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8.2 RATIONALE

8.2.4 Planejamento local

Diante do planejamento da grande forma, o planejamento local da peça foi elaborado com um sistema que Cunha denomina ciclos rítmicos, consistindo na obtenção de durações e alturas a partir de uma matriz dodecafônica. As séries utilizadas para os ciclos rítmicos iniciais são as localizadas nas extremidades da matriz dodecafônica, interligando a última nota de uma série com a primeira nota da série seguinte. Assim, as séries original, inversão iniciada em F#, retrógrada iniciada em E e retrógrada da inversão iniciada em D são utilizadas em sequência. As classes de alturas fornecidas sequêncialmente pelas séries são utilizadas em cada voz para os instrumentos de alturas definidas. Ciclos posteriores adotam um padrão geométrico similar, percorrendo quadrados internos da matriz, com séries menores e, portanto, não-dodecafônicas.

O cálculo das durações e, consequentemente, dos pontos temporais de ataque para cada uma das vozes foi efetuado de forma similar ao empregado para gerar as duas camadas de perturbações: para cada série, a distância em semitons entre cada par de intervalos adjacentes é multiplicada pela duração de uma dentre onze possíveis figuras rítmicas, sejam elas a correspondente à figura rítmica da semínima e as seguintes frações de duração da semínima, em ordem decrescente de duração: quatro quintinas de semicolcheias (80% da duração de uma semínima), duas tercinas de colcheias (66%), colcheia (50%), duas quintinas de semicolcheias (40%), uma tercina de colcheias (33%), semicolcheia (25%), uma quintina de semicolcheias (20%), uma sextina de semicolcheias (≈16,67%), uma septina de semicolcheias (≈14,28%) e fusa (12,5%).

A figura 8-3 exibe as figuras possíveis, localizadas no rodapé de uma das páginas do manuscrito dos ciclos rítmicos. As identificações textuais às margens da imagem foram acrescidas a fim de facilitar a leitura.

figura 8-3: figuras básicas utilizadas para gerar as durações de Ancient Rhythm. Manuscrito fornecido pelo compositor, acrescido da identificação por extenso de cada figura.

A mudança das durações básicas elencadas acima coincide com a mudança das séries de classes de alturas: quando uma série é encerrada e outra tem início, uma nova duração básica também é selecionada. Algumas exceções são encontradas, nas quais a série é alterada e a figura permanece a mesma. Não foram encontradas evidências de quaisquer critérios sistemáticos para a seleção das durações básicas; caso existam, tampouco o compositor os relembra, mas frações menores da semínima se tornam mais frequentes conforme a peça progride até o ponto temporal 377, 15º termo da sequência de Fibonacci, adensando gradualmente a quantidade de pontos de ataque.

O mapa detalhado do planejamento local da peça, rascunhado em papel milimetrado, consiste na indicação dos pontos temporais com a correspondência de semínimas para números inteiros, cada ponto de ataque em cada voz acompanhada da indicação de sua

respectiva classe de alturas e sinais + em duas cores indicando os pontos temporais de perturbações em duas camadas diferentes86. A reprodução e avaliação de três desses trechos será suficiente para um esclarecimento mais preciso do mapeamento dos ciclos rítmicos. Inicialmente, a primeira página dos ciclos rítmicos, que originou os primeiros compassos:

figura 8-4: Início dos ciclos rítmicos, na voz marcada com “A” e “Tam-Tam”. A voz superior demarca a sequência de Fibonacci. Manuscrito fornecido pelo compositor.

Os ciclos rítmicos têm início com a voz inferior no manuscrito, que na partitura corresponde aos tam-tams; simultaneamente, a voz superior, que não constitui um ciclo rítmico, demarca sistematicamente os pontos temporais da sequência de Fibonacci, tarefa atribuída ao carrilhão de orquestra na partitura. Considerando o instante inicial da peça como ponto zero, ataques nos pontos 0, 1, 2, 3, 5 e 8 podem ser visualizados na figura 8-4. Essa demarcação ocorrerá ao longo da peça toda e sempre com a classe de alturas mi, cumprindo um papel quase didático quanto ao embasamento que a sequência fornece ao fluxo temporal

86 O sinal + é utilizado em duas cores, vermelha e azul, indicando pontos temporais pertencentes

respectivamente à camada de perturbações 1 e à camada de perturbações 2. Exemplos de ambos são visíveis na figura 8-4,

da peça. Na figura 8-5, os ataques das percussões 2, 3 e 4 constituem desvios cuja previsão inexiste nos manuscritos e que serão objeto de discussão ao longo da seção 8.3.

