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4.3 — Revoluções na cultura brasileira

Com certeza seria melhor deslocar o deputado, o senador e o presidente. Como estes símbolos, porém, ainda resistissem, muito revolucionário se contentou mexendo com outros mais modestos. Não podendo suprimir a constituição, arremessou-se à gramática.

GRACILIANO RAMOS*

O interesse dos intelectuais na modernização da sociedade é reconhecível já nos primeiros anos da República. Para eles, saúde e educação apresentavam-se como metas importantes a serem alcançadas, a fim de remover os resíduos do atraso herdado das fases anteriores da história. Estas tinham tido seu centro econômico no campo, uma vez que a agricultura (cana-de-açúcar, algodão, cacau e, mais do que nunca, o café) e a pecuária eram os pilares que sustentavam as finanças do país. Porém, se era necessário modificar para melhor, cumpria atacar esses núcleos retrógrados, corporificados na visão dos tipos regionais e encarados agora por sua pior faceta.

Durante esse primeiro esforço de modernização, a vida rural passa por uma revisão ideológica, sendo condenada pelo que contém de retrocesso e dependência. O regionalismo, tendência literária que se intensifica no início do século XX, altera o tom romântico legado por Alencar e Taunay, adotando uma postura crítica e atacando o arcaísmo e a passividade que representava.

O esforço subseqüente de modernização não é herdeiro natural do período acima, nem se reconhece sucessor dele. Preferiu estabelecer conexões diretas com a França, o que não deixa de lhe conceder um certo parentesco com alguns intelectuais do entre-séculos, padecentes de “Parisina”, doença que, segundo os cronistas da época, assolava os homens de letras cariocas. Todavia, associa-se a seus precursores num ponto fundamental: almeja à modernização do Brasil e a sua equiparação

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às nações civilizadas. Só que. para os regionalistas, o processo transcorre na sociedade, com a colaboração de uma literatura de combate; para a nova geração, __________________

acontece no interior da obra de arte, para o que contribui a sociedade.

Por essa razão, os modernistas, que são também combativos, preocupam-se, durante os dez primeiros anos do movimento, em esclarecer seus princípios de criação, através de manifestos, conferências, exposições ou revistas, obtendo então as vitórias desejadas nos planos artístico e temático. A primeira dessas conquistas se dá no âmbito da linguagem: esta se faz experimental e renovadora, sem que a busca de originalidade impeça a aproximação ao coloquial. A atualização atinge os dois pontos visados: possibilita a equivalência com as inovadoras estéticas européias contemporâneas e a incorporação dos diferentes níveis de fala, característicos sobretudo dos grupos urbanos resultantes da nova composição social e econômica.

O tema dominante consiste no nacionalismo, presente desde as intenções geradoras do movimento, uma vez que este tinha em vista a equiparação artística do país com as experiências em voga em nações mais adiantadas. Mas a revelação desse fundo nativista acontece aos poucos e de modo desigual, provocando a fragmentação do grupo. Ainda assim, alguns pontos cm comum são identificáveis: a pesquisa do passado nacional na busca de fontes autênticas de brasilidade, não contaminadas (ou pouco contaminadas) pela influência européia; o recurso ao folclore, especialmente o de procedência indígena e africana, porque expressa a primitividade e a pureza intocada citada acima; a criação de tipos humanos que representem, de modo sintético, o homem brasileiro ou os traços mais peculiares da raça.

As duas metas, assim enunciadas, parecem contraditórias, quando efetivamente se complementam. Somente a valorização do nacional primitivo e não contaminado evitaria que o movimento fosse sugado e inteiramente absorvido pela matriz européia na qual os artistas se inspiravam.

Duas direções se mostram possíveis. De um lado, a observação da realidade contemporânea, que, inevitavelmente, teria de admitir os contrastes e a miséria, apesar dos anseios à modernização. Esta é a rota de Alcântara Machado e Mário de Andrade, modernistas da primeira hora e que realizam uma arte do presente ainda na década inicial do movimento, ou de Carlos Drummond de Andrade, fora de São Paulo, cidade-sede do Modernismo, e um pouco mais tarde.

De outro lado, a ênfase do nativismo, que se sustenta à custa da negação do presente. É notável que esta seja a vertente a que adere o novo governo, encampando as metas de segmentos intelectuais, num processo semelhante àquele pelo qual incorporara as reivindicações públicas de diferentes grupos da sociedade. Mas, para que pudesse ter a

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chancela do Estado, o nativismo teve de mudar de lugar A difusão do nacionalismo risonho e franco, verde-amarelo, deslocou-se para as manifestações ditas populares,

como o samba-exaltação (o de Ari Barroso, por exemplo), as emissões da “Hora do Brasil”, os programas patrióticos de massa, como as exibições coletivas de corais e ginástica, ou ainda os livros e folhetos educativos que circulavam principalmente nas escolas.

