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Em busca do interesse público perdido: As quatro dimensões de um instituto

3. Em busca do interesse público perdido

3.2 A natureza do “princípio” do interesse público

Embora geralmente a ele se refiram como princípio, importa investigar a sua real natureza. De acordo com Robert Alexy, assim como as regras, princípios são enunciados normativos: encadea- mento de palavras através do qual se proíbe, permite ou ordena um dado comportamento. Os critérios que buscam distinguir uma espécie da outra são abundantes em doutrina. Entre os mais recor-

rentes43, podem ser citados os seguintes:

a) Quanto ao conteúdo: Regras prescrevem comportamentos,

sem imediatamente indagar sobre os fins que as condutas descritas visam realizar. Por sua vez, princípios estabelecem objetivos a serem alcançados, sem necessariamente definir quais ações devem ser praticadas para a consecução desses

mesmos fins44.

43 Existem ainda outros, que se mencionam apenas para fins de registro, já que o objetivo deste trabalho não permite uma catalogação exaustiva das classificações. Quanto ao grau de importância, “princípios seriam as normas mais importantes de um ordenamento jurídico, enquanto as regras seriam aquelas normas que concretizariam esses princípios”. Quanto ao grau de abstração e generalidade, “princípios seriam mais abstratos e mais gerais que as regras.”. SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 44. Ainda segundo o autor, é útil pontuar que, desde que metodologicamente coerentes e não contraditórias, não há que se falar em classificações mais ou menos adequadas, mais ou menos modernas, melhores ou piores. Classificações são úteis ou inúteis, de acordo com a precisão do critério diferenciador escolhido. SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino-

Americana de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, v. 1, jan./jun. 2003, p. 607-630.

44 “Quanto ao conteúdo, destacam-se os princípios como normas que identificam valores a serem preservados ou fins a serem alcançados. Trazem em si, normalmente, um conteúdo axiológico ou uma decisão política. Isonomia, moralidade, eficiência são valores. Justiça social, desenvolvimento nacional, redução das desigualdades regionais são fins públicos. Já as regras limitam-se a traçar uma conduta. A questão relativa a valores ou a fins públicos não vem explicitada na norma porque já foi decidida pelo legislador, e não transferida ao intérprete. Daí ser possível afirmar-se que regras são descritivas de conduta, ao passo que princípios são valorativos ou finalísticos”. BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro.

Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v.6, n. 23, 2003, p. 35. Para um maior aprofundamento do

ponto, vide BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 170-177.

b) Quanto à estrutura/aplicação45: Ressalvado o seu núcleo essencial, que tem natureza de regra, e encerra, portanto, posições irredutíveis, a estrutura dos princípios permite que seu conteúdo seja satisfeito na maior medida do possível, considerando-se as circunstâncias fáticas e jurídicas existentes (comandos de otimização, que instituem direitos e obrigações

prima facie). Diferentemente, a estrutura monolítica das regras

impõe que seu comando seja realizado totalmente, desde que aplicáveis ao caso concreto (comandos de definição, que instituem direitos e obrigações definitivos). Em outras palavras, configurada a hipótese de incidência de uma regra, ou ela incide totalmente porque válida, ou não incide, também totalmente, porque inválida.

c) Quanto à forma de solução de antinomias: Conflitos

normativos entre regras são solucionados pelos critérios hermenêuticos tradicionais, entre eles o hierárquico, temporal, que são solucionáveis por ponderação. Devido à dimensão de peso própria dos princípios, é possível estabelecer entre eles

relações condicionadas de precedência46, isto é, a conclusão

de que, em determinado contexto fático, e sem declaração de invalidade de qualquer dos enunciados em tensão, um princípio tem precedência em relação ao outro.

