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Para uma investigação da macroforma de Voile, uma averiguação de aspectos da peça pode consistir na elaboração de uma abstração visual da partitura representando a presença ou ausência de atividade em cada uma das 20 vozes. Essa possibilidade é favorecida pelos seguintes fatores:

. O tratamento dado às cordas ao longo da peça, que ocorre em blocos, sem vestígios sugestivos de que alguma voz ou algum grupo instrumental possua maior importância sobre os restantes;

. O registro ocupado por cada instrumento, que permanece coincidente com a disposição vertical por praticamente toda a peça mesmo em trechos nos quais um determinado registro é enfatizado, como o registro agudo no início do compasso 16 ou nos compassos finais;

. As alturas são parâmetro de relevância secundária em Voile, conforme demonstrado anteriormente. No que pese sempre constituírem parâmetro de preocupação para o compositor, a averiguação anterior evidencia o fato de que as formações cordais são clusters ocupando uma região ampla do espectro de frequência, isentas de uma sistematização ou formalização passíveis de identificação com base nos procedimentos emblemáticos de Xenakis.

. O procedimento que será postulado se assemelha a um mapeamento dentre os diversos explorados por Xenakis: a conversão de imagens em sons, viabilizada pela ferramenta

computacional de composição denominada UPIC68, utilizada para a criação da peça Mycenae

Alpha (1978). A construção de modelos interligando os domínios visual e sonoro é uma prerrogativa frequente para Xenakis, já evidenciada nos rascunhos de composições como Metastasis (1954) e Phitoprakta (1955-1956). Marino et al afirmam:

A idéia do sistema UPIC remonta a 1953-54, quando Iannis Xenakis escreveu música para orquestra, usando notação gráfica para representar efeitos musicais demasiado complexos para serem especificados por meio da notação tradicional. A obra Metastasis (escrita em 1953-54 e estreada em Donaueschingen em 1955) faz uso sistemático de glissandi. Xenakis desenhou os glissandi como linhas retas no domínio da altura versus tempo. A partitura é escrita para sessenta e uma partes instrumentais diferentes. O grande número de glissandi cria um espaço sonoro de evolução contínua, comparável às superfícies governadas e volumes que ele usou na arquitetura. Escrever os glissandi para sessenta e uma partes orquestrais manualmente era uma tarefa bastante árdua. Xenakis teve, então, que transcrever a notação gráfica para a notação tradicional a fim de que a música pudesse ser tocada pela orquestra. Nessa época, ele criou a ideia de um sistema computacional que permitiria ao compositor desenhar música. De fato, a representação gráfica tem a vantagem de fornecer uma descrição simples de fenômenos complexos como glissandi ou curvas arbitrárias. (1993, p.260)

Assim, é razoável pressupor que o mapeamento de estruturas geométricas oriundas dos domínios espacial e visual para o domínio sonoro transcorre com frequência e talvez até intuitivamente para Xenakis. Uma abstração visual que elimina detalhes, modelada tomando a partitura como fenômeno de origem, pode resultar esclarecedora quanto à estrutura de Voile.

6.7.1 DETALHAMENTO DA ABSTRAÇÃO VISUAL

Inicialmente, é necessária uma referência para construção do mapa de atividade das vozes. A peça possui 30 compassos em 4/4, de forma que o total de colcheias é 120. Cada colcheia, assim, constitui 0,83% da duração total da peça. Esse percentual é razoável para que a duração da colcheia sirva como referência para constatação de atividade ou inatividade (pausa) em cada voz, além de prático diante das figuras rítmicas predominantes na peça.

68 Marino et al descrevem o sistema UPIC como “uma ferramenta de composição que oferece ao músico uma

notação baseada em um conjunto de objetos gráficos. Todos eles são formados por um ou diversos gráficos, dependendo do tipo de objeto. Cada tipo de objeto possui uma função específica na síntese de som realizada pela máquina. Nenhum outro objeto ou parâmetro oculto é usado para este cálculo, de modo que o compositor possui controle total do processo de síntese” (1993, pp.260-261).

Dessa forma, uma voz é considerada inativa quando apresenta pausa de uma colcheia ou mais, sendo considerada ativa novamente quando qualquer nota for introduzida. A abstração visual consiste em uma grade de 120 x 20 pontos, que serão preenchidos ou deixados vazios conforme, respectivamente, cada voz se encontre ativa ou inativa dentro do critério descrito acima. As figuras 8-12, 8-13 e 8-14 apresentam o resultado, inicialmente na forma de duas imagens divididas proporcionalmente aos 30 compassos da peça, e em seguida como uma imagem única.

A averiguação da abstração construída a partir da partitura permite algumas constatações sobre a natureza macroestrutural da peça. Uma delas é pertinente à atividade das vozes, aspecto no qual a peça é largamente irregular, apresentando em seus compassos iniciais trechos mais breves intercalando tuttis e atividade parcial das vozes, procedendo ao uso de blocos sonoros de maior duração nos compassos posteriores. Quanto à distribuição das vozes, é possível visualizar algumas recorrências, transformadas em maior ou menor porte ao longo do fluxo temporal da peça.

São justamente tais figuras geométricas, evidenciadas pela abstração visual, que viabilizam uma análise da macroestrutura de Voile, em combinação com o conceito de eventos sônicos exposto em Formalized Music. Xenakis escreve:

Sejam três eventos a, b e c, emitidos separadamente.

