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regulatório brasileiro: O desenho institucional das Agências Reguladoras

2. A reforma gerencial e o Estado regulador

O histórico de reformas na administração pública revela que os fatores que justificam a implantação de um novo modelo de administrativo estão, no mais das vezes, fundamentados nas defi- ciências e nos problemas apresentados pelo modelo anterior e não nas características e na possibilidade de quebra de paradigmas do modelo que se propõe.

A Administração Pública Burocrática, modelo administrativo que precedeu a administração gerencial, baseada nos princípios administrativos do exército prussiano, surgiu na segunda metade do século XIX, durante o Estado Liberal, como forma de combater a corrupção e o nepotismo típicos da Administração patrimonia-

lista2. A administração burocrática se pautou na profissionalização,

2 Na administração Pública Patrimonialista, o aparelho do Estado funciona como uma extensão do poder do soberano, e os seus auxiliares, servidores, possuem status de nobreza real. Os cargos são considerados prebendas. A res publica não é diferenciada das res principis. BRASIL. Plano diretor da reforma do aparelho do Estado. Brasília: Presidência da República, Câmara da Reforma do Estado, 1995. p. 15.

na ideia de carreira, na hierarquia funcional, na impessoalidade e no formalismo. A concepção do modelo burocrático parte de uma desconfiança prévia nos administradores públicos e nos cidadãos que a eles dirigem demandas.

O modelo de administração pública burocrática clássica foi recepcionado com entusiasmo porque representava uma alterna- tiva muito superior à administração patrimonialista do Estado. No entanto, à medida que o pequeno Estado liberal do século XIX foi sendo substituído pelo grande Estado social-democrático do século XX, assumindo um número crescente de serviços sociais – educação, saúde, cultura, previdência e assistência social, pes- quisa cientifica – e de papéis econômicos – regulação do sistema econômico interno e das relações econômicos internacionais, es- tabilidade da moeda e do sistema financeiro, provisão de serviços públicos e de infraestrutura – a administração burocrática não ga- rantiu que fossem prestados ao público serviços de boa qualidade

ou de baixo custo3. O problema da eficiência tornou-se, portanto,

essencial. A administração pública burocrática, no dizer de Bresser Pereira, mostrou-se lenta, dispendiosa, autocentrada, autoritária e

não preocupada em atender às demandas dos cidadãos4.

Neste contexto, desde o início dos anos 1980, vê-se crescer em todo o mundo uma onda global de reforma do setor público. Praticamente todos os governos começaram a ser pressionados a reduzir o tamanho do Estado, de modo a modernizar e agilizar a

administração pública5.

No Brasil, a implantação de um modelo de administração ge- rencial no Brasil em substituição ao modelo burocrático, seguindo a experiência já adotada por outros países, surgiu como consequên- cia administrativa da tentativa de consolidação e legitimação do Es- tado Social insculpido na Constituição Federal de 1988. Enquanto,

3 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Da administração pública burocrática à gerencial. In: PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; SPINK, Peter Kevin (Coord.). Reforma do estado e administração pública

gerencial. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 241.

4 . Construindo o Estado republicano: democracia e reforma da gestão pública. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. p. 208.

5 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Gestão do setor público: estratégia e estrutura para um novo Estado. In: PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; SPINK, Peter Kevin. (Coord.). Reforma do estado...

por um lado, se iniciou um esvaziamento das funções do Estado empresário através de um processo de privatizações de empresas estatais, por outro lado, constituiu-se um novo aparato regulatório formado pelas agências de regulação, numa tentativa de se alcan-

çar maior eficiência na prestação dos serviços públicos6.

A partir do início da década de 1980, a ação direta do Estado na atividade econômica e social atinge o ápice de sua ascensão no Brasil, o que enseja uma estrutura gigantesca. A título exemplifica- tivo, Caio Tácito expõe que, enquanto até o ano de 1930 os órgãos paraestatais não iam além de 17, este número elevou-se a 70 na

década de 1950, saltando para 582 na década de 19807.

Desse modo, o Estado brasileiro chegou ao fim do século XX grande, ineficiente, com bolsões endêmicos de corrupção e sem

conseguir vencer a luta contra a pobreza8. Não obstante, a cons-

tatação de que o Estado não tem recursos suficientes para todos os investimentos necessários e que, além disso, é geralmente um mau administrador, conduziu ao caminho para Reforma de Estado

implementada a partir da década de 19909. Assim, o tema da refor-

ma da administração pública foi novamente retomado no primei- ro mandato do Governo Fernando Henrique Cardoso (1994-1998),

embora não constasse dos temas da campanha eleitoral de 199410.