À luz das distinções apresentadas, não é tranquilo inseri-lo na

categoria dos princípios47. Isso porque é inviável cogitar de uma so-

lução final que atenda mais ou menos ao interesse público. Ou a de- cisão atende ao interesse público ou não atende. Da mesma forma, não parece correto inseri-lo na categoria das regras, já que, uma vez participando do processo de ponderação, poderá não prevalecer no caso concreto. Ora, se não se trata de princípio nem regra, qual a sua natureza? Descartadas essas duas possibilidades, a categoria que mais bem se amolda ao interesse público é a de parâmetro de

45 Embora teoricamente distintos, por razões didáticas, optou-se por fundir os dois critérios, devido à sua íntima relação.

46 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 50.

47 Em sentido contrário: HACHEM, Daniel Wunder. Princípio constitucional da supremacia do

interesse público. 420 fls. Dissertação (Mestrado em Direito) – Setor de Ciências Jurídicas,

ponderação específico. Para elucidar o ponto, é necessário, antes, revisitar o roteiro do processo de ponderação.

Segundo Ana Paula de Barcellos, a ponderação consiste num processo de três etapas. Na primeira etapa, são identificados os enunciados normativos em tensão, e, em seguida, reunidos em gru- pos de acordo com as soluções que indicam. Na segunda, são iden- tificados os elementos juridicamente relevantes do caso concreto, capazes de atribuir maior ou menor peso a cada uma das soluções possíveis. Na terceira, depois de ponderados os elementos reunidos anteriormente, é tomada a decisão, orientada por parâmetros.

Parâmetros são preferências/presunções relativas que orien- tam a tomada de decisão, e podem ser gerais ou específicos. Ge- rais são os parâmetros aplicáveis a toda ponderação, indepen- dente dos enunciados em tensão. São exemplos de parâmetros gerais os que estipulam que: regras prevalecem sobre princípios; e que normas que mais diretamente promovam direitos funda- mentais devem ter preferência sobre aquelas que o façam apenas

indiretamente48.

Por sua vez, parâmetros específicos são aqueles que se apli- cam a uma determinada configuração de conflito normativo. Por exemplo, para o caso de conflito entre a liberdade de expressão

e direitos da personalidade, Luís Roberto Barroso49 propõe como

parâmetros específicos: a preferência por sanções a posteriori, que não envolvam a proibição prévia da divulgação da informa- ção; e a proteção preferencial da divulgação de informação sobre fato verdadeiro, obtida por meio lícito, ocorrido em local público e sobre o qual haja interesse público, seja por envolver personali- dade pública ou órgão do governo, seja pela natureza do próprio fato (por exemplo, acidentes e crimes em geral).

Por serem preferências apenas relativas, os parâmetros po- dem ser superados no caso concreto. Todavia, esse afastamento

48 BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 165-274.

49 BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional: v. 3. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 113-117.

gerará para o intérprete um ônus argumentativo muito maior. A título de exemplo, embora a preferência de regras sobre princípios seja um parâmetro geral, pode acontecer de, num determinado caso concreto, uma regra infraconstitucional ser frontalmente con-

trária a um princípio constitucional50. Nesse caso, a regra cederá

lugar ao princípio.

Portanto, é possível enunciar o parâmetro do interesse público como a preferência prima facie dos interesses públicos sobre os

não públicos51. A expressão “preferência prima facie” se insere no

contexto da teoria dos princípios de Robert Alexy, que admite a existência de relações de precedência condicionada entre princí- pios constitucionais. Como se trata de uma presunção meramente relativa, caso sejam alteradas as circunstâncias do caso concreto, a solução do processo de ponderação também poderá se alterar. Embora, a rigor, não se trate de um princípio em sentido estrito, a

lógica é a mesma. Nas palavras de Alexy52:

Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exem- plo, quando algo é proibido de acordo com um prin- cípio e, de acordo com o outro, permitido –, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contu- do, nem que o princípio cedente deva ser declara- do inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser re- solvida de forma oposta. Isso é o que se quer di- zer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios

50 Há consenso de que nenhuma norma constitucional é destituída de qualquer eficácia. Mesmo as normas programáticas servem, ao menos, para: impor deveres políticos; condicionar a atividade discricionária dos aplicadores; impedir comportamentos contrários a elas, podendo gerar pretensões de abstenção; revogar normas anteriores incompatíveis; e compor o bloco de constitucionalidade. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de

direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 67-71.

