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6.1 Quem é a mulher?

6.1.1 A mulher na vida privada

Os profissionais de RH relacionaram em vários momentos valores e estruturação da sociedade brasileira com a situação da mulher nas empresas, sendo que dois temas tiveram destaque por serem apresentados em grande parte das entrevistas: a mulher como responsável pelas tarefas da casa e o vínculo da mãe com o filho, temas associados à dificuldade de conciliação desses papéis com a carreira. A partir das falas, nota-se que, para os entrevistados, a vida privada das mulheres impacta diretamente no seu trabalho e na forma como são vistas nas empresas, inclusive por eles mesmos. Consequentemente, as políticas e práticas de RH provavelmente são desenvolvidas a partir dessa visão.

Em relação ao primeiro tema, a mulher aparece como principal responsável pelo lar e pelos filhos, mesmo quando trabalha fora de casa de forma remunerada, em oposição ao papel de provedor atribuído aos homens. Eles, quando realizam alguma tarefa doméstica, adotam uma postura menos comprometida e são vistos como “ajudantes”, não como responsáveis. Todavia, alguns profissionais, como a Entrevistada I e a Entrevistada B, adotam uma postura mais questionadora em relação a essa imagem enquanto outros profissionais, como o Entrevistado O, naturalizam.

Porque eu acho mesmo que ainda a gente carrega... é um ranço mesmo de que a mulher tem um papel mais servil, ainda mesmo, de dona de casa mesmo. Ela está no mercado de trabalho, mas a imagem da dona de casa não foi embora. [...] eu ainda ouço jovens falando... homens falando: – Ah, eu ajudo em casa. Enquanto no meu entendimento, não tem que ajudar nada, é ‘Eu faço em casa’. (Entrevistada I)

Eu acho que só é possível a gente falar de equidade entre mulheres e homens no local de trabalho, quando na família você tiver o equilíbrio entre papéis. Enquanto a mulher tem que tocar os filhos e a casa nunca vai ter equilíbrio no trabalho, porque sempre a pessoa no trabalho vai ter que perdoar o fato de que a mulher está fazendo vinte outras coisas. (Entrevistada B)

... a gente fica brincando, vamos fazer uma troca de papéis, bota o teu marido para fazer a mesma coisa e ao final da semana pega ele de volta, ele está destruído, não

sobreviveu, (risos) é tipo farrapo humano, falo: - Olha aqui jaz um... (Entrevistada G)

Porque, no fundo, é a mulher que se divide entre cuidar da casa, cuidar dos filhos, cuidar do marido, cuidar dela e cuidar do trabalho, enquanto em geral, para o marido, por mais que ele seja súper participativo, a responsabilidade dele é o trabalho, então ele não se liga com essas coisas. (Entrevistada N)

... a mulher chega em uma determinada época da vida, ela quer ter uma... um tempo, um equilíbrio entre a vida pessoal e a vida profissional e ela realmente deixa de investir 100% da sua vida ou grande parte da sua vida em um outro profissional. É óbvio, ela tem... ela quer ser mãe, ela tem criança pequena, ela tem marido, ela tem... ela quer usufruir e se dedicar à vida familiar e o que não, na mesma proporção o homem tem. (Entrevistado O)

O vínculo das mães com os filhos é caracterizado como especial e diferente do vínculo entre pais e filhos. E esse vínculo especial, para os profissionais entrevistados, tem impacto negativo na relação da mulher com o trabalho.

O fato é que o esperado é que a relação da mãe é única e o pai nunca vai ter igual. É isso que todo mundo diz, desde a gravidez é colocado. Então essa expectativa de que a mãe tem uma relação, um papel especial com o filho, prevalece. Ela é fato. [...] Mas assim, a mãe é o centro afetivo, assim, de união da família, e o pai tem essa figura de ser o suporte da mãe. (Entrevistada B)

Então eu acho que maternidade sim, mexe com a cabeça, e aí com coisas tangíveis e intangíveis, eu acho que a mulher para deixar... é a tal preocupação, deixar o filho com a babá, ou com não sei quem, ou na escola, quem vai cuidar, quem não vai cuidar, para ela deixar isso, ela tem que ter um propósito muito grande, muito maravilhoso no trabalho. (Entrevistado J)

... é raro nós encontrarmos uma mulher que prefere abrir mão do lado profissional para se dedicar a vida familiar, sendo apenas mãe... apenas não né? Ser mãe e cuidar dos filhos e do marido que é uma vocação maravilhosa, mas cada vez mais as mulheres conseguem conciliar esse dom materno e esse dom conjugal de dona de uma família, dona do lar, com os desafios profissionais. (Entrevistado O)

A maternidade foi normalmente associada às palavras: crise, culpa, dilema, sofrimento, naturalizando o vínculo da mãe com o filho que, de alguma forma, transforma o retorno às atividades após o período de licença-maternidade uma tarefa quase impossível.

