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2.1. AS RESPONSABILIDADES SOCIAIS DAS EMPRESAS

2.1.1. Empresa e Sociedade

2.1.1.3. A Necessidade da RSE

Apesar das visões mais críticas, parece consensual que o modelo capitalista atravessa na atualidade um período de significativa mudança estrutural. Como descreve Srour, o “sistema capitalista dos últimos dois séculos moveu-se a partir de uma lógica de exclusão” (SROUR, 1998: p. 45), que privilegia a hierarquia e a autoridade política, onde prevalece uma matriz de pensamento autoritária e a maximização dos lucros para os acionistas assume a prioridade da ação empresarial, impondo uma lógica de sobrevivência dos mais aptos e distinguindo claramente as posições sociais diferenciadas dos chefes e dos subordinados. Durante a segunda metade do século XX esta forma de capitalismo excludente foi progressivamente cedendo o lugar a um novo sistema sócio-econômico, de dupla entrada, onde “as empresas capitalistas deixam de fixar-se apenas na função econômica (…) e

passam a orientar-se, de modo indissociável, pela função ética da responsabilidade social”

(SROUR, 1998: p. 47). Assim, emerge um capitalismo social orientado para a satisfação dos diversos grupos de interesse associados à atividade de cada empresa – os stakeholders – que acrescenta à função lucrativa que beneficia diretamente os acionistas-proprietários, a função

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Esta posição parece aproximar-se da ética aristotélica segundo a qual a caridade virtuosa é aquela que se realiza com referência a um ponto de equilíbrio entre a avareza (que retém todas as riquezas) e a prodigalidade (que através do esbanjamento se arruína a si próprio), considerando, em cada caso, a natureza e a extensão dos próprios recursos. A virtude moral da filantropia realizada por uma empresa deve portanto medir-se pela diferença entre o que ela dá e os recursos que possui, considerando sempre as condições da sua sustentabilidade (este assunto é discutido com maior detalhe na seção 2.3.5.).

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social da empresa traduzida pela forma como esta se relaciona com os trabalhadores, os clientes, os fornecedores, os parceiros, as instituições, o Estado, a comunidade envolvente e a própria Natureza.

Com democracias representativas consolidadas e cidadãos mais esclarecidos, as preocupações éticas das populações transferem-se para o contexto das empresas que já não as podem ignorar, sob pena de perderem a sua confiança e de comprometerem a própria sobrevivência. Thiry-Cherques (2003) identifica as próprias empresas como geradoras dos desequilíbrios sociais que provocaram o atual movimento de contestação que reivindica maiores exigência do setor empresarial, alertando para a urgência de redefinir a sua identidade. Segundo o autor,

“as empresas estão sendo chamadas à responsabilidade porque, havendo se equivocado sistematicamente sobre o futuro da economia e da sociedade, vêem-se na contingência de reavaliar o peso dos efeitos das suas atividades e corrigir a sua conduta. Elas estão sendo responsabilizadas pela indiferença, pelo equívoco e pela imprudência que nos trouxeram à situação de risco físico e espiritual em que nos encontramos. (…) Dentre as atitudes possíveis para enfrentar esse desafio, a mais sábia parece ser a de sacudir a letargia e tentar dar conta do que está evidentemente errado. Trata-se de buscar uma nova identidade para as empresas” (THIRY-CHERQUES, 2003: p. 32).

Esta linha argumentativa parece convergente com a análise do novo espírito do

capitalismo defendida por Boltanski e Chiapello (1999), segundo a qual o modelo capitalista

tende a perpetuar-se por meio de um movimento contínuo de estímulo e de rejeição do processo de acumulação ilimitada que caracteriza as suas fundações. Segundo os autores, o

espírito do capitalismo deve conter uma dimensão moral que ofereça uma justificativa às

pessoas para aderirem voluntariamente ao modo de vida capitalista, perpetuando, desta forma, o capitalismo por meio da sua revisão crítica e transformação permanente (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 1999). O debate sobre a RSE parece coincidir com esta crítica que encontra uma nova justificativa moral, baseada no argumento do bem comum, que promove um deslocamento do capitalismo para uma nova configuração que o defende da erosão e lhe assegura larga adesão social (VENTURA, 2005). Este processo evolutivo do modelo capitalista parece ajustar-se também à análise de Srour (1998) sobre a emergência de um novo capitalismo social.