51 Em sentido contrário: SARMENTO, Daniel. Supremacia do interesse público? As colisões entre direitos fundamentais e interesses da coletividade. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (Coords.). Direito administrativo e seus novos

paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 97-143.

com o maior peso têm precedência. Conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto as colisões entre princípios – visto que só princípios válidos podem colidir – ocorrem, para além dessa dimensão, na dimensão do peso. [...]. Essa relação de tensão não pode ser solucionada com base em uma precedência absoluta de um desses deveres, ou seja, nenhum desses deveres goza, “por si só, de prioridade”. [...] O objetivo desse sopesamento é definir qual dos interesses – que abstratamente estão no mesmo nível – tem maior peso no caso concreto [...]. A solução para essa colisão consiste no estabelecimento de uma relação de precedên- cia condicionada entre os princípios, com base nas circunstâncias do caso concreto. Levando-se em consideração o caso concreto, o estabelecimento de relações de precedências condicionadas consis- te na fixação de condições sob as quais um princí- pio tem precedência em face do outro. Sob outras condições, é possível que a questão da precedência seja resolvida de forma contrária.

A teoria dos princípios se insere num contexto jusfilosófico maior, fruto das injunções do segundo pós-guerra, que alguns au-

tores denominam de neoconstitucionalismo53, constitucionalismo

53 Para uma crítica contundente ao neoconstitucionalismo como um todo, vide: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Notas sobre o direito constitucional pós-moderno, em particular sobre certo neoconstitucionalismo à brasileira. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 250, jan./abr. 2009, p. 151-167; FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio Luiz; TRINDADE, André Karam (Org.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. Criticando mais diretamente a técnica da ponderação: ABBOUD, Georges; ROSSI, Júlio César. Riscos da ponderação à brasileira. In: Revista de processo, São Paulo, v. 269, jun. 2017, p. 109-138; CAMPOS, Ricardo (Org.); MACEDO JUNIOR, Ronaldo Porto; LOPES, José Reinaldo de Lima (Coords.). Crítica da ponderação: método constitucional entre a dogmática jurídica e a teoria social. São Paulo: Saraiva, 2016; CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. A teoria da ponderação de princípios na encruzilhada do decisionismo judicial: limita-me ou te devoro! Sequência, Florianópolis, v. 38, n. 75, 2017, p. 219-241. Em sua tese de doutorado, Fausto Santos de Morais conclui que, das cento e oitenta e nove decisões do Supremo Tribunal Federal analisadas, nas quais o tribunal teria empregado instrumentos da teoria dos princípios, em nenhuma delas o modelo original de Alexy foi obedecido. “O que se pode ver, entretanto, é a incorporação no discurso do STF de fragmentos da teoria de Robert Alexy, principalmente no que diz respeito à aplicação das submáximas da adequação e necessidade ou sopesamento. Apesar disso, não foi possível constatar a preocupação nas decisões com a proposta de legitimar argumentativamente a aplicação das submáximas da proporcionalidade. Portanto, o que se vê no STF é apenas um simulacro da teoria de Robert Alexy”. MORAIS, Fausto Santos de. Hermenêutica e pretensão de correção: uma revisão crítica da aplicação do princípio da proporcionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. 346 fls. Tese (Doutorado

democrático, entre outros títulos. Sem pretensão de exaustivida- de, as principais características dessa fase do pensamento jurí- dico podem ser assim sintetizadas: reaproximação entre direito e moral; reconhecimento da força normativa da Constituição, da existência e da normatividade dos princípios, e da existência de colisões entre direitos fundamentais, solucionáveis pela ponde- ração; reabilitação da razão prática (fundamentação racional de princípios de moralidade e justiça), e da argumentação jurídica; desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edifi- cada sobre a dignidade da pessoa humana; e expansão da juris-

dição constitucional54.

Exposta a natureza do parâmetro do interesse público, resta agora analisar o seu conteúdo.