Aí quando fala mãe, eu também sou pai, mas sempre a mulher tem uma carga adicional de ‘pô, se eu não fizer isso para o meu filho minha dívida é maior do que meu marido’, é natural, a carga. (Entrevistado M)

Então tem gente que assume claramente, vou parar por um ano etc., e volta depois, tem gente que volta depois dos quatro meses, mas volta em um sofrimento que assim é, não tem outra saída, tem que voltar, porque às vezes o voltar não está só vinculado à carreira, tem a necessidade financeira também. (Entrevistada I)

... você fala assim: eu faço o esquema para a pessoa poder voltar, mas infelizmente é isso, porque, assim, o mundo está aí, cruel para caramba, então se você conseguir fazer isso, joia. Muitas fazem isso numa boa, outras se sentem muito mal por vir, mas muita mulher em posição de líder, assim, falou: olha, eu tenho consciência que

se eu ficar X tempos fora nesse momento X da organização, a hora que eu voltar, eu perdi o pé. E sofre e tal e vai. (Entrevistada D)

Eu tenho acompanhado, assim, executivas que sai da casa chorando, chega na reunião chorando, tem que deixar muito, fica muito triste. Eu fico triste quando saio de casa? Fico, não tenho dúvidas e minha esposa trabalha também, mas eu deixo, é um sofrimento diferente, é um sofrimento diferente, é uma culpa diferente. Então eu acho que é muito pesado. (Entrevistado Z)

Uma das entrevistadas, contrariando o conjunto, apresenta o principal problema: a cobrança da sociedade em relação ao ideal do papel de mulher-mãe-dona de casa. Ou seja, desnaturaliza esse vínculo entre mães e filhos, mostrando-o como uma cobrança social.

... o pessoal acha que eu sou uma guerreira, o pessoal ‘nossa, ela súper...’ não é isso, é porque a sociedade tem uma cabeça que bota muito peso na gente, sabe? A mulher não se ajuda, a mulher cobra a mulher, é uma judiação. Quando o pessoal fala: – Ai, nossa, você fica o dia inteiro pensando nele. Eu: - Aham, é, fico. Eu vou falar o que? ‘Não, não penso nele, porque ele está na escolinha, ótimo, eu estou tranquila com a minha decisão, eu gosto de trabalhar’. Não, eu falo: – É, fico, nossa fico lá sofrendo, você nem sabe, nem trabalho direito. Isso é coisa que se fale? Não é. (Entrevistada V)

Nas falas dos entrevistados, as mulheres “escolhem” abrir mão de sua carreira nas empresas para se dedicar aos filhos nos primeiros anos de vida. Os entrevistados acreditam que as exigências da vida executiva (viagens, desafios, disponibilidade) não permitem que a mulher concilie carreira e vida pessoal.

Eu tenho visto muitas mulheres abrindo mão de carreira mesmo, porque não consegue conciliar, o ambiente não permite que você concilie, seja porque não permite um horário flexível, não permite, não tem a creche dentro das empresas, enfim, por uma série de coisas que não permite que você concilie esses diferentes papéis, e você tendo que escolher, acaba escolhendo por outro caminho. Então eu acho que anda bem complicado ser mulher no ambiente corporativo. Depois que você vira mãe, então, anda quase impossível, sabe? (Entrevistada N)

Então, tem muitas mulheres que acabam buscando... ah, eu ouço muito, eu prefiro manter o meu... minha posição gerencial, que até onde a balança entre o custo- benefício, eu consigo administrar, até uma posição gerencial me exige em termos de tempo, em termos de disponibilidade para viagens, desafios, entregas, porque acima disso, posições de diretoria, presidência, esse level, a gente precisa ter uma entrega, uma doação que eu não estou disposta a assumir em troca de não estar com meus filhos, com meu marido, com a minha família. (Entrevistada O)

