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4.2 A MODELAGEM COMPOSICIONAL DAS TROMPAS EM LATERNA MAGICA

4.2.1 A cor unificada das trompas

A tabela 1 exibe todas as entradas das trompas na peça, na forma de compassos em que ocorrem acompanhados da classificação dos acordes conforme a taxonomia de Allen Forte em The Structure of Atonal Music (1973). A tabela dispensa a equivalência de oitavas e agrupa os acordes apenas quando a posição exata de cada nota que o integra é a mesma, razão pela qual há recorrências da classificação de Forte. Os dois trechos indicados com o sinal [*] são os únicos em que ocorre atividade polifônica, com alterações nas alturas de cada trompa ao longo dos compassos. Em ambos os eventos, uma vez que constituem exceção, foi utilizada a altura de duração predominante, solução suficiente para enquadrá-los junto aos dois acordes de maior recorrência.

41A Laterna Magica é um dispositivo cujas origens remontam ao século XVII, sendo usualmente considerado o

tabela 4-1: todos os acordes formados pelas trompas na partitura de Laterna Magica, incluindo a classificação de Forte e os compassos em que ocorrem

Observando a tabela de acordes, uma primeira constatação – a qual favorece a hipótese de busca de uma unificação das sonoridades por parte da compositora – é possível: os acordes apresentam alto grau de regularidade quanto à sua duração notacional, estendendo-se majoritariamente entre dois e quatro compassos. A duração dos acordes, assim, será proporcionalmente estável ao longo da peça mesmo com as alterações de andamento, parâmetro relevante conforme esclarecido pela nota de programa e que, de fato, será frequentemente modificado42.

Se a unificação da sonoridade recorre a uma solução simples no que tange às durações, as alturas constituem objeto de maior complexidade organizacional. Constata-se com facilidade na tabela que os primeiros acordes da peça são também os de maior recorrência. Os acordes 6-z44, 6-14, 6-z42, 6-z26 e 6-2 ocorrerão respectivamente onze, sete, cinco, quatro e seis vezes com a exata mesma disposição de cada som nas trompas; a essas ocorrências, podem ser adicionadas outras nas quais, adotando os critérios abstrativos de Allen Forte, os mesmos acordes serão formados com disposições alternativas das alturas. O acorde cuja contagem sofrerá maior alteração é o 6-z42, com mais quatro ocorrências.

A quantidade total de acordes dos quais a peça faz uso é pequena quando comparada à quantidade de acordes de seis sons possíveis com as seis trompas. Uma contagem simples do total de combinações viáveis, adotando como limites a altura mais grave e a mais aguda encontradas nas trompas (respectivamente E3 e B4) e descartando dobramentos, resultaria em valores assombrosos: quase 40.000 combinações possíveis43. Tal critério, porém, viabilizaria a qualificação de essencialmente qualquer composição como possuindo uma sonoridade unificada, de forma que a abstração de transposições, inversões intervalares e oitavas resulta útil, ao constituir procedimento comum no âmbito de análises harmônicas e primordial junto aos parâmetros de agrupamento de Allen Forte. Mediante tal processo abstrativo, o conjunto de acordes se mostra compacto quando comparado ao total disponível: dos 50 acordes de seis sons usualmente reconhecidos como distintos pela harmonia pós- tonal44, Saariaho utiliza apenas onze – menos de um quarto do total. Percentuais similares

42 Contabilizando tão somente as mudanças de andamento com indicação de metrônomo, a partitura apresenta

45 alterações, às quais se acrescentam diversas outras sem especificação metronômica.

43 O valor é obtido pela combinação simples das 20 notas possíveis agrupadas em 6, cujo resultado é 38.760. 44 Além de Allen Forte, George Perle (1962, p.110) e Elliot Carter (2002, p.40) também quantificam em 50 os

circunscrevem o uso dos acordes de cinco ou menos sons: nenhum desses possui mais de quatro elementos de sua classe dentre os acordes usados em Laterna Magica.