Os pontos temporais coincidentes com a sequência são, também, pontos de entrada de vozes adicionais, de forma que uma maior densidade é gradualmente edificada. Na figura 8-4 é possível visualizar a segunda voz adicionada no ponto 55 e o ingresso da terceira voz no ponto 89. O mesmo ocorrerá no ponto 144, em coincidência com os termos da sequência.

figura 8-5: compassos iniciais de Ancient Rhythm.

figura 8-6: pontos temporais 124 a 143 dos ciclos rítmicos. Manuscrito fornecido pelo compositor.

O segundo exemplo se encontra no trecho compreendido entre os pontos 124 e 143, reproduzido na figura 8-6. As três vozes já presentes indicam, no sentido superior-inferior, as durações atribuídas aos pratos, cordas e tam-tams87. A primeira voz tem suas durações geradas pela duração-base de 4/5 de semínima, multiplicada pelo valor dos intervalos obtidos na matriz dodecafônica conforme esclarecido anteriormente. Assim, as classes de alturas C e Eb, distantes por 3 semitons, correspondem a 12 quiálteras de 5 semicolcheias, ou 2 quiálteras

87 Essa correspondência entre vozes e instrumentação se encontra manuscrita à esquerda da página, mas foi

de 5 semicolcheias mais 2 semínimas; o intervalo seguinte, classes de alturas Eb e B, com 8 semitons de distância, corresponde a 32 quiálteras de 5 semicolcheias, ou 2 quiálteras de 5 semicolcheias mais 6 semínimas, correspondência essa que pode ser constatada na imagem. A distância entre as duas classes de alturas seguintes, B e G, é a mesma – 8 semitons – e, consequentemente, a duração resultante também é a mesma. A série utilizada é a série original, que nesse momento se encontra próxima de seu término.

A segunda voz tem suas durações governadas pela semínima nas classes de alturas F# e C#, correspondendo a 6 semínimas, e pelo mesmo valor da voz anterior a partir das classes de alturas seguintes: 4/5 de semínima. Assim, as classes de alturas C e D geram 8 dessas quiálteras, ou, como visível no manuscrito, 1 semínima mais 3 quiálteras de 5 semicolcheias. Os 11 semitons que separam as classes de alturas D e C# irão gerar 44 semicolcheias de 5 notas, correspondendo a 8 semínimas mais 4 quiálteras de semicolcheia. A série utilizada é a inversão que inicia com a última classe de alturas da série original.

A terceira voz tem suas durações geradas, no trecho investigado, por semínimas: uma semínima para cada semitom, correlação que pode ser facilmente constatada no manuscrito. As séries utilizadas no trecho são o término da inversão que inicia na última classe de alturas da série original, seguida imediatamente pela série retrógrada iniciada pela classe de alturas mi, comum a ambas.

Nos trechos da partitura reproduzidos nas figuras 8-7 e 8-8, a implementação se dá em plena integridade para com os pontos de ataque originados pelo mecanismo formulado por Cunha. Nas duas figuras, os ataques correspondentes a cada voz se encontram indicados por figuras geométricas distintas. As vozes atribuídas aos pratos, cordas e tam-tams no trecho do manuscrito reproduzido anteriormente estão indicadas respectivamente por losangos, elipses e retângulos. Enquanto os pontos de ataque são inteiramente coincidentes com o planejamento pré-composicional, diversos elementos adicionais são visíveis na partitura, ao que lhes cabem observações adicionais.

O gesto na marimba, destacado com um hexágono, constitui uma das perturbações previstas em duas camadas no mapa da macroforma apresentado anteriormente. O sinal + em cor azul, visível no ponto temporal 129 do manuscrito (figura 8-6), indica ponto temporal da segunda camada. As alturas do gesto foram obtidas da região central da matriz

dodecafônica, onde é visível a marcação de dois retângulos concêntricos. A visualização das classes de alturas mi, fá, dó sustenido e dó é clara dentro da região referida.

