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O mapeamento do conceito de recursividade realizado para a escrita da peça que foi objeto deste capítulo sumariza uma forma de pensamento natural à mente humana, ou assim afirmam Corballis, como argumento central do livro citado anteriormente, e Schoenberg, na citação prévia em que o pensamento recursivo de uma criança ao construir estruturas justapondo materiais é aparentemente descreditado a favor da concepção holística da obra musical. Enquanto o compositor austríaco nos leva a entender que essa última constitui uma forma de pensamento digna de maior credibilidade em sua oposição ao procedimento recursivo que caracteriza um processo criativo efetuado por meio de etapas graduais, Recursion atesta pela diversidade de formas de pensamento, em conformidade com assertivas já traçadas anteriormente neste trabalho. A partitura concluída da peça, na condição de modelo construído a partir do fenômeno de origem, é apresentada aqui como argumento favorável a formas múltiplas de entendimento e de abordagem da composição musical, as quais viabilizam resultados igualmente distintos e potencialmente meritórios frente a uma valoração estética.

Por essa perspectiva, o processo composicional descrito ao longo dos parágrafos anteriores constitui, igualmente, uma forma de pensar a música – remetendo novamente aos

modelos metafóricos de Meyer – que pode ser facilmente extrapolada e generalizada: investigar eventos já transcorridos, ter conhecimento de fatos passados e agregar componentes preexistentes no âmago de novas formulações é um procedimento natural não apenas à prática criativa musical, mas ao próprio pensamento humano, o qual modela recursivamente uma compreensão dos fenômenos que lhe são apresentados. É apropriado, neste momento, afirmar que a concepção de uma composição musical inevitavelmente agrega em si mesma, ou seja, aninha de forma recursiva, uma carga histórica substancial dispersa em um sem-número de componentes, sejam esses aspectos mais práticos como notação e instrumentação, sejam aspectos de natureza estética como concepções formais e estilísticas.

Em caráter conclusivo deste capítulo, cabe nova citação de The Recursive Mind, enfatizando em larga escala a relevância da recursividade que, em Recursion, encontra um possível respaldo macroscópico de sua relevância como fenômeno:

As complexidades do mundo moderno não são, obviamente, produtos de mentes individuais. Pelo contrário, elas são os produtos cumulativos da cultura. A maioria de nós não tem ideia de como funciona um motor a jato, um computador ou até mesmo uma lâmpada. Todos nós nos apoiamos nos ombros de gigantes. A combinação de princípios recursivos e de cultura cumulativa é de fato poderosa. Assim, simples fofocas evoluíram para romances e, aparentemente, telenovelas infindáveis, ferramentas simples para tecnologias complexas, habitações simples para cidades vastas, percussão rítmica para sinfonias, contagem para matemática (op.cit, p.225)

6 VOILE: O METAMODELO EM UMA OBRA TARDIA DE IANNIS XENAKIS

Na maioria das vezes eu não preciso de regras ou funções para compor. Elas estão no meu sangue. Iannis Xenakis Este capítulo investiga a peça Voile (1995), de Iannis Xenakis, para vinte cordas. A investigação será realizada com base nos escritos e nas ferramentas composicionais elaboradas pelo próprio compositor, e amparada por textos complementares. Após algumas breves informações preliminares sobre a peça, incluindo datas e locais de estreia e de algumas interpretações realizadas ao longo dos últimos anos, será apresentada a descrição da peça elaborada por James Harley em Xenakis: His Life in Mmusic (2004), de James Harley, na qual a Teoria dos Crivos é entendida como ferramenta central para a elaboração da peça. Essa afirmação será investigada detalhadamente e, diante da conclusão, a ideia de um metamodelo presente em Voile e possivelmente extensível a outras obras tardias de Xenakis será postulada. Por fim, uma abstração visual da partitura de Voile será elaborada com o propósito de viabilizar uma análise macroestrutural.

6.1 SOBRE A PEÇA

Voile (1995), pertence ao período tardio de Xenakis. Apenas seis peças se encontram no catálogo cronológico de obras do compositor posteriormente a Voile53, sendo quatro delas de 1996 e duas de 1997. A peça foi uma encomenda da Orquestra de Câmara de Munique, que a estreou na Herkulessal em 16.11.1995, sob regência de Christoph Poppen. Há registro de uma única gravação comercial disponível, no CD Music for Strings - Xenakis Edition vol. 6, interpretada pelo Ensemble Resonanz sob regência de Johanes Kalitzke. Algumas performances da peça nesta década incluem uma série de concertos realizados em cidades da Austrália pela Orquestra de Câmara Australiana em março de 2011 e sua inclusão como abertura de um concerto intitulado CINEMUSICA, também pela Orquestra de Câmara Australiana em abril de 2016, no qual foi seguida por excertos da trilha sonora composta por

53 As informações foram obtidas no site www.iannis-xenakis.org, mantido pela organização sem fins lucrativos

Friends of Xenakis Association, voltada ao apoio e organização de eventos, publicações e informações pertinentes à obra do compositor. Entre os membros integrantes da organização encontram-se a esposa e a filha de Xenakis, assim como os compositores Pascal Dusapin e François-Bernard Mâche.

Thomas Newman para o filme Beleza Americana (1999), de Sam Mendes, e pela suíte Psycho (1960), de Benjamin Hermann, que perfaz a trilha sonora do filme homônimo de Alfred Hitchcock, do mesmo ano. Voile também foi incluída como peça final no concerto The AFC Challenge, realizado pela orquestra A Far Cry, em Boston, em dezembro de 2017, cujas notas de programa mencionam o ceticismo da audiência e a “dificuldade” - incluindo aspas - progressiva das peças interpretadas54.