6 No Brasil, a importância do Direito da regulação foi maior que em outros países, pois, sendo de criação recente, também evoluiu em pouco tempo, acompanhando o desenvolvimento das privatizações, que lhe deram um grande impulso. WALD, Arnoldo. O direito da regulação, os contatos de longo prazo e o equilíbrio econômico-financeiro. In: Revista dos Tribunais, ano 96, v. 866, São Paulo: Revista dos Tribunais, dez./2006, p. 15.

7 Esta intervenção incisiva do Estado na economia visava, entre outros fatores, o desenvolvimento econômico e a ocupação de setores em que se revelava ineficaz ou ausente a iniciativa privada, a par do monopólio estatal nos setores de petróleo e de telecomunicações. TÁCITO, Caio. O retorno do pêndulo: serviço público e empresa privada. O exemplo brasileiro.

Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 242, out./dez., 2005, p. 113.

8 BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras: Constituição, transformações do Estado e legitimidade democrática. Revista de Direito Administrativo, n. 229, jul., 2002, p. 286- 288. Carlos Eduardo Vieira de Carvalho lembra que, com a multiplicação de atribuições assumidas pelo Poder Público durante o Estado de Bem-Estar Social, seguiu-se um quadro de dificuldades financeiras e déficits orçamentários que reduziram sensivelmente a capacidade de o Estado executar os encargos que assumira. Os serviços públicos se revelaram deficientes. Descapitalizadas, as empresas estatais não absorveram, em tempo hábil, as novas tecnologias. CARVALHO, Carlos Eduardo Vieira de. Regulação de serviços públicos: na perspectiva da constituição econômica brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 22.

9 BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras: Constituição, transformações do Estado e legitimidade democrática. Revista de Direito Administrativo... Op. cit., p. 293.

10 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Gestão do setor público: estratégia e estrutura para um novo Estado. In: PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; SPINK, Peter Kevin. (Coord.). Reforma do estado...

Ainda que não se possa falar da existência de uma unanimida- de sobre o diagnóstico do cenário brasileiro pré-Estado Regula- dor, menos ainda sobre as estratégias que deveriam ser adotadas, o modelo de reforma que prevaleceu foi o que postulava que o Estado deveria reduzir o seu tamanho, se tornar mais ágil, flexível, eficiente, e, principalmente, “mais responsável diante da socieda-

de”11. No entanto, à semelhança do que ocorreu em outros países,

não havia neste momento no cenário político brasileiro uma vi- são unânime sobre como a reforma deveria ocorrer. Isso porque, dentre outras razões, também estava em curso no país “um novo paradigma reformista: o estado-novíssimo-movimento-social, que rearticula o Estado e a sociedade, combinando a democracia re-

presentativa e a participativa12.

O paradigma de reforma gerencial brasileiro foi importado do sistema do common law, do qual se tentou copiar a existência de agências e do qual se extraiu uma série de neologismos inspirados na Ciência Política, como, por exemplo, governance (governança)

e accountability13. Neste contexto, o Plano Diretor da Reforma do

Aparelho do Estado é claro ao propor uma ruptura com o modelo de Estado até então operante, quando consigna que a reforma do

Estado14 deve ser entendida “dentro do contexto da redefinição

do papel do Estado, que deixa de ser o responsável direto pelo desenvolvimento econômico e social pela via da produção de bens e serviços, para fortalecer-se na função de promotor e regulador

desse desenvolvimento”15.

11 FLEURY, Sonia. Reforma del Estado. RAP – Revista de Administração Pública, 35, set./out. 2001, p. 12.

12 PAULA, Ana Paula Paes de. Administração Pública Brasileira. Entre o Gerencialismo e a Gestão Social. RAE – Revista de Administração de Empresas, v. 45, n. 1, 2005, p. 39.

13 O termo accountability sequer foi traduzido, mas é geralmente utilizado para designar o dever de os agentes públicos prestarem contas dos resultados obtidos, em função da posição e do poder retidos. No vocabulário da nova gestão, o objetivo era mudar o modelo burocrático, centrado nas regras (rule-based accountability), para uma noção de gestão pelo desempenho/resultado (performance-based accountability). NOHARA, Irene Patrícia.

Reforma administrativa e burocracia: impacto da eficiência na configuração do direito

administrativo brasileiro. São Paulo: Atlas, 2012. p. 80-97.