Mas não são as escolas regulares que exemplificam melhor o fenômeno, e sim as escolas de samba. O surgimento destas data do final dos anos 20, mas seu crescimento deu-se na década seguinte: a partir de 1935, o governo passa a subvencionar os concursos durante o Carnaval, com o que as escolas se converteram no canal de comunicação do Estado com as camadas pobres. Porém, como, a partir de 1937, um decreto de Vargas as obriga a darem um conteúdo didático (histórico e patriótico) aos sambas-enredo, parece transferir-se para estes veículos, acessíveis aos grupos populares, a tarefa de expressar as aspirações do Estado que os sustenta.

Para atingir os estratos médios da sociedade e alcançar a adesão deles, os meios são outros e de massa: o cinema (como os filmes históricos financiados pelo Ministério da Educação, dirigidos por Humberto Mauro e musicados por Vila- Lobos) e, principalmente, o rádio. Este é o instrumento mais importante de integração nacional, através da “Hora do Brasil”, de emissão obrigatória, e da Rádio Nacional que, encampada pelo governo em 1940, logo obteve os mais altos índices de audiência, através da contratação dos cantores e locutores mais populares do país.

A popularidade obtida por todos estes recursos parece escandalosa. Porém, respaldada no patriotismo, do qual retira sua substância, não colide com os objetivos dos programas que, originalmente, propuseram a tônica nacionalista. Pelo contrário, esta incorporação (ainda que em parte e da parte que interessa) sugere a identidade entre as metas do programa modernista, voltado para as artes, e o aproveitamento destas metas pelos ideólogos do regime de Vargas, visando à perpetuação deste no poder do Estado.

Esse fato possibilita a duração do movimento ao longo de todo o período dominado por Getúlio, uma vez que, contra ou a favor, era em tomo do patriotismo e do tema da imagem nacional que circulavam os intelectuais. Se a imagem nacional assimilou, em muitos casos, uma orientação ufanista, teve também um componente crítico, voltado à reflexão sobre o presente, o qual, quando tomado a sério, desautorizava muitos otimismos. Por essa razão, o posicionamento crítico foi efetivamente contestador quando se voltou à descrição da atualidade brasileira e denunciou os desmandos do poder, conforme procederam Graciliano Ramos e Dyonélio Machado. Entretanto, nem sempre foi assim: outros escritores se limitaram a apontar falhas em estruturas arcaicas e decadentes,

fazendo a crônica funerária de um sistema em fase de liquidação pelo regime em vigor. Era a contestação que convinha, porque legitimava a fachada de modernização que o Estado desejava fornecer ao Brasil.

A literatura infantil, como bom filho, não fugiu a esta luta. Aderiu aos ideais do período e expressou-os às vezes de modo literal, trazendo para a manifestação literária uma nitidez que ela raramente conhece nos textos não-infantis. Os livros para crianças foram profunda e sinceramente nacionalistas, a ponto de elaborarem uma história cheia de heróis e aventuras para o Brasil, seu principal protagonista. Da mesma maneira, eles se lançaram ao recolhimento do folclore e das tradições orais do povo, com interesse similar ao das escolas de samba, ao pesquisar os enredos para os desfiles. Porém, visando contar com o aval do público adulto, a literatura infantil foi preferencialmente educativa e bem comportada, podendo transitar com facilidade na sala de aula ou, fora dessa, substituí-la.

Estes três aspectos o nacionalismo, a exploração da tradição popular consolidada em lendas e histórias e a inclinação educativa juntos ou separados sufocaram em muito a imaginação. Contudo, não impediram que, quando liberada, ela tentasse construir um mundo de fantasia, possível plataforma de lançamento para uma crítica à sociedade ou ao ambiente real experimentado pelo leitor. Por isso, a criatividade desses momentos deu alento e continuidade ao gênero. Que ele foi mesmo promissor, atestam-no a fecundidade e o sucesso individual de Lobato, até hoje paradigma industrial e estético da literatura infantil brasileira. Atesta-o também a freqüência com que a maioria dos escritores da época, não diretamente associados à literatura infantil, produzem, com maior ou menor assiduidade, textos para jovens.

Os fatores até aqui analisados configuram o processo de modernização da sociedade brasileira, a que a literatura se integrou, quer através de projetos coletivos, como os que a Semana de Arte Moderna deflagrou, quer através de uma ação mais individual, como a do empresário e escritor Monteiro Lobato.

Modernistas, de um lado, dando-nos o conteúdo estético do período; Monteiro Lobato, de outro, impondo uma práxis que, se é voltada para as letras, é igualmente com os olhos nos lucros. Mas, com Lobato, estamos no campo da ficção infantil, gênero que, se consistiu no ponto de encontro dessas vertentes, converteu-se, como se verá em seguida, numa das imagens dos contrastes culturais que perpassam a nação.