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E viram lá dentro, viram, o Tietê filho da Serra, que corria atrás do Sol. Quem de sua água bebesse (marinheiro, de onde vieste?) matava a sede do corpo mas adquiria outra sede muito mais grave, a do oeste. Sede de só caminhar

pelo continente adentro em oposição ao mar.

CASSIANO RICARD0** [104]

O passado brasileiro, em especial o período da colonização, sempre , atraiu os escritores da literatura infantil. Esse assunto não apenas fornece material de cunho histórico, realizando a exigência de ação e aventura, própria ao gênero, como tem livre trânsito na escola, fortalecendo os laços entre a literatura e o ensino. Por essas razões, permaneceu em vigor nas décadas de 40 e 50; mas não deixou de apresentar uma particularidade: revelou uma nítida preferência pela história dos bandeirantes.

O gigante de botas, de Ofélia e Narbal Fontes, inaugura, em 1941, esse veio

temático, a que se seguiram O espírito do sol (1946), Coração de onça (1951) e

Cem noites tapuias (1976). As obras narram proezas de bandeirantes reais, como

Bartolomeu Bueno, em O gigante de botas, ou imaginários, como o pequeno Joaquim Bueno Jr., em O espírito do sol. Em Cem noites tapuias, os garimpeiros, que passam por perigos similares, substituem os protagonistas históricos.

Viriato Correia publica A bandeira das esmeraldas em 1945 e, em 1946, Judas Isgorogota, O bandeirante Fernão. Por sua vez, Baltazar de Godói Moreira, em Rio turbulento e Aventuras nos garimpos de Cuiabá, mistura fatos ocorridos nos séculos XVII e XVIII com personagens fictícias, que imitam a epopéia dos desbravadores reais. E Francisco Marins, com o Roteiro dos Martírios —

Expedição aos Martírios (1952), Volta à serra misteriosa (1956) e O Bugre-do- chapéu-de-anta (1958), — lida com os mesmos componentes históricos e

imaginários — ao contar, paralelamente, os percursos de Anhangüera, no século XVIII, e de Tonico e André Perova, no século XIX, por Mato Grosso e Goiás, em busca de pedras preciosas.

Tornando o bandeirante o modelo para a construção dos heróis, os livros encampam dois temas que se desprendem da história: o do alargamento do

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território nacional; e o da abundância natural do Brasil, fonte inesgotável de riqueza. Assim, ao promover a transfiguração dos acontecimentos passados em propaganda nacionalista, contribuem para a difusão de alguns mitos, como os do:

a) heroísmo inato dos bandeirantes, líderes de certo modo desinteressados que provocaram a expansão territorial brasileira;

b) novo eldorado, situado a ocidente, de onde emanam riquezas intermináveis;

c) necessidade de o país marchar para oeste e reabilitar o projeto expansionista desses homens, sendo esta uma das condições para o progresso, conforme expressam as palavras de Francisco Marins, em Volta à serra misteriosa:

Seus pés haviam aberto uma trilha no sertão, trilha que se transformaria em caminho do progresso, em povoações e campos cultivados. Seu sonho de encontrar o lendário lugar dos Martírios não foi realizado. Em compensação,

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estava aberta outra trilha, talvez mais fabulosa que a outra, procurada pelo bandeirante... É que Mato Grosso ia-se transformar no segundo El-Dourado brasileiro...

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Publicadas a partir de 1940 e, com mais intensidade, na década de 50, essas narrativas se afinam a um fenômeno da época: a ocupação de regiões até então intocadas e, portanto, não integradas às diretrizes econômicas do país. A construção de estradas, de urna nova capital no sertão, a ênfase na exploração da agricultura e pecuária no Centro-Oeste, os projetos para a Amazônia — todas estas são iniciativas federais que denunciam urna nova maneira de encarar áreas inaproveitadas. A transfiguração desse projeto numa mitologia que reunisse elementos históricos e imaginários é uma tarefa assumida pela literatura infantil, contribuindo para a divulgação desses ideais.

A literatura infantil revela-se adequada para a transmissão dessa temática em decorrência de outro fator: a trajetória dos heróis se confunde com um rito de passagem, durante o qual meninos ou jovens se habilitam à idade adulta e a uma posição responsável na sociedade.