Primeiro estágio: três eventos são distinguidos, e isso é tudo.

Segundo estágio: uma “sucessão temporal” é distinguida, ou seja, uma correspondência entre eventos e momentos. Disso resulta

[a antes de b] ≠ [b antes de a] (não-comutatividade)

Terceiro estágio: Três eventos sônicos que dividem o tempo em duas seções no âmbito dos eventos. Essas duas seções podem ser comparadas e então expressas em múltiplos de uma unidade. O tempo se torna métrico e as seções constituem elementos genéricos do conjunto T. Elas, assim, possuem comutatividade.

De acordo com Piaget, o conceito de tempo entre crianças passa por esses três estágios.

Quarto estágio: Três eventos sônicos são distinguidos; os intervalos de tempo são distinguidos; e a independência entre os eventos sônicos e os intervalos temporais é reconhecida (...) (op.cit, p.160)

Xenakis conclui, ao longo do mesmo texto, que a análise e construção musicais podem ser baseadas no estudo de duas entidades e de sua correspondência. Uma entidade é o evento sônico, que possui uma estrutura fora-do-tempo; outra entidade, mais simples, é o tempo. A correspondência entre a estrutura fora-do-tempo e a estrutura temporal resulta na estrutura no-tempo.

figura 8-12: abstração visual da partitura de VOILE: compassos 1-15

figura 8-13: abstração visual da partitura de Voile: compassos 16-30

Com base nesse conceito, a análise de Voile aqui proposta assume a existência de entidades sônicas, evidenciadas pela abstração visual, submetidas a algumas transformações, remetendo às metabolae. A entidade sônica mais nítida, aqui denominada A, é o deslocamento descendente evidenciado já no início da abstração, quando preenche todo o espaço vertical, e que posteriormente ressurge em formas variadas, correspondentes às seguintes transformações:

. compactação, preenchendo apenas parte do espaço vertical;

. alongamento, quando o deslocamento ocupa uma porção maior do espaço horizontal; . inversão, o que ocorre em dois momentos específicos – compassos 4-5 e 28-29.

. agrupamento, quando o deslocamento descendente transcorre com blocos dos componentes verticais, e não individualmente como na figura inicial.

A implementação no-tempo das transformações elencadas acima usualmente resulta em combinações de mais de uma delas. A figura 8-15 apresenta o evento A e suas variações, seguidas de uma breve descrição.

A identificação de um total de dez eventos sônicos dotados de alguma similaridade e suscetíveis a serem enquadrados como transformações de um material original é benéfica para a construção de um entendimento da peça. Se o movimento descendente aqui caracterizado como A foi identificado como recorrente, uma geometria adicional pode ser visualizada em blocos sonoros nos quais tuttis agregando todos os vinte componentes são sucedidos por blocos que ocupam apenas a região inferior. A figura 8-16 expõe esse evento sônico B em suas sete ocorrências. Em mais de uma ocasião o evento B se encontra elidido com o evento A.

É notável o fato de que, em sua apresentação inicial, o evento B surge transformado: dois blocos menores sobrepostos resultam em um bloco sonoro completo, simultaneamente invertendo e compactando a ordem temporal do tutti para o grupo da região inferior que caracteriza as aparições seguintes. Tal diferença encontra justificativa quando ocorre a comparação com o evento A, que é exposto de forma praticamente didática no início da peça. O contraste entre ambos, assim, fica explícito já na primeira exposição de cada um deles. A forma B2, porém, já é a forma característica do evento. A caracterização de cada surgimento se encontra junto à figura 8-16.

Cabe observar que o próprio evento sônico B pode ser interpretado como uma metabolae do evento A na qual o movimento gradual é compactado horizontalmente ao máximo possível, de forma que a transição entre o registro agudo e grave ocorre de forma

súbita. O evento apresenta, porém, características suficientes para que tenha sido aqui caracterizado como independente.

No contexto visual apresentado, resta caracterizar um terceiro evento sônico, C, como a forma única que emerge ainda nos momentos iniciais (figura 8-17).

O evento C, singular em sua irregularidade, é único inclusive quando a abstração visual é deixada de lado e a partitura é checada: trata-se do único momento da peça em que ataques com cordas duplas não são utilizados, tornando a textura menos densa mas geometricamente caótica, o que ocorre justamente devido à irregularidade das entradas de cada instrumento, as quais usualmente seguem a sequência da disposição vertical. O evento C quebra a regularidade de movimentos descendentes que irá, essencialmente, caracterizar a temporalidade da peça.

As figuras 8-18 e 8-19 sumarizam os eventos sônicos identificados. Este mapa visual, no qual as alturas são omitidas e tão somente a presença da atividade em cada voz é levada em consideração, sugere alguns padrões de organização macroestrutural, ao mesmo tempo em que – necessariamente, como em qualquer abstração – elimina a viabilidade de investigação de outros aspectos. Alguns movimentos verticais mais velozes não são visíveis devido à unidade temporal mínima da colcheia ter sido adotada, e a seção breve na qual glissandos são utilizados – como visto, recurso raro nas peças tardias de Xenakis - que preenche os compassos 7 a 10 tampouco são colocados em evidência. A natureza geométrica da peça, porém, parece ser devidamente trazida à tona, ao que essa abstração, na ausência de qualquer documentação ou referência a recurso composicional específico, acaba por constituir uma ferramenta analítica frutífera.