14 A redação dada ao Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado estabeleceu uma distinção entre reforma do Estado e Reforma do Aparelho do Estado. Segundo o documento, a reforma do Estado diz respeito “às várias áreas do governo e, ainda, ao conjunto da sociedade brasileira, enquanto que a reforma do aparelho do Estado tem um escopo mais restrito: está orientada para tornar a administração pública mais eficiente e mais voltada para a cidadania”. BRASIL. Plano diretor da reforma... Op. cit., p. 11-12.

O plano questionou a atuação direta do Estado no domínio econômico, considerando que seria necessário que fossem transfe- ridas para o setor privado atividades que pudessem ser controladas

pelo mercado, dando ênfase aos processos de privatização16. Daí a

crítica de Emerson Gabardo, quando aduz que infelizmente, o Pla- no de Reforma Gerencial tem influência direta dos aspectos mais marcantes da mentalidade pragmatista, cuja prática confere muito mais ênfase à privatização do que à “boa conduta pública”. Aliás, a teoria do social-liberalismo de Bresser Pereira tem assumidamente esta feição, na medida em que o próprio autor propõe equivalência

entre as denominações “pragmática” e “social liberal”17.

Irene Patrícia Nohara aponta que o principal argumento de jus- tificação da Reforma Gerencial é a crítica ao modelo burocrático de administração. Neste sentido, o discurso oficial da Reforma Admi- nistrativa foi construído mediante a contraposição entre uma admi- nistração burocrática “rígida e ineficiente, voltada para si própria e para o controle interno” e um modelo gerencial, no qual se promete uma nova organização “flexível e eficiente, voltada para o atendi-

mento do cidadão”18. Para garantir a maior adesão ao novo modelo,

o discurso reformista teve de se focar na deslegitimação do antigo,

isto é, no ataque ao modelo burocrático19. Conforme aponta Nohara,

um modelo em que o estado fosse mais eficiente e, sobretudo, vol- tado para o atendimento do cidadão-administrado seria facilmen- te aceito pela sociedade, mas os silêncios que são manipulados no discurso gerencial residem justamente na resposta a como, exata- mente, isso pode ser possível, ou a que custo o modelo gerencial

promove os objetivos anunciados20. É possível, pois, concluir que,

apesar da preocupação com o desempenho do Estado, que deveria se orientar para uma maior eficiência, percebe-se que o modelo ge- rencial não foi claramente exposto. Além do mais, Nohara ressalta o fato de que as práticas gerenciais da administração privada são

16 NOHARA, Irene Patrícia. Reforma administrativa... Op. cit., p. 79.

17 GABARDO, Emerson. Princípio constitucional da eficiência administrativa. São Paulo: Dialética, 2002. p. 55.

18 NOHARA, Irene Patrícia. Reforma administrativa... Op. cit., p. 91.

19 De acordo com Nohara, o esforço de deslegitimar o modelo burocrático pode ser identificado já na escolha da denominação do plano reformista: Plano diretor da reforma do aparelho do estado, o que não pode ser ignorado quando de sua análise. NOHARA, Irene Patrícia. Reforma

administrativa... Op. cit., p. 91-92.

tão variadas, que o plano deveria ter sido mais claro sobre o qual tipo de gestão teria por paradigmática. Ao revés, o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado indica-se apenas, de forma difusa, que se quer flexibilizar a Administração, para dar maior ênfase à

criatividade e à inovação do que ao controle de procedimento21.

O posicionamento de Irene Nohara é plausível. Tratando-se da discussão da reforma do modelo administrativo, é essencial que haja uma contraposição entre o modelo proposto e o modelo que se co- gita substituir ou reformar. No entanto, as deficiências do modelo a ser alterado, embora sejam a justificativa da reforma, não podem, por si só, servir de fundamento para a adoção de qualquer modelo de atuação estatal, como ocorreu no discurso que legitimou a reforma gerencial. Embora, em geral, as críticas ao ambiente burocrático se-

jam fundadas,22 o novel modelo deve se mostrar adequado à realida-

de social na qual será implantado, coerente com as políticas públicas adotadas pelo Estado e apresentar um alto grau de eficiência.

Assim, ao propor a descentralização administrativa, a concessão de serviços à iniciativa privada e a regulação, o processo de reformas gerenciais das décadas de 1990 fez romper os limites estabelecidos originalmente entre o público e o privado, tornando-se comum a pro-

moção de alternativas jurídicas até então inexistentes23.