fenómeno de globalização, com consequências culturais que podem «ser olhadas como positivas, quando as culturas locais são enriquecidas por novos impulsos e ocorre uma combinação criativa», mas «frequentemente são vistas como negativas, pelas ameaças à identidade cultural, autonomia e integridade» (McQuail, 2000:503) dos sujeitos e comunidades dos distintos universos de referência.

A composição das notícias dentro de um conjunto de forças nas empresas jornalísticas, que ocupam uma dimensão comercial de concorrência, afecta indirectamente, na opinião de Schudson (2000:186), o processo de construção e circulação das notícias para maximizar os benefícios económicos. A teoria construtivista, inicialmente avançada por Breed (1955), consiste no alargamento do âmbito individual da produção das notícias, rejeitando claramente a teoria do espelho,79 atendendo aos seguintes argumentos de Gergen

(1994) e Burr (1995), cuja sistematização é proposta por Traquina (2001:60):

Uma posição crítica face ao conhecimento fornecido como «verdade»: não é

possível estabelecer uma distinção clara entre a realidade social e a sua representação nos media, porque as notícias ajudam a construir a própria realidade,

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Segundo a concepção tradicional dos meios de comunicação como espelho do real, o relato mediático é ao mesmo tempo espelho e espectáculo, tecnologia de conhecimento e representação pictórica, enquanto outros autores preferem a concepção da janela como metáfora explicativa da mediação simbólica operada pelos media (Aguado, 2003:60-61).

num trabalho feito diariamente, não se tratando pois de uma reportagem fidedigna do mundo factual (Tuchman, 1978:179);

Avaliar as formas de discurso existentes é ao mesmo tempo avaliar padrões de vida cultural: a linguagem não actua como veículo directo dos acontecimentos, porque a

neutralidade da linguagem não existe e o mundo é construído numa constante variação de significados em função dos contextos. Wittgenstein designa «jogos da linguagem» a maneira como são usadas as palavras em padrões de inter- relacionamento, tais como rituais, relações de controlo e dominação ou modos de vida;

Os media noticiosos estruturam a representação dos acontecimentos, tendo em

conta factores estritamente relacionados com a organização do trabalho jornalístico (Altheide, 1976), as limitações orçamentais (Epstein, 1973) e a própria maneira como a rede noticiosa é edificada para responder à imprevisibilidade dos acontecimentos (Tuchman, 1978).

As formas e os termos pelos quais se consegue compreender e descrever o mundo ou o self são artefactos sociais e produtos de inter-relações entre as pessoas,

sustentados no tempo pelas vicissitudes sociais e culturais.

Na linha da perspectiva construtivista, os actores sociais são encarados como «utilizadores de discursos» (Burr, 1995) ao usarem a linguagem para manipularem os sujeitos e atingirem os seus próprios fins, na posse de repertórios interpretativos que funcionam como ferramentas usadas na descrição dos acontecimentos. Tais instrumentos discursivos são utilizados pelos indivíduos para fabricarem versões de acções, eventos, processos cognitivos e outros fenómenos sociais. Esses repertórios interpretativos têm como função permitir que os actores sociais justifiquem as diferenças das ocorrências, escusem ou validem a sua conduta, evitem a crítica ou, pelo contrário, garantam uma posição credível nas suas interacções. Por esta via, os utilizadores do discurso são participantes activos da vida social, num processo em construção que implica a selecção e recorte dos eventos do mundo e o poder para os representar de modo verosímil, depreende-se das considerações adiantadas por aquele autor.

A investigação inscrita na linha cultural propõe o paradigma das notícias como «narrativa jornalística» com ideias, imagens e «símbolos de condensação» (Gamsom, 1984),

uma forma de contar histórias – estórias – que devem ser distinguidas da “informação”, sublinha Traquina (2001:154). Este paradigma, alerta o autor, não visa «rebaixar» as notícias, negar a sua consonância com a realidade externa, nem acusá-las de serem fictícias. Permite, antes, evidenciar o seu carácter documental público, enquanto realidade construída com validade interna e forma de conhecimento (Tuchman, 1978; Bird e Dardenne 1993:265, citados por Traquina, 2001:154). O modelo cultural das notícias possibilita, ainda, o entendimento e explicação de valores, imagens e estereótipos que emergem de construções narrativas (Schudson, 2000: 189), cuja intriga acciona a progressão das histórias (Ricoeur, 1991:26)80 da experiência humana quotidiana.

João Correia (2000:200) assinala o carácter «heterogéneo e discordante» de tais narrativas por dependerem da linguagem e do saber jornalístico que partilha:

«por um lado, características do saber narrativo, caracterizado pela poliformidade de saberes e enunciados (cognitivos, avaliativos, prescritivos), abertura ao mundo da vida e ao consenso consuetudinariamente fundado. Por outro lado, parece trazer dentro de si uma ambição de cientificidade que pressupõe a hegemonia do uso cognitivo da linguagem e a atribuição do monopólio desta forma de saber» (Correia, 2000:199).

Se as construções narrativas pressupõem uma intriga mediadora «entre o acontecimento e a história, significa que só é acontecimento o que contribui para a progressão de uma história» (Ricoeur, 1991:26), com «ingredientes da acção humana que, na experiência quotidiana, permanecem heterogéneos e discordantes» (Correia, 2000:200). Desde logo, «um evento não é apenas o que acontece no mundo; é também uma relação entre um certo acontecimento e um determinado sistema simbólico», frisa o antropólogo Marshall Sahlins (1985:153, citado por Schudson, 1991:151), tornando significativas e interpretáveis as notícias, como parte da cultura, quando consideradas nas formas textuais e no seu teor figurativo.

Autores como van Dijk (1983, 1985, 1988), Fowler (1991), Fairclough (1995, 2003) van Leeuwen (1997), Ponte (2004), entre outros, analisam os textos jornalísticos partindo do pressuposto de que a construção do sentido de um texto depende não só das estruturas discursivas e da interacção dos actores sociais, como ainda da pressuposição de

80 Ricoeur (1991:26) define a intriga como «o conjunto de combinações pelas quais há acontecimentos que

conhecimentos e de um vasto repertório de crenças socioculturais partilhadas. A actuação da

memória pessoal, que abarca as experiências concretas, testemunhos directos ou recontados,

e a actuação da memória social, que reúne conhecimentos gerais, atitudes, ideologias, normas, valores partilhados com elementos dos grupos, organizações, ou cultura a que os sujeitos pertencem, fundem-se no texto na forma de macro-proposições semânticas (van Dijk, 1988).

Assim, segundo os diferentes perspectivas de análise descritas, assumimos que os textos jornalísticos com enfoque na violência escolar ou comportamentos afins tratados nos media, em geral e na imprensa em particular, resultam da construção social dos diferentes intervenientes no processo informativo, reunindo os testemunhos das fontes de informação que visam asseguram a veracidade dos acontecimentos junto das audiências.