Se a gama de acordes é reduzida, é possível inferir preocupações por parte da autora quanto à sonoridade resultante no âmbito da peça. Desconsiderando progressões harmônicas que venham a sugerir centros tonais, uma vez que não são objeto de atenção de Saariaho conforme evidenciado pela citação apresentada no capítulo inicial, há regularidade razoável nas características dos acordes quando comparados entre si. Os vetores intervalares indicando a quantidade de intervalos da segunda menor ao trítono contidos nos três acordes mais frequentes encontram-se na tabela 2:

Acorde Vetor Intervalar

6-z44 313431

6-14 323430

6-z42 324222

tabela 4-2: vetores intervalares dos três acordes de maior recorrência em Laterna Magica

Note-se que os dois acordes de maior recorrência da peça possuem alto grau de similaridade, com quantidade igual de intervalos de 2ªm, 3ªm, 3ªM e 4ªJ: a diferença é tão somente a presença de um intervalo de trítono no acorde 6-z44, que inexiste no segundo, sendo substituído por um intervalo a mais de 3ªm. De fato, a primeira transição entre os dois acordes [25-26] faz uso de tais propriedades para a condução das vozes, conforme demonstra a figura 1. Um breve efeito timbrístico idiomático do instrumento – o glissando descendente que ocorre naturalmente com a inserção da mão na campana – encerra o primeiro acorde, articulado com o seguinte por uma pausa de colcheia. Apenas as trompas 3,5 e 6 terão a altura modificada, cada uma em um tom, em relação à altura do acorde precedente. Ainda que conduções de vozes similares à descrita acima entre os acordes das trompas não venham a constituir regra ao longo da peça, o somatório das recorrências dessa mesma progressão, como em [232-233] e [293-294], e da semelhança estrutural dos acordes quanto àsuas propriedades intervalares são indícios suficientes para denotar a preocupação de Saariaho com a obtenção de uma sonoridade unificada.

figura 4-1: Laterna Magica, compassos 23-26

Essa constatação é reforçada pelos acordes de cinco sons: dos quatro utilizados, três possuem as seguintes estruturas intervalares: [311221] (5-6), [321121] (5-5) e [322111] (5-4). O terceiro acorde listado na tabela 4-2, 6-z42, mesmo não apresentando tamanho grau de similaridade quanto à estrutura intervalar, revela-se quase idêntico ao anterior quanto à disposição das alturas: apenas as trompas 6 e 5 apresentam notas diferentes (vide tabela 1). Resta pouca dúvida quanto à sua contribuição para a formação de uma sonoridade suscetível a ser entendida como possuidora de uma cor unificada.

Concluindo as considerações pertinentes às alturas, cabe a constatação de uma predileção por acordes com quantidade específica de segundas menores: três, tanto nos exemplos de seis como nos de cinco sons, fato corroborado pelos vetores intervalares listados anteriormente.A adoção de acordes com uma quantidade regular e não negligível de segundas menores aparenta coincidir com uma qualidade expressiva comumente atribuída à segunda menor. Adotando a associação proposta por Cooke (1962), que afirma “...a segunda menor é

uma expressão de angústia num contexto de finalidade “ e, em seguida “a segunda menor expressa uma angústia sem esperança” (p.89), é notável a coincidência com a modelagem realizada por Bergman em Gritos e Sussuros. O cineasta afirma, em seu livro Images:

“Todos os meus filmes podem admitir-se filmados em preto e branco, menos Gritos e Sussurros. No roteiro está mencionado que imagino a cor vermelha como sendo o interior da alma. Quando era criança, via a alma como se fosse a sombra de um dragão, de um cinzento-azulado, pairando sobre nós sob a forma de um ser alado, meio ave, meio peixe. Mas tudo dentro deste dragão era vermelho. ” (1996, p.90)

Sintetizando as constatações apresentadas até aqui, a combinação de durações, alturas e propriedades intervalares dos acordes formados pelas trompas em Laterna Magica validam as afirmações da compositora quando as associa à cor vermelha utilizada no filme Gritos e Sussuros. Resta, assim, verificar a segunda afirmação pertinente ao processo de modelagem realizado por meio das trompas referido na nota de programa: a divisão das frases orquestrais, cujo fenômeno de origem é a transição entre cenas no mesmo filme.