Francisco Marins, em Volta à serra misteriosa, comenta que a temática do livro mostra a história de dois meninos “que aprendiam a ser homens”.(12) Em Rio

turbulento, o herói é o jovem Bentoca que atravessa o sertão à procura do pai,

assunto que reaparece em O espírito do sol. Juca de Góis, em Aventuras nos

garimpos de Cuiabá, também cresce durante a expedição, motivando o comentário

do narrador:

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(11) MARINS, Francisco. op. cit. p. 54. (12) Id. ibid. p. 51.

Saíra de São Paulo um rapazinho; voltava um homem, um bandeirante, na

forma dos valorosos varões que influíram na terra. (13)

Não apenas o jovem bandeirante figura nessas obras. Dois outros tipos de personagens são freqüentes: o acompanhante adulto, espécie de tutor que, embora tenha papel secundário, é fiador do sucesso do protagonista principal; e o índio.

Este último não é objeto de uma representação uniforme. Em geral, desempenha a função de antagonista, encarnando alguns dos perigos com que se depara o herói. Trata-se do obstáculo a ser removido, junto com a floresta e os animais selvagens; faz parte da paisagem a ser submetida, o que não o torna bom, nem mau, apenas indesejável. Em outros casos, ele é efetivamente mau. não por aderir ao colonizador branco e por patrocinar rituais bárbaros, como a antropofagia. Mais comum é a

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representação dos brancos como vítimas de um conflito entre tribos inimigas, o que inverte os papéis, convertendo a invasão dos colonizadores ao território indígena numa tarefa saneadora, que soluciona antigas rivalidades.

Mas o índio pode ser também o auxiliar do aventureiro branco, ajudando-o, com grande lealdade, e atingir seus objetivos. Em tal caso, o índio é bom, como Pixuíra no Roteiro dos Martírios, ou Sapoaté, em Curumim sem nome, de Baltazar de Godói Moreira. Além destes, outros índios meninos aliam-se aos portugueses, como os que estão nas obras de Luiz Gonzaga de Camargo Fleury, O curumim do

Araguaia e Araci e Moacir. Catequizados, todos mantiveram contatos com a

civilização branca, que os domesticou e tornou-os melhores, como reconhece o curumim do Araguaia:

Não costumo matar ninguém, nem muito menos comer carne humana. Tenho

raça de índio, mas sou manso. Minha avó diz que sou civilizado. (14)

Na representação do índio se completa a imagem da conquista, cuja consolidação chocava-se com uma política que deveria se comprometer com a preservação das populações indígenas. Como contorná-la, sem ferir sentimentos humanitários? Unicamente pela desumanização do índio, que, desprovido de traços que possam identificar seu lado humano, dissolve-se na natureza. Dessa maneira, pode ser exterminado; para tanto, todavia, urgia privilegiar seu lado selvagem, traduzido em atos sanguinários, como a antropofagia, o seqüestro, a deslealdade e a traição (expostas, as últimas, cabalmente pelo Bugre-do-chapéu-de-anta).

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(13) MOREIRA, Baltazar de Godói Aventuras nos garimpos de Cuiabá. São Paulo, Ed. do Brasil, s.d. p. 96.

(14) FLEURY, Luiz Gonzaga de Camargo. O curumim do Araguaia. In: ___Histórias de índios. São Paulo, Ed. do Brasil, s.d. p. 57.

Conseqüentemente, se os bandeirantes ou garimpeiros invadem as tabas, é porque desejam salvar mulheres, crianças ou doentes.

Os índios somente são tolerados quando colaboram com os colonizadores. A condição para tanto é passar pelo filtro da catequese, o que lhes confere atestado de civilidade e, aos brancos, de humanitarismo e generosidade.

Apenas Jerônimo Monteiro foge a esse estereótipo. Em Corumi, o menino

selvagem (1956), o herói do título é um menino branco adotado pelos índios, com

os quais aprende a conhecer e a dominar a natureza. Monteiro promove outras mudanças: situa a ação em outra época o presente — e em outro cenário — a Amazônia — território desconhecido e misterioso. Nesse contexto, eclode o novo relato de aventura, que troca sítios amenos por regiões ignoradas da floresta virgem.

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