A aceitação de que as empresas devem integrar nas suas políticas preocupações de natureza social, não resolve, no entanto, a dificuldade de seleção dos projetos que devem apoiar ou desenvolver. Alguns autores sustentam, prudentemente, que o Estado deve permanecer como agente prioritário que garante o bem-estar social de todos os membros da sociedade, assegurando a igualdade de tratamento e de direitos. Como ilustração desta idéia, Cheibub e Locke (2002) distinguem os modelos políticos de welfare capitalism e social- democrata, destacando os perigos que o primeiro pode representar para o equilíbrio social. Num sistema de welfare capitalism as empresas assumem responsabilidade pelo bem-estar geral dos seus empregados, acrescentando poder social ao poder econômico que originalmente as caracteriza. Assim, arriscam-se os efeitos socialmente nocivos de diminuir o poder e a autonomia de outros agentes sociais, contribuindo para o esvaziamento do poder público que, representando o Estado, é o único que permite o equilíbrio dos direitos e a manutenção das garantias de cidadania (CHEIBUB & LOCKE, 2002). Para evitar os riscos decorrentes da demissão progressiva do Estado como agente de bem-estar social, os autores defendem o interesse econômico como a finalidade que deve presidir às decisões empresariais sobre RSE, não reconhecendo justificativos de base moral ou política para essas práticas. Sugerem ainda que o Estado deve manter sempre a sua liberdade de ação e de decisão em relação às áreas de intervenção social, devendo as empresas contribuir com práticas solidárias em articulação com o Estado (CHEIBUB & LOCKE, 2002). Com argumentação distinta, outros autores apresentam recomendações idênticas. Para Porter e Kramer (2002), as empresas podem beneficiar significativamente com o melhoramento das condições do ambiente envolvente, obtendo um retorno que reforça a sua competitividade. Desta forma, as empresas deverão desenvolver políticas de RSE, na medida em que estas respondam aos objetivos de crescimento do negócio, traduzidos necessariamente em prosperidade econômica (PORTER & KRAMER, 2002).

A discussão sobre as responsabilidades sociais das empresas é freqüentemente viciada pelo argumento simplificador que opõe o lucro à preocupação das empresas com questões sociais que se situem além do seu fim produtivo. Embora seja possível encontrar evidências em contrário, vários estudos têm confirmado que o crescimento econômico não é incompatível com práticas empresariais de impacto social positivo que excedam as obrigações legais, revelando relações estatísticas positivas entre o desempenho social e os resultados financeiros das empresas (SIMPSON & KOHERS, 2002; MOORE, 2001; ROMAN et al., 1999; VERSCHOOR, 1998). Estes impactos financeiros positivos das ações socialmente

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responsáveis podem ser explicados pelos benefícios decorrentes da imagem favorável que estas empresas conquistam junto dos consumidores (MAIGNAN et al., 1999) e dos profissionais qualificados (ALBINGER & FREEMAN, 2000; GREENING & TURBAN, 2000), permitindo fidelizar clientes de forma mais sustentada e atrair mão-de-obra mais qualificada. Estas evidências acrescentam novas dimensões à discussão, uma vez que sugerem a possibilidade de convívio e de mútuo reforço entre resultados econômicos e práticas empresariais socialmente responsáveis18. O centro do debate desloca-se do diálogo entre as posições extremas que discutem sobre quem a atividade empresarial deve beneficiar para uma busca de resposta à questão nuclear sobre como a atividade empresarial pode beneficiar todos, compatibilizando o cumprimento simultâneo das múltiplas responsabilidades sociais que a caracterizam. Por estes motivos, a RSE tem consolidado a sua posição como um tema central na administração de empresas, merecendo a atenção crescente de empresários, administradores e acadêmicos.

Em síntese, as transformações políticas, sociais e tecnológicas sem precedentes das últimas décadas parecem ter acelerado o debate em torno das responsabilidades empresariais e do papel que cabe ao Estado neste novo quadro de atribuições. Apesar da natural divergência de opiniões, parece crescer a aceitação de que existem responsabilidades partilhadas entre as empresas e o Estado relativamente à necessidade de um desenvolvimento social sustentável. Neste contexto, a responsabilidade social das empresas implica a integração de preocupações éticas na definição das suas políticas e estratégias, respondendo simultaneamente às legítimas expectativas dos acionistas e de todos aqueles que poderão sofrer o impacto das suas ações. Tratando-se de uma reflexão que envolve um julgamento subjetivo sobre o conceito de empresa, sobre o papel do Estado e sobre quais devem ser os beneficiários da ação empresarial, a definição, por parte de cada empresa, dos limites e das fronteiras da RSE implica inevitavelmente uma avaliação ética das opções. Este julgamento ético, consciente ou inconsciente, tem uma influência decisiva na forma como cada empresa encara as suas responsabilidades e compromissos perante a sociedade.

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Bakker, Groenewegen e Hond (2005) alertam que os principais estudos dedicados à análise da relação entre o desempenho social e o desempenho financeiro das empresas são essencialmente descritivos – reexaminam resultados anteriores, comparam medidas e empresas localizadas em diferentes regiões –, sendo portanto repetitivos e não contribuindo para o avanço da teoria. Segundo os autores, estes estudos destinam-se fundamentalmente a legitimar o campo e a relevância prática do tema (BAKKER et al., 2005). Por isto, esta abordagem tem como principal utilidade teórica negar as premissas da corrente que opõe o lucro ao desempenho social responsável.