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O CONTO ‘ AND HE BUILT A CROOKED HOUSE’ (ROBERT HEINLEIN, 1941)

Nos parágrafos iniciais do conto, o arquiteto Quintus Teal, durante uma conversa com seu amigo Homer Bailey, demonstra insatisfação com a prática arquitetônica de sua época:

- O que é uma casa? – perguntou a seu amigo, Homer Bailey.

- Bom – Bailey respondeu cautelosamente – em termos gerais, sempre considerei uma casa como uma engenhoca31 para evitar a chuva.

- Não! Você é tão ruim como os outros

- Eu não disse que a definição estava completa...

- Completa! Sequer estava na direção certa. Desse ponto de vista nós poderíamos estar de cócoras em cavernas. Mas não culpo você – Teal prosseguiu de forma magnânima – você não é pior do que esses toscos32 que vemos por aí

exercendo a Arquitetura. Mesmo os modernos - tudo que fizeram foi abandonar a escola bolo de noiva em favor da escola posto de serviço, descartaram o pão-de-

31 gadget, no texto original. 32 lugs, no texto original.

gengibre33 e jogaram um pouco de cromado, mas no fundo são tão conservadores

quanto uma prefeitura distrital. Neutra! Schindler! O que esses caras têm? O que Frank Loyd Wright tem que eu não tenho?

- Contratos – respondeu seu amigo sucintamente. (1941, pp.68-69)

Quintus dá seguimento ao seu manifesto verborrágico, afirmando que entende uma casa como um “processo vital”, uma “coisa viva dinâmica”, que “muda conforme o humor de seu habitante – não um caixão morto, estático, superdimensionado”. Em seguida, passa a questionar a onipresença da geometria estática Euclidiana, afirmando que não consiste na única alternativa: “pense na riqueza infinita de articulação e relações em quatro dimensões. Que casa, que casa” (ibid, p.69). Diante dos questionamentos de Homer, esclarece que não se refere ao tempo, comumente aludido como a quarta dimensão, mas sim à quarta dimensão espacial, construindo demonstrativamente um hipercubo - estrutura geométrica conceitual gerada a partir da expansão do cubo tridimensional para uma dimensão espacial adicional - com palitos e argila.

figura 3-1: representação bidimensional de um hipercubo. Imagem obtida em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Tesseract#/media/File:Schlegel_wireframe_8-cell.png>

33 gingerbread, no texto original. Conforme Langenbach (2010), o termo designa o estilo arquitetônico originado

no Haiti no final do século XIX, e foi criado por turistas norte-americanos na década de 1950, equiparando esse estilo ao estilo de prédios da era Vitoriana nos Estados Unidos.

A empolgação de Teal resulta em um projeto arquitetônico, que será a nova residência de Homer: uma casa cuja forma externa reproduz o desdobramento de um hipercubo no espaço tridimensional, de forma similar à projeção de um cubo em duas dimensões:

figura 3-2: um cubo planificado ou 'aberto' em 2 dimensões, e um hipercubo submetido a desdobramento similar, porém em 3 dimensões. Imagem obtida em: <http://revel.unice.fr/alliage/index.html?id=3499>

Um mês depois, o casal Bailey encontra o arquiteto a fim de conhecer a moradia recém-concluída. No caminho, Teal menciona um pequeno terremoto ocorrido na noite anterior. Ao chegar no local, apenas uma grande estrutura de formato cúbico é encontrada no lugar dos oito cômodos menores que davam forma ao projeto original. Surpresos, os personagens entram na casa torta, e a apreensão do interior leva o arquiteto a concluir que o terremoto levou a estrutura a um colapso dimensional, convertendo-se, de fato, em uma estrutura quadrimensional. Percorrendo freneticamente os aposentos da casa, peculiaridades diversas oriundas da dimensão extra que a casa ocupa são experienciadas: ao sair pela porta da frente o casal Bailey vai parar em outro aposento, a janela panorâmica que originalmente ofereceria uma vista do entorno exterior da casa oferece vista para outro aposento, e a descoberta de que ao seguir uma linha reta cruzando os aposentos da casa, retorna-se ao ponto de partida são algumas delas.

Após explorar a casa, atividade essa entrecortada por frequentes desmaios de Matilde Bailey e por conclusões adicionais de Teal sobre os eventos e sobre o rumo inesperado tomado por sua criação, um novo terremoto atinge a casa torta, agora com os personagens em seu interior. Após a fuga desenfreada os personagens deparam-se com um lugar desconhecido – “gostaria de poder ter certeza de que estamos na Terra” (ibid, p.83), afirma Teal – sem

nenhum indício visual da casa. Retornando ao local original, tampouco encontram qualquer vestígio, ao que o arquiteto começa a propor outra ideia revolucionária. Em meio ao novo brainstorm, Teal se esquiva rapidamente de uma tentativa de agressão de Bailey, concluindo o conto.

De forma geral, a apreciação do conto se deu devido à brevidade com que o autor demonstrou ser capaz de integrar a ficção científica com uma narrativa bem-humorada, sem que um resulte predominante sobre o outro na totalidade da obra. A bipartição do conto também foi objeto de apreciação, consistindo em, essencialmente, duas seções – a explicação e ideia original de Teal durante sua conversa com Bailey, e a visita à casa pelos três personagens.

A referência a estruturas oriundas da geometria não-euclidiana não é inédita na produção artística do século XX em diante, ainda que decididamente não consista em fenômeno de origem corriqueiro. Exemplos afastados por diversas décadas são Hyperprism (1923) de Varèse, a pintura Crucifixion (Corpus Hypercubus) (1954), de Salvador Dali, e a ópera Hypermusic Prologue (2009), de Hector Parras. Igualmente, o Manifesto Música Nova, de 1963, traz explicitamente em um de seus parágrafos o seguinte texto: “geometria não- euclidiana, mecânica não-newtoniana, relatividade, teoria dos ‘quanta’, probabilidade (estocástica), lógica polivalente, cibernética: aspectos de uma nova realidade”. A motivação encontrada no conto pode ser associada às representações altamente idiossincráticas referidas por Meyer, mencionadas no capítulo anterior. A escassez de referências dificulta especulações sobre a existência ou surgimento de uma tradição representacional, mas, em contrapartida, o interesse despertado ocasionalmente pelo conceito ao longo das décadas é digno de nota.