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A MODELAGEM COMPOSICIONAL EM LE LAC, DE MURAIL

A título exemplificativo da averiguação das diferentes categorias que transcorrem em uma mesma peça, tomemos Le Lac (2001), de Murail. Sobre a peça, o compositor escreve:

(...) Assim como o lago, esta peça é construída sobre alguns elementos em constante deslocamento: a análise acústica do som da chuva atingindo o lago, um trovoar estilizado, o cantar de um pássaro não identificado, a textura eletrônica de rãs na primavera e uma melodia de acordes. Estes elementos são tratados como objetos musicais abstratos; são modificados, filtrados, distorcidos, harmonizados ou transformados em acordes sobrepostos. Eles são usados por sua sonoridade e valor musical – especificamente, seu impacto psicológico. Esta não é uma tentativa de descrever o lago, não é música programática. O que é principalmente retido do modelo natural é o jogo de permanência e impermanência, movimento e alterações de caráter, a lógica do inesperado, e a ordem e simplicidade aninhadas no seio daquilo que é caótico e complexo25.

Encontramos, assim, uma descrição bastante elucidativa de uma das múltiplas possibilidades viáveis para a realização do processo aqui denominado modelagem composicional, com um fenômeno de origem de recorrência histórica suficiente para constituir parte de uma tradição representativa, conforme afirma Meyer sobre as

25 Tradução do texto em língua inglesa disponível no site oficial do compositor:

tempestades dentro de sua categoria de simulação. Em Le Lac, Murail lida com cinco objetos sonoros, conceito que define como material musical suficientemente curto para ser reconhecido como uma entidade e que permaneça reconhecível mesmo após uma ou mais transformações de seus parâmetros (Hirs, 2007, p.5). A figura 2-14 apresenta os objetos chuva, rãs e trovoar, ainda nos momentos iniciais da peça.

O objeto denominado chuva consiste em ataques percussivos efetuados por instrumentos como piano, harpa e cordas em pizzicato. O objeto rãs é formado por sons sustentados, com harmônicos nas cordas seguidos da técnica estendida de bisbigliando ou trinado de timbre obtido pela alternância de dedilhados para uma mesma altura nas madeiras. O objeto trovoar, no exemplo, surge a partir do ruído de sopro nos metais e de rulos nos instrumentos de percussão.

Inicialmente, a classificação dos três objetos sonoros de Le Lac com base nas categorias propostas por Meyer seria a mesma: mímica, uma vez que o domínio de origem é o dos sons naturais. As divergências, porém, emergem quando as informações fornecidas pelo compositor são levadas em consideração. Conforme a dissertação de Hirs, a modelagem de cada um dos objetos se dá de forma distinta: o som da chuva é obtido a partir da análise acústica do som do lago; o som do trovoar, em contrapartida, foi elaborado de forma livre pelo compositor, após a constatação de que a análise acústica resultaria infrutífera, e os sons produzidos coletivamente e individualmente por animais – respectivamente rãs e um pássaro – foram transcritos sem auxílio computacional. Assim, a análise acústica que deu origem ao objeto chuva permite enquadrá-lo na categoria de modelagem analógica, uma vez que uma relação sistemática, nesse caso consistindo na análise das frequências que perfazem a sonoridade original, foi estabelecida entre o domínio de origem, intermediada pela análise computacional, e o domínio de destino. Já o objeto trovoar, em sua transfiguração estilizada, assume uma posição híbrida entre a mímica da categoria simulações e a mímica metafórica da categoria correlações, particularmente quando o interesse do compositor é voltado ao impacto psicológico dos objetos musicais (ibid, p.6). O objeto rãs é menos problemático, sendo cabível sua classificação como mímica. Note-se que as relações formuladas para cada fenômeno são específicas, e substancialmente distintas daquelas formuladas pela modelagem sistêmica.

figura 2-14: compassos 21 a 25 da página 5 da partitura de LE LAC, de Murail, com identificação dos objetos sonoros. Adaptado do trabalho de Hirs (2007).

Diante das diversas ambiguidades encontradas, a classificação específica dos objetos a partir da categorização de Meyer resultaria pouco instrutiva no que tange à compreensão aprofundada de aspectos da composição. Da mesma forma, uma reformulação parcial ou mesmo completa das categorias de modelagem tampouco contribuiria para o entendimento dos objetos musicais e suas respectivas contribuições para a peça. A opção investigativa mais construtiva consiste na localização e avaliação pormenorizada das aparições dos objetos sonoros ao longo de toda a peça, o que corrobora uma vez mais a necessidade dos estudos de caso, que ressurgem aqui como imperativos: cada circunstância deve ser avaliada individualmente. Cabe, ainda, reiterar a constatação de que as transformações às quais os objetos sonoros são submetidos ao longo da peça são, igualmente, processos de modelagem, sendo o fenômeno de origem o objeto em si e o modelo resultante a transformação efetuada – as manipulações da categorização de Meyer. De fato, Hirs realiza a análise de Le Lac a partir da investigação das transformações às quais cada um dos cinco objetos sonoros é submetido:

Mostra-se significativo analisar Le Lac através das aparições dos diversos objetos musicais derivados de modelos acústicos ou outros e sua manipulação imaginativa, e seu papel na construção de objetos sequenciais (comparáveis a frases ou temas quanto a seu comprimento) e sequencias de objetos (com comprimentos equivalendo a até uma subseção). Essas últimas são formadas por transformações de um ou mais objetos musicais e podem determinar o conteúdo e comprimento de seções inteiras da peça e, portanto, sua forma global (ibid, pp. 7-8).

Assim, a identificação da natureza dos objetos sonoros em uma composição como Le Lac é passo relevante e potencialmente de grande utilidade; para esse fim, uma categorização como a de Meyer é ferramenta de grande valia. Em contrapartida, uma classificação dessa sorte é insuficiente para que uma etapa adicional da investigação tome forma, ao que a elaboração de soluções individuais específicas a cada peça e contexto se faz necessária. A abrangência do entendimento do conceito de modelagem aqui exposto, assim como a extensão das possíveis formas de abordagem potencialmente esclarecedoras dos procedimentos adotados para a gênese da composição, podem ser adicionalmente demonstradas a partir de uma peça própria, tarefa que ocupará o restante deste capítulo.