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A interpretação dos resultados encontrados permite duas conclusões: a primeira delas é o fato de que a modelagem brevemente descrita por Kaija Saariaho em sua nota de programa é, de fato, passível de escrutínio na partitura; a segunda conclusão é o fato de que essa mesma modelagem não se manifesta sistematicamente ao longo de toda a peça: em outras palavras, a cor das trompas não é sempre unificada, mas apresenta essa característica predominantemente, e a função das trompas não é sempre,mas sim majoritariamente, a de dividir frases orquestrais.

Uma expectativa de coincidência integral entre o fenômeno de origem e o modelo conforme apresentado em seu domínio de destino, porém, é irrazoável. O próprio conceito de modelagem afasta essa possibilidade quando constatado o fato de que o modelo não é o fenômeno em si, mas sim uma representação abstrativa. George Box afirma, no trabalho ao qual pertence a citação que epigrafa o capítulo inicial deste trabalho:

Uma vez que todos os modelos são errados o cientista não conseguirá obter um modelo “correto” por elaboração excessiva. Pelo contrário, seguindo Guilherme de Occam, ele deve buscar uma descrição econômica de fenômenos naturais. Assim como a habilidade de elaborar modelos simples mas evocativos é a assinatura do grande cientista, a parametrização e elaboração exageradas são frequentemente a marca da mediocridade” (1976, p. 792)

Retomando a tripartição de analogias – negativas, positivas e neutras – proposta por Mary Hesse (pp. 20-21) e transpondo-as para a modelagem composicional de Laterna Magica, é possível encontrar os três casos: a analogia positiva com a recorrência da cor vermelha é modelada na recorrência de acordes como 6-Z44 em suas muitas aparições ao longo da peça, vide tabela 1 e a investigação subsequente; analogias negativas ocorrem em trechos previamente classificados como categoria C ao longo das páginas anteriores, nos quais não ocorrem indícios de que as trompas realizem qualquer espécie de divisão das frases orquestrais. Exemplo adicional pode ser obtido nos compassos [286-289], reproduzidos na figura 34, quando as trompas fornecem uma base textural para a melodia executada pelo flautim e para figurações velozes realizadas na celesta. Trata-se de momento em que não há correspondência entre o modelo e o fenômeno original. Analogias neutras, em sua condição provisória, podem ser submetidas a entendimentos distintos: relações encontradas pelo apreciador da obra e que, na ausência de informações adicionais verificadamente fornecidas pelo compositor, permanecem sujeitas a uma validação ou rejeição sistemática; ou, alternativamente, relações que o compositor venha a estabelecer involuntariamente ao longo do processo composicional, e que poderão ser reconhecidas como analogias positivas ex post facto.

Tomando o primeiro entendimento como uma rota fértil para investigações futuras, os compassos [471-472] podem ser interpretados como uma modelagem da função das trompas expandida para uma escala orquestral maior: aos seis sons já contidos nas trompas e orquestrados em um fortississimo é acrescentada a nota F145, tocada por contrafagotes, tuba e contrabaixos. O tutti orquestral, com a indicação feroce, efetua uma divisão de frases orquestrais climática no escopo formal da peça, que não seria viável tão somente com as trompas, seja pela dinâmica orquestral, seja pela presença da nota F1, indisponível nas trompas. Ocorre, assim, um processo de metamodelagem: as trompas, cuja cor unificada

45 Entenda-se C4 como o dó central e o A4 como o lá 440hz, conforme a notação internacional de alturas – IPN

modela a cor vermelha e cuja função de efetuar a divisão das frases orquestrais modela a transição entre cenas de Gritos e Sussurros, são modeladas pela orquestra toda, expandindo tanto a intensidade atribuída à cor vermelha por Ingmar Bergman como a delimitação de frases orquestrais.

A constatação de que o processo de modelagem é retroalimentar, com modelos prévios continuamente originando modelos novos, mostra-se particularmente apropriada no contexto de Laterna Magica,uma vez que Bergman recorre declaradamente ao universo musical em sua produção cinematográfica. Nas palavras do cineasta encontradas no roteiro de Persona que epigrafam este capítulo, “não escrevi um roteiro de filme no sentido usual da palavra. O que escrevi me parece mais como uma partitura que irei reger durante a filmagem”46. Igualmente condizente com as premissas postuladas nesta investigação é a origem do título do filme, que tem origem na descrição do Concerto para Piano K.449 de Mozart dada pelo crítico musical Yngve Flyckt: ‘música que soa como gritos e sussuros’47.

Esta investigação de Laterna Magica mostra que, assim como a modelagem científica, a modelagem composicional é um processo criativo e de tomada de decisões. Quais os aspectos do fenômeno original passíveis de transposição ao domínio sonoro, quais elementos serão deixados de lado, quais serão representados e quais parâmetros serão utilizados para a modelagem são questionamentos que o compositor – assim como o cientista – deve fazer-se continuamente. Retomando em caráter conclusivo a citação de George Box apresentada anteriormente (pp. 83), esta investigação de Laterna Magica nos leva a concluir que a habilidade de elaborar modelos evocativos – e o adjetivo ‘simples’ é propositalmente deixado de lado – é a assinatura do compositor cujas ideias possuem foco e clareza.

46 Informação obtida no site da Fundação Ingmar Bergman:

< http://www.ingmarbergman.se/en/universe/unrequited-love-music>

5 RECURSION: A RECURSIVIDADE COMO FENÔMENO DE ORIGEM

Há dois tipos de pessoas no mundo: aquelas que entendem recursão e aquelas que entendem que há dois tipos de pessoas no mundo: aquelas que entendem recursão e...

Autor desconhecido Este capítulo aborda a peça Recursion, para conjunto de câmara, enfatizando a relação entre o fenômeno de origem e a elaboração da composição. Dando seguimento à demonstração de aplicabilidade dos conceitos postulados nos capítulos iniciais deste trabalho, o foco desta abordagem reside no esclarecimento da relevância da noção de recursividade, na condição de fenômeno de origem, ao longo do processo composicional.

Recursion foi composta para uma formação instrumental consistindo em flauta, bandolim, piano, violino, violoncelo e percussão. O fenômeno de origem, não diferentemente dos apresentados nas peças já investigadas – DCT e ...E Ele Construiu Uma Casa Torta – foi selecionado tendo em vista tratar-se de um conceito que, na ocasião, vinha despertando o interesse do autor. Assim, uma descrição mais específica do fenômeno, que no âmbito da peça em questão consiste na recursividade, se mostra adequada anteriormente à abordagem da composição propriamente dita.