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Todos os aspectos mencionados nos parágrafos anteriores são visíveis na primeira página da partitura (figura 7-5): o moto perpetuo pianístico, incluindo a indicação de expressão mechanical, a presença de apenas três classes de alturas, e a indicação alfabética do primeiro de seis disparos eletrônicos. Um espectrograma do primeiro disparo (figura 7-6) expressa, visualmente, como a elaboração transcorreu.

As linhas horizontais indicam quatro frequências predominantes, as quais correspondem, na ordem de aparição da esquerda para a direita, às alturas D3, C#4, G#4, D5, D2. Os primeiros sinais de distorção e adensamento das frequências são visíveis particularmente na região próxima ao final da linha da frequência predominante mais grave, D2. No registro agudo, sonoridades percussivas foram adicionadas, mesclando-se aos ataques do moto perpetuo pianístico e fortalecendo a ideia de fusão de sonoridades mencionada anteriormente.

O caráter estabelecido nos momentos iniciais foi prolongado pelos, aproximadamente, dois primeiros terços da duração total da peça, que consistem no fluxo ininterrupto de fusas acompanhado por sonoridades eletrônicas gradualmente mais ruidosas.

74 O mesmo pode ser dito da criação dos sons eletrônicos, que fez uso de técnicas convencionais, como síntese

aditiva, granular e subtrativa. Detalhamentos técnicos da construção das sonoridades, como software utilizado e operações de síntese realizadas, são dispensados desta abordagem, pois julgados desnecessários.

figura 7-5: página inicial da partitura de Mohamed’s Clock. O sinal “A” indica o primeiro disparo eletrônico.

O arco de tensão da peça resultaria demasiado óbvio se a ideia do escopo crescente fosse implementada linearmente e de forma contínua. Essa constatação fundamentou a seção iniciada no compasso 39, quando tanto o moto perpetuo como as três classes de alturas utilizadas exclusivamente até então são abandonadas, dando lugar a uma seção gestual que utiliza as nove classes de alturas restantes. A inserção dessa seção teve como propósito enfatizar a tensão subjacente ao evento como um todo, além de servir como uma articulação para os momentos finais da peça. A ausência de uma relação direta com o fenômeno de origem é compreensível tendo em vista que pretendeu-se preservar a propriedade da tensão permanente dele abstraída, e – assim concluiu-se - a manutenção do moto perpetuo e das mesmas três classes de alturas do início ao fim enfraqueceriam a tensão da peça como um todo. Os sons eletrônicos desta seção central, igualmente, ecoam sonoridades originadas ao piano, com os eventos eletrônicos mais breves quando comparados aos da seção inicial.

figura 7-7: seção central, com abandono temporário do Moto Perpetuo e alteração das classes de alturas.

A retomada do moto perpetuo, agora já encaminhando a peça para seus momentos finais, ocorre com classes de alturas distintas, as quais, visando um acúmulo de tensão harmônica para o encerramento da peça, são gradualmente expandidas. Ao todo, seis classes de alturas são utilizadas entre os compassos 53 e 59, que antecede os dois compassos conclusivos. São elas: B, F, E, Bb, Eb, A.

Nos dois compassos finais, a ideia conclusiva da peça é delineada por meio de um gesto no qual quatro das classes de alturas acumuladas ao longo do moto perpetuo precedente são

utilizadas (B e F são abandonadas). O gesto tem início com um movimento ascendente, em seguida invertido para descer ao registro grave extremo, momento em que a última das sonoridades eletrônicas é disparada. A ideia da bomba, com a qual o relógio de Ahmed Mohamed foi confundido, se manifesta por meio de sonoridades ruidosas pianísticas e eletrônicas confluindo em dinâmicas extremas. Note-se a diferença do espectrograma do último dos sons eletrônicos, apresentado abaixo, comparativamente ao primeiro, apresentado anteriormente.

figura 7-8: espectrograma do último disparo eletrônico – ruidoso. 7.4 CONSIDERAÇÕES ADICIONAIS