A questão da mulher na organização, a mulher trabalhar e querer sair do trabalho, muita gente fala: – Você é louca. ‘Não, vou ficar com meus filhos, quero curtir os meus filhos’. Isso no passado talvez não era tão comum, hoje, nos últimos anos tem ficado mais comum algumas pessoas optarem a ter licença à maternidade e não voltarem ao trabalho. (Entrevistado M)

Tem muitas... eu tenho colegas executivas que fizeram opção de vida, ‘eu quero ser profissional’, então não casou, não teve filho, não... e se tornou a head de determinada operação em uma empresa. Tem outras não, que chega um momento que ela fez opção, ‘não, eu quero cuidar da minha família’, ‘não, eu quero ser uma executiva, eu quero ter um cargo de liderança, mas não tão alto, porque eu também

não quero perder de ver meu filho crescer’. [...] Então às vezes ele, vamos dizer assim, ele trabalha um pouco mais. O homem então fica com esse papel e a mulher fica com o outro papel (Entrevistado U)

Novamente, o homem é visto como coadjuvante na sua vida doméstica, tanto nas responsabilidades sobre as tarefas de casa quanto na responsabilidade pelo cuidado e educação com os filhos. Como consequência, não recebe cobrança da sociedade pelo seu papel de pai e se não se sente culpado.

Então eu já vi gente (homens) com filho, 3 dias que ficou em casa trabalhando, loucamente, assim, aí volta e aí, tipo, sai 10, 11 horas da noite e fala: – Ah, não, mas a criança está dormindo mesmo, nessa época nem vejo. (risos) Então acho que tem essa... o homem não tem tanto porque ele... ele não acha é responsabilidade dele, como ele não acha que é a responsabilidade dele ele também não se culpa por isso e aí também não sofre nenhum tipo de retaliação. (Entrevistada G)

Ninguém perguntou para ele (marido) a primeira vez que ele ia viajar como que ele ia fazer longe do [nome do filho]. Quando eu fui viajar, todo mundo ‘ah, e o [nome do filho], como que ele vai ficar, como que ele ficou, ai tadinho, ai ele vai para creche? Ai tadinho, tão pequeno para ir para creche, ai você vai para o trabalho? Ai você vai ficar o dia inteiro pensando nele’. Ninguém fala isso para o meu marido, ninguém. NINGUÉM. Nin-guém perguntou para ele se ele estava passando mal, sofrendo de ficar longe do filho dele, ninguém perguntou para ele se ele estava sofrendo de colocar o filho dele na creche, sabe? Ninguém. (Entrevistada V)

Como as mulheres são vistas como principais responsáveis pela casa e pelos filhos, é considerado normal quando uma mulher não volta ao trabalho remunerado depois do período de licença-maternidade e quando um pai tem um filho recém-nascido e fica no escritório trabalhando até tarde. Os homens e mulheres não são cobrados por papéis que não foram definidos socialmente a eles; caso queiram mudar, as estruturas das empresas não estão adaptadas a essa mudança.

Verifica-se o mito do amor materno, termo cunhado pela escritora Elisabeth Badinter para criticar a relação idealizada entre mães e filhos como inata e especial. Embora os entrevistados exaltem esse “dom materno”, as mulheres tratam como um peso e uma cobrança social, sendo que algumas até se vangloriam por conseguir conciliar todos os papeis.

Para os homens, esse mito tem impacto no exercício da paternidade, muitas vezes invisível que reforça o discurso de que o equilíbrio entre vida privada e carreira é importante apenas para as mulheres.

Na visão dos entrevistados, para desenvolver carreiras gerenciais em nível estratégico ou em cargos mais competitivos, muitas mulheres sentem-se obrigadas a optar entre segui-las ou ter

filhos. O discurso da necessidade de escolha é naturalizado ocultando o problema da exigência de plena disponibilidade de um funcionário para a empresa.

Por fim, nota-se que as entrevistadas se colocam no grupo de mulheres (“a gente”, “eu”) para descrever quem é a mulher na vida privada. Eenquanto os homens falam do outro, a mulher fala de si.