Denominam-se recursivos quaisquer procedimentos cuja própria definição os inclui, ou, alternativamente, procedimentos cuja execução implica em sua própria repetição. Tal definição, pouco esclarecedora em sua informalidade, pode ser melhor fundamentada por meio de exemplos encontrados com facilidade em domínios diversos. Cabe observar que a multiplicidade de manifestações da recursividade constitui, para o autor, um dentre os aspectos que veio a torná-la instigante como fenômeno de origem.
O exemplo mais imediato pertence ao domínio visual, podendo ser efetuado em termos práticos por meio do posicionamento de um objeto entre dois espelhos alinhados paralelamente. A reflexão contínua da imagem resulta em um processo que pode ser denominado recursivo, no qual o objeto será refletido infinitamente com escalas progressivamente menores. Ideia visual similar foi utilizada comercialmente na elaboração de
uma peça publicitária datada de 1904, cuja popularidade levou o efeito a ser denominado com o nome do fabricante do produto anunciado48: O efeito Droste é representado pela figura 5- 7:
figura 5-5: O "efeito Droste", exemplo visual de recursividade. Imagem obtida em <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Droste_cacao_100gr_blikje,_foto_02.JPG>
O objeto contido dentro do próprio objeto, possivelmente com a alteração de algumas propriedades a fim de viabilizar o aninhamento – no caso da imagem exemplificativa, uma alteração de escala - é, em essência, a característica de um procedimento recursivo. Expandindo o escopo da definição para além do domínio visual, o termo mise en abyme49, cunhado pelo escritor francês André Gide em 1893, é comumente utilizado para referência a qualquer mídia que aninhe mídias do mesmo tipo em sua estrutura. Diante desse entendimento, é possível citar a encenação da peça teatral O Assassinato de Gonzago dentro da peça teatral Hamlet como uma instância exemplificativa de recursividade, assim como em As Mil e Uma Noites, onde níveis múltiplos de narratividade são encontrados: a narrativa inicial, à qual o livro retorna regularmente, agrega diversas narrativas realizadas pela
48 Trata-se de um fabricante holandês de chocolates; o produto anunciado na imagem da figura 5-1 é cacau. 49 Uma discussão aprofundada da origem e significado do termo foge ao escopo deste trabalho, mas pode ser
personagem principal, algumas delas aninhando outras narrativas. Musicalmente, esse aninhamento pode ser associado a níveis estruturais diversos, tanto em larga escala como na protoforma ABA e suas extensões, que pressupõem o retorno de uma mesma seção com possíveis alterações, como em níveis locais, quando técnicas de variação como aumentação e diminuição viabilizam o aninhamento de materiais com propriedades similares. O procedimento adotado para a peça que é objeto deste capítulo, porém, não remete a tais aspectos mas sim à metodologia composicional, conforme será visto ao longo da seção seguinte.
Enquanto os exemplos acima são suficientes para uma compreensão intuitiva do conceito, seu uso também ocorre nas ciências exatas, onde encontra numerosas aplicações. O cálculo de fatoriais é um ótimo exemplo: fatoriais são calculados multiplicando-se sucessivamente um valor inteiro inicial pelo mesmo valor subtraído de uma unidade, até que o valor 1 seja atingido; o fatorial de 6, assim, é:
6! = 6 x 5 x 4 x 3 x 2 x 1 = 720
Generalizando a fórmula, tem-se a expressão:
n! = n * (n-1)! [ n > 0 ]
Note-se, pelo componente destacado na expressão acima, que a própria definição de fatorial inclui um fatorial.
Outro exemplo emblemático pertencente ao domínio matemático é a sequência de Fibonacci, utilizada como fenômeno de origem por diversos compositores e que será averiguada detalhadamente no capítulo 8. O mesmo pode ser dito de fractais, estruturas assim batizadas pelo matemático Benoit Mandelbrot em 1975 e cuja definição matemática é controversa mas que podem ser descritas resumidamente como padrões complexos gerados por processos iterativos, entre cujas propriedades se encontra a autossimilaridade: uma ou mais características de um fractal são mantidas independendo da escala na qual a entidade é observada ou apresentada. Processos composicionais tomando equações fractais como fenômenos de origem podem ser encontrados no trabalho de Dias-Jerez (2011), e investigações pertinentes à presença de autossimilaridade em repertório pertencente ao período da prática comum levam a conclusões tais como a de Brothers (2007), que escreve:
O fato de Bach ter nascido quase três séculos antes da concepção formal dos fractais pode indicar que uma afinidade intuitiva pela estrutura fractal é, pelo menos para alguns compositores, um elemento motivacional inerente ao processo composicional.
O conceito é de interesse extenso dentro das Ciências da Computação, área na qual constitui um método de resolução de problemas, denominado programação recursiva. A popularidade do conceito é suficiente para que a obra seminal The C Programming Language (Kernighan e Riche, 1978) contenha, em sua segunda edição (1988), referência à própria página na entrada recursion de seu índice remissivo. Cabe a reprodução, que constitui exemplo peculiar, em seu caráter bem-humorado, tanto do conceito como da extensibilidade de sua aplicação. Referências similares à recursividade são também frequentes em outras formas: a epígrafe deste capítulo é encontrada tipicamente em textos da mesma área.
figura 5-2: exemplo bem-humorado de recursividade em "The C Programming Language" (1988). Destaques adicionados.
O entendimento da recursividade como uma propriedade cognitiva fundamental da linguagem, conforme postulado por Chomsky em Aspectos da Teoria da Sintaxe, obra publicada originalmente em 1965, a torna conceito central para a linguística de forma geral50. Michael Corballis, em The Recursive Mind: The Origins of Human Language, Thought, and Civilization (2011), afirma que o fenômeno se encontra arraigado no pensamento, antecedendo a linguagem, e argumenta que a recursividade é característica primária distintiva da mente humana comparativamente à mente de outras espécies animais. Assim, postula Corballis, a noção de recursividade se encontra subjacente não apenas à nossa capacidade de refletir sobre nossas próprias mentes mas também é capaz de estimular mentes alheias. “Nos permite viajar mentalmente, no tempo, inserindo consciência do passado ou do futuro na consciência presente. Recursividade também é o ingrediente principal distinguindo a linguagem humana de todas as outras formas de comunicação animal”, afirma o autor (op.cit, p.1).
Diante dos exemplos dados, suficientes para uma compreensão do conceito, é possível proceder à descrição da relação estabelecida durante o transcorrer do processo de modelagem realizado para a composição da peça homônima.