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A MODELAGEM SISTÊMICA DE LIDUÍNO PITOMBEIRA ET AL

A modelagem sistêmica tem origem na UFRJ no ano de 2010 por meio do projeto de iniciação científica Modelagem dos sistemas composicionais do Segundo Caderno dos Ponteios de Camargo Guarnieri, e desde então resultou em vasta produção artística e científica. Liduíno Pitombeira a descreve como “uma metodologia composicional que utiliza como ponto de partida determinados aspectos estruturais de uma obra pré-existente, ou seja, de um intertexto” (2017, p.1), e também como “uma metodologia pré-composicional que tem como objetivo a proposição de um sistema composicional hipotético, ou modelo sistêmico”. Seus fundamentos teóricos e conceituais englobam a intertextualidade e a teoria dos sistemas composicionais, essa última por sua vez fundamentada originalmente na teoria geral dos sistemas. Nas palavras do autor, porém, “atualmente se vislumbra uma aproximação com a teoria dos modelos.” (ibid, p.3).

De fato, a modelagem sistêmica interliga-se com as propostas edificadas neste trabalho, ao mesmo tempo em que dele se distancia ao consistir em uma metodologia formal. Em termos práticos, trata-se de um processo operacionalizado em três fases:

Na primeira fase – denominada seleção paramétrica – selecionam-se, através de uma análise prospectiva, os parâmetros que serão focalizados. A segunda fase consiste na análise propriamente dita, dentro da perspectiva dos parâmetros selecionados. Na última fase – denominada generalização paramétrica – os objetos específicos são desconsiderados e as relações entre eles se tornam o foco. O conjunto dessas relações constitui o modelo sistêmico (ibid, p.4)

O processo de abstração de alguns parâmetros específicos de uma obra musical preexistente, seguido da análise e reconstrução das relações constatadas, resulta em obras musicais novas, nas quais algumas características da peça original são mantidas. Transcorre, assim, o mapeamento de propriedades emblemático da modelagem e coincidente, em essência, com as ideias aqui postuladas. A natureza formal do procedimento viabiliza a descrição detalhada de cada passo, sendo essa descrição foco predominante das publicações relativas à metodologia. O repertório tomado como fenômeno de origem inclui, entre outras, obras de Webern (ibid, p.4), Camargo Guarnieri (Moraes e Pitombeira, 2012), Villa-Lobos (Rocha, Gomes e Pitombeira, 2016) e Tom Jobim (Rocha, Gomes, Pascale e Pitombeira, 2017). Em meio às possibilidades, a descrição da modelagem sistêmica de Imagina (1983), de Tom Jobim, a partir da última das publicações supracitadas, pode servir como um exemplo mais específico da aplicação prática da metodologia.

Os autores obtêm da partitura de Imagina parâmetros correspondentes ao que denominam macroestrutura e microestrutura, respectivamente expressos pelas regiões tonais que a peça percorre e pelos materiais recorrentes encontrados, conforme quadro reproduzido abaixo.

quadro 2-1: resumo da estrutura destacando os aspectos tonais e retóricos (esquerda), percentual das regiões tonais (centro), e quantificação dos materiais motívicos (direita) de Imagina, de Tom Jobim. (ibid, p.4)

De posse dos dados obtidos, os autores procedem ao mapeamento das relações internas que interligam cada par de acordes, verificadas a partir de funções tonais neoriemannianas. O processo de abstração dos parâmetros é resumido da seguinte forma:

a macroestrutura se caracteriza em termos tonais, por 5 regiões que se relacionam entre si de acordo com a Fig. 2, com uma delas predominando em cerca de 2/3 sobre as demais e sua relativa ou antirrelativa ocupando cerca de 1/5 do espaço tonal; em termos retóricos, por 5 grupos de materiais (a, b, c, d, e), subdivididos em 6, 2, 2, 3 e 1 subgrupos respectivamente, de tal forma que três subgrupos predominam quantitativamente sobre os demais (ibid, p.5).