Diversos pontos de ataque são compartilhados por outros instrumentos que não os previstos especificamente para cada voz. Cunha denomina esse procedimento de orquestração do tempo, consistindo, em Ancient Rhythm, no acréscimo de instrumentos aos pontos temporais pré-determinados, agregando diversidade e variedade ao fluxo sonoro. Exemplos nítidos desse procedimento no trecho apresentado são os violinos 2 e violas dobrando o ataque dos pratos no ponto temporal 126, e a primeira entrada dos clarinetes na peça, visível na indicação textual “Cls.”88, quando passam a compartilhar os pontos temporais com as cordas ao atacar a nota dó em dinâmica pianississimo no ponto 135, simultaneamente com o ataque da mesma altura em harmônicos pelas violas. No ponto 136, apenas o clarinete 1 irá atacar o ponto previsto no manuscrito, e no ponto 138 o clarinete 4 irá compartilhar o ataque com o prato suspenso. A orquestração do tempo, assim, prescreve que qualquer ataque pode ser orquestrado livremente, fazendo uso de instrumentos adicionais. Com base nessa regra, surgem inúmeras possibilidades de orquestração, tanto relativas diretamente aos pontos de ataque como relativas ao aproveitamento dos prolongamentos de cada sonoridade. O terceiro e último exemplo se encontra no trecho localizado entre os pontos temporais 364 e 372 (figura 8-9). Nele, as figuras rítmicas que governam as durações geradas para cada uma das seis vozes já presentes são, seguindo a ordem visual descendente, a de frações de semínima: um sétimo, um sexto e um quinto, seguidas por fusas (um oitavo) e, nas duas vozes inferiores, semicolcheias (um quarto). As durações de cada voz do manuscrito encontram correspondência em cada um dos quatro clarinetes e nas cordas, onde as duas vozes inferiores são atribuídas aos violinos e às violas, violoncelo e contrabaixo. As séries utilizadas, conforme descrição anterior, contém dez classes de alturas localizadas na 2ª e 11ª linha e 2ª e 11ª coluna da matriz. As classes de alturas dadas pelas séries se encontram de forma igualmente individualizada nos clarinetes, ainda que ofuscadas pelo emprego de multifônicos, e, para as cordas, nos contrabaixos e nos primeiros violinos, com a orquestração do tempo adensando a textura por meio de alturas distintas nos instrumentos restantes. A implementação na partitura final, apresentada na figura 8-10, é, comparativamente, menos direta quando são levados em consideração os diversos pontos de ataque adicionais -

predominantemente para notas repetidas - não previstos no manuscrito. A densidade de ataques é particularmente elevada tendo em vista a proximidade do ponto temporal 377, que, conforme mencionado, demarca a seção áurea no planejamento da peça. A perturbação percussiva pelos apitos e bombo é prevista para o ponto temporal 370, como indica o sinal [+] em cor vermelha, visível na figura 8-9.

figura 8-7: trecho da partitura final da peça, acrescida de indicações dos pontos temporais 124 e 127 e de destaques aos pontos de ataque prescritos pelos ciclos rítmicos.

Os exemplos dados são suficientes para demonstrar o adensamento textural que transcorre gradualmente, devido à escolha das figuras duracionais básicas, à entrada de vozes adicionais nos ciclos rítmicos e aos desvios do mecanismo que engendra a peça. Enquanto os dois primeiros parâmetros são resultado do planejamento pré-composicional, os desvios merecem atenção redobrada justamente por não possuírem previsão na formalização e por

suas manifestações gradualmente crescentes na peça, razão pela qual serão objeto de discussão dos parágrafos seguintes.

figura 8-8: trecho da partitura final da peça, acrescida de indicações dos pontos temporais 129, 131, 135 e 137 e de destaques aos pontos de ataque e de perturbação prescritos pelos ciclos rítmicos

figura 8-9: pontos temporais 364-372 dos ciclos rítmicos. Manuscrito fornecido pelo compositor.