Mohamed´s Clock é a expressão criativa da reação do autor ao incidente descrito nos parágrafos iniciais deste capítulo, e, nesse sentido, o processo de modelagem composicional que resultou na peça não difere substancialmente daquele efetuado para a peça cujo fenômeno de origem foi a narrativa ficcional da Casa Torta. Cabe, porém, destacar aqui a questão da expressão, começando pela retomada das ideias de Mâche quando afirma que, frequentemente, nos deparamos com pensamentos e ideias que não podemos expressar com palavras. A opinião do autor, assim, não encontra expressão suficiente apenas pelo alinhamento ideológico, qualquer que seja: a favor do estudante ou contra o dispositivo que elaborou e levou para escola, a favor da atuação das autoridades ao detê-lo ou contra o ato de violação de seus direitos civis quando o impediram de contatar seus pais até a conclusão

do interrogatório. Trata-se de uma reação mais complexa, ambígua e multifacetada, que envolve não apenas impressões imediatas pertinentes aos fatores – já descritos – que circunscreveram o incidente, como a brevidade e a expansão de escopo, mas também reações emocionais ao evento e a seu significado social e cultural. Esse componente torna o fenômeno de origem singular não apenas neste trabalho, mas na produção do autor de forma geral: Mohamed’s Clock é um argumento adicional a favor da multiplicidade de fenômenos de origem passíveis de aproveitamento para a fertilização do processo criativo musical. Ao explorar propriedades e possibilidades de um fenômeno como o incidente aqui descrito, é possível desvelar realidades e chegar a conclusões potencialmente menos superficiais do que um simples posicionamento dicotômico a favor/contra. A complexidade intrínseca a essas realidades requer, reciprocamente, meios de expressão outros que a linguagem, cuja equiparação direta com a música, conforme já postulado anteriormente e em concordância com o pensamento de Mâche, este trabalho rejeita.

A ambiguidade e entrelaçamento dos fatores humanos e inorgânicos subjacentes ao incidente – o relógio visto como uma bomba por sua aparência, o estudante visto como um terrorista por suas raízes – se expandem para o âmbito deste trabalho, similarmente à expansão de escopo transcorrida com o evento. Inicialmente essa expansão se dá de forma direta, por meio da presença simultânea da interpretação humana e dos sons fixos eletrônicos, cujos papéis híbridos se mesclam e transcendem a classificação estratificada, para, em um grau adicional de aproveitamento do fenômeno de origem no âmbito da modelagem composicional, mapear a discussão fomentada em torno do incidente quanto à sua relevância como reflexo do entendimento polissêmico dos muitos conceitos que agrega: direitos civis, estereótipos raciais, obsessão por segurança, xenofobia.

Nesse sentido, a título conclusivo – não apenas desta análise, mas das análises de peças próprias que integram este trabalho – cabe reiterar, diante do argumento consubstanciado pela peça que é objeto deste capítulo, a riqueza de ideias, motivações e propriedades que podem ser obtidas dos fenômenos de origem. O compositor, ao explorar facetas do evento selecionado, estabelece um canal de comunicação bidirecional ao desvelar seu potencial como fonte criativa, o qual, em última instância, resulta na elaboração e expressão de pontos de vista inéditos e que extrapolam o lugar-comum. Mohamed’s Clock assim o pretende.

8 A CONFLUÊNCIA DOS PENSAMENTOS RACIONAL E INTUITIVO EM ANCIENT RHYTHM (1993), DE ANTÔNIO CARLOS BORGES-CUNHA.

Meu objetivo tem sido integrar conceitos aparentemente opostos de tempo e continuidade, como: linearidade versus não- linearidade, climático versus anticlimático, estático versus dinâmico

Antônio Carlos Borges-Cunha Este capítulo abordará a peça Ancient Rhythms (1993), de Antônio Carlos Borges- Cunha. A investigação tomará por base, além da partitura propriamente dita, rascunhos fornecidos pelo compositor e diálogos a respeito da peça, transcorridos entre agosto de 2017 e março de 2018. Os elementos centrais desta investigação serão dois: o primeiro deles consiste em uma descrição do mecanismo elaborado por Cunha para gerar os materiais que serviram como base - ou fenômeno de origem - para a escrita da partitura da peça, e o segundo será a complementaridade entre a formalização estrita do planejamento composicional e os desvios necessários para a obtenção de resultados condizentes com as intenções expressivas e com a identidade sonora pretendidas pelo compositor. Com esse propósito, o rationale da peça será exposto primeiro, seguido de uma discussão sobre as revisões e alterações nas quais o modelo formal é colocado em segundo plano.