As relações mapeadas passam a constituir o que os autores denominam sistema composicional, o qual viabiliza a formulação de duas peças. Em Capitu (2017), de Liduíno Pitombeira, e em Sonatina (2017), de Claudia Usai, as proporções relacionais entre as regiões tonais e a quantidade e distribuição de materiais motívicos refletem aquelas obtidas a partir da generalização de parâmetros constatadas em Imagina. A abstração de parâmetros, porém, resulta em peças largamente distintas, fato corroborado pela ausência de relações formais que guiem a seleção de alguns dos parâmetros, assim passíveis de livre escolha. Sobre Capitu, lê-se:

A primeira etapa no planejamento composicional consistiu na escolha do meio instrumental. Como estudo de caso escolhemos a formação flauta, oboé e fagote. Em seguida determinamos a métrica e a quantidade de compassos. Optamos por 5/4 e 60 compassos.” (ibid, p.5)

E, sobre Sonatina:

Assim como no planejamento anterior, a primeira etapa no planejamento da segunda obra foi a escolha da instrumentação – violino e piano – da métrica, 4/4, e da quantidade total de compassos, fixada em 90 (ibid, p.5)

Os compassos iniciais de Imagina, Capitu e Sonatina se encontram abaixo:

Em outras peças, outros parâmetros são obtidos ao longo da etapa de seleção paramétrica: Ponteio N.2 (Caderno 1), de Camargo Guarneri, é analisada com base na teoria dos contornos, teoria da variação progressiva e análise particional rítmica (Pitombeira, 2014), e o primeiro movimento de Drei Lieder, Op.18, de Webern, tem apenas suas alturas parametrizadas a partir da teoria dos conjuntos (Pitombeira, 2017). A modelagem sistêmica, assim, compreende um método formal capaz de originar novas obras nas quais algumas propriedades remetem à obra original. Essas relações, potencialmente longínquas e mesmo imperceptíveis a olho nu nas obras resultantes, constituem justamente a riqueza do processo de modelagem na condição de entendimento do processo composicional: o estabelecimento de interrelações e a exploração de fenômenos diversos como terrenos férteis para o exercício criativo musical.

figura 2-12: trecho inicial de Capitu (2017), de Liduíno Pitombeira, peça elaborada a partir da modelagem sistêmica de Imagina (ibid, p.7).

figura 2-13: trecho inicial de Sonatina (2017), de Cláudia Usai, peça elaborada a partir da modelagem sistêmica de Imagina (ibid, p.8).

Um diferencial substancial, porém, afasta a metodologia subjacente à modelagem sistêmica do pensamento composicional que engendrou as composições próprias anexas a este trabalho. Os fenômenos de origem selecionados não são composições preexistentes, tampouco consistem em eventos sonoros, de forma que o mapeamento dos fenômenos foi realizado por meio de critérios não formais. Retomando a questão das ambiguidades subjacentes à tipologia de Meyer, a modelagem sistêmica apresenta traços que permitem enquadrá-la nas três categorias: a simulação, uma vez que a fonte original é um fenômeno sonoro codificado pela partitura; a manipulação, uma vez que parâmetros da peça original são modificados e redistribuídos; e a correlação, especificamente na subcategoria modelagem analógica, uma vez que a etapa denominada generalização pelos autores dissocia os parâmetros do fenômeno sonoro original. As composições originais anexas a este trabalho, em contrapartida, são oriundas de relações estabelecidas a partir da modelagem metafórica de Meyer, sem a mediação de um processo sistemático como o descrito ao longo dos parágrafos anteriores, particularmente devido à natureza não-musical dos fenômenos de origem utilizados. Não se almeja, porém, qualquer espécie de valoração de um processo ou forma de pensamento sobre outro: ressaltando as considerações de Mâche sobre o equilíbrio entre formas de pensamento distintas, a expansão de fenômenos de origem viáveis para a modelagem, assim como a expansão de procedimentos adotados a fim de mapeá-los ao

universo sonoro, é aqui entendida como benéfica ao ampliar largamente a gama de possibilidades disponíveis ao compositor.

É justamente devido ao escopo abrangente do conceito de modelagem aqui proposto que esforços investigativos mais frutíferos serão potencializados mediante a abordagem específica de cada composição – similarmente, até onde possível, às descrições individuais das formulações de peças geradas a partir da modelagem sistêmica, tarefa que compreenderá os capítulos posteriores deste trabalho, em concordância com a necessidade científica da realização de estudos de caso conforme esclarecido no capítulo inicial [p. 19].

Dois exemplos resumidos de abordagens do processo de modelagem composicional podem servir, assim, como amostras das investigações que serão realizadas nos capítulos subsequentes. O primeiro deles será da obra Le Lac (2001), de Tristan Murail, com base no trabalho de Rozalie Hirs (2007). O segundo será de uma composição própria, a miniatura para flauta solo DCT (2012).