8.1 SOBRE A PEÇA

Ancient Rhythm foi composta entre 1991 e 1993, durante o período em que Antônio Carlos Borges-Cunha realizou doutorado em composição musical (1991-1995) na Universidade da Califórnia, sob orientação de Roger Reynolds. A formação instrumental consiste em quatro clarinetes, sendo que os clarinetes um e dois alternam entre clarinetes em si bemol, lá e mi bemol, e os clarinetes três e quatro são clarinetes baixos; cordas, com recomendação mínima sugerida de seis violinos um, seis violinos dois, seis violas, quatro contrabaixos e dois violoncelos, e cinco percussionistas que distribuirão entre si os seguintes instrumentos: carrilhão de orquestra (tubular bells), cowbells afinados, crotales, vibrafone, marimba, cinco blocos de madeira, triângulo, dois apitos (sonoridade brilhante e aguda)75,

75 Na página de instrumentação da partitura, os apitos estão listados separadamente; um deles é acompanhado

cinco tam tams, cinco pratos suspensos, quatro bongôs, quatro congas, cinco tom-toms e bumbo. O título foi retirado de um poema de Fernando Pessoa cuja primeira linha é “ o ritmo antigo que há em pés descalços”76. De acordo com o compositor, o Ritmo Antigo remete ao ciclo de vida, uma alusão refletida na dedicatória da peça em memória a seus pais, Antonio e Tereza Cunha.

A estreia ocorreu no concerto Music of the Americas, em 16 de fevereiro de 1994, realizado no auditório Mandeville da Universidade da Califórnia, com o Ensemble SONUS sob regência de Harvey Sollberger. O registro em áudio dessa estreia foi incluído no CD Pedra Mística (2000), juntamente com outras obras de Cunha, em projeto concretizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. No Brasil, a peça foi interpretada pela Orquestra Sinfônica de Porto Alegre em 1996, sob regência do compositor; pela Orquestra Unisinos em 2000 sob regência de José Pedro Boéssio, e em 2002 pela Orquestra de Câmara SESIMINAS durante o 4ª Encontro de Compositores e Intérpretes Latino-Americanos, em Belo Horizonte, também com regência do Compositor.

Um vislumbre das ideias principais que circunscrevem as preocupações composicionais de Cunha quando da composição de Ancient Rhythm pode ser localizado no parágrafo inicial de um artigo de sua autoria relativo a Pedra Mística, obra composta entre 1994 e 1995:

O desenvolvimento de uma concepção de grande forma e a elaboração de um método para gerar e organizar materiais musicais em todos os níveis estruturais se encontram no centro de minha pesquisa por muitos anos. Em minhas primeiras obras, evitei princípios de continuidade linear e causa e efeito em média e grande escala. As grandes formas, de fato, nunca foram planejadas antecipadamente: resultaram de uma coleção de pequenos segmentos articulados principalmente por silêncios expressivos. Desde 1991, quando comecei a trabalhar em Ancient Rhythm para orquestra de cordas, quatro clarinetes e cinco percussionistas, meu objetivo tem sido integrar conceitos aparentemente opostos de tempo e continuidade, como: linearidade versus não-linearidade, climático versus anticlimático, estático versus dinâmico. O processo composicional, ao invés de ter início no nível microgestual, envolveu um planejamento cuidadoso para a forma dramática geral da peça, assim como uma definição clara dos materiais musicais (2013).

Cabe, assim, dar início a esta investigação a partir de uma verificação pormenorizada daquilo que Cunha denomina, nos textos acima, “elaboração de um método para gerar e

76 Em Poemas de Ricardo Reis (2015), dois poemas iniciados com a mesma frase são encontrados. O mais breve

deles, cuja data de autoria a publicação indica 09.08.1914, é: O ritmo antigo que há em pés descalços/Esse ritmo das ninfas repetido/Quando sob o arvoredo/Batem o som da dança, Vós na alva praia relembrai, fazendo, Que escura a espuma deixa; vós, infantes/Que inda não tendes cura/de ter cura, responde/Ruidosa a roda, enquanto arqueia Apolo/Como um ramo alto, a curva azul que doura/E a perene maré/Flui, enchente ou vazante (p. 6).

organizar materiais musicais em todos os níveis estruturais” e “planejamento cuidadoso”. Concluindo as observações introdutórias, cabe a informação de que Cunha considera a peça um divisor de águas em suas experiências composicionais, tanto pelo desenvolvimento e pela incursão rumo a uma metodologia personalizada como na avaliação do resultado obtido.