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2.1. AS RESPONSABILIDADES SOCIAIS DAS EMPRESAS

2.1.3. Concepções de Responsabilidade Social das Empresas (RSE)

2.1.3.1. Evolução histórica

Tratando-se de um tema com implicações profundas nos modelos de organização econômica, social e política das sociedades contemporâneas, que inevitavelmente conduz ao questionamento do sistema capitalista, dos seus fundamentos e dos seus efeitos, a Responsabilidade Social das Empresas (RSE) tem-se revelado um campo teórico especialmente fértil em polêmica e controvérsia, gerando oposições ideológicas e inspirando múltiplos ângulos de análise dos papéis das empresas e do Estado na sociedade. Por isto, apesar de muito discutida durante as últimas décadas, uma das principais dificuldades que o estudo da RSE encerra resulta da diversidade de concepções e de interpretações defendidas pelos autores que em todo o mundo pesquisam o assunto (BAKKER et al., 2005). A inexistência de consenso reflete, por um lado, a juventude e a complexidade do tema, comprometendo, no entanto, por outro, a validade da comparação entre argumentos, entre aplicações metodológicas e entre resultados alcançados em pesquisas realizadas por diferentes autores. O estudo da RSE exige, portanto, que cada autor esclareça o seu posicionamento sobre o conceito e a forma como interpreta o seu significado. Para fazê-lo, torna-se indispensável compreender o enquadramento histórico da discussão sobre RSE e conhecer as diversas concepções que caracterizaram a evolução do conceito até à atualidade.

Os questionamentos éticos da atividade empresarial que deram impulso original ao debate sobre a RSE tiveram início nos E.U.A. durante a primeira metade do século XX, motivados pelos conflitos emergentes que opunham as empresas de grande dimensão e alguns setores da sociedade civil. Embora possa ser explicado também por outros fatores de ordem histórica e cultural, a importância central dos E.U.A. no desenvolvimento do campo teórico da RSE deve-se, essencialmente, à sua posição dominante enquanto país onde o capitalismo forjou os seus alicerces e a partir de onde ele se impôs ao mundo como modelo sócio- econômico hegemônico (KREITLON, 2004). Ali, à medida que as empresas privadas cresciam em dimensão e influência, aumentava igualmente a exigência das reivindicações da sociedade por melhores condições de trabalho, remunerações mais elevadas e relações

laborais mais transparentes23. O incomparável poder alcançado por algumas corporações monopolistas contribuiu para transformar gradualmente o papel da empresa privada na sociedade, conferindo-lhe um protagonismo decisivo no êxito do ambicionado desenvolvimento econômico e social. Com esse poder, emergiram os conflitos de classes.

É precisamente no âmbito destes conflitos que se desenvolveram as primeiras críticas à atividade de algumas empresas organizadas em monopólio e se começou a questionar a ética de alguns negócios e de alguns comportamentos gerenciais. A apreciação crítica da ação empresarial que na primeira metade do século XX reivindicava a filantropia das grandes empresas e combatia a alegada injustiça social gerada pelo processo de acumulação aparentemente ilimitada que o capitalismo permitia, daria mais tarde lugar ao desenvolvimento do campo de discussão sistemática sobre ética empresarial e sobre as responsabilidades sociais que vinculam as empresas à sociedade. Portanto, na origem e subjacente ao debate sobre a RSE, está uma crítica à empresa, ao seu papel e à sua intervenção como agente social relevante. Esta crítica tem alimentado o desenvolvimento do campo desde o início, permitindo a renovação de idéias e o aprofundamento da discussão em torno da RSE. No Quadro 5 são apontadas algumas das circunstâncias sociais, políticas e econômicas que estimularam a crítica social à empresa durante o século XX, marcando desta forma também a evolução do conceito de RSE.

De 1900 a 1960 - Desilusão perante promessas do liberalismo, amplificada pela crise da Bolsa de Nova Iorque em 1929 e as conseqüências sociais e econômicas da Grande Depressão.

- Lucros extraordinários de alguns monopólios norte-americanos.

- Desenvolvimento das ciências da gestão e profissionalização da função gerencial.

CONCEITO DE RSE: A empresa socialmente responsável é aquela que realiza filantropia – concretizada em donativos financeiros e apoio a causas sociais – e que tem um bom sistema de governança corporativa.

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Carroll (1991) refere que só na década de setenta do século XX a discussão pública sobre a RSE se ampliou nos E.U.A., motivada pela significativa produção de legislação social e a criação de organismos como o Environmental Protection

Agency (EPA), a Equal Employment Opportunity Commission (EEOC), o Occupational Safety and Health Administration

(OSHA) e a Consumer Product Safety Commission (CPSC).

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De 1960 a 1980 - Diminuição do crescimento da economia e elevadas taxas de desemprego.

- Reivindicações crescentes da sociedade civil junto de monopólios de grande dimensão. - Discussão pública sobre a finalidade, os limites e as responsabilidades da ação

empresarial (estimulada pelo artigo de Milton Friedman publicado no New York Times

Magazine em 197024, como reação às iniciativas assistencialistas da General Motors).

CONCEITO DE RSE: A empresa ascende à condição de “agente moral”, evoluindo a responsabilização estritamente individual de quem toma decisões para uma responsabilização da empresa, no plano organizacional, como entidade moral sujeita a apreciação e condenação.

De 1980 até à atualidade

- Difusão de políticas neoliberais, tais como a redução de despesas sociais do Estado, as privatizações, a desregulamentação, a abertura de fronteiras comerciais e a flexibilização de relações laborais.

- Aumento do desemprego decorrente do desenvolvimento de novas tecnologias que facilitam a automação industrial e provocam a rápida desatualização de competências. - Capitalismo industrial dá lugar ao capitalismo financeiro, com a concentração do capital

em grandes investidores institucionais, cujas preocupações se limitam à rentabilidade dos seus investimentos, passando o desempenho empresarial a ser avaliado com recurso prioritário a indicadores de natureza financeira.

CONCEITO DE RSE: O conceito de “desenvolvimento sustentável” passa a integrar o discurso sobre RSE e a teoria dos stakeholders alarga o quadro de responsabilidades da empresa a todos os grupos que afetam ou são afetados pela ação empresarial.

Tal como descrito no Quadro 5, a concepção de RSE evoluiu juntamente com a mudança das circunstâncias sociais, políticas e econômicas que marcaram o século XX25. Começando por se identificar apenas com o donativo filantrópico ou as práticas de boa governança corporativa, a RSE assumiu um papel legitimador da ação empresarial, elevando posteriormente a empresa à categoria de “agente moral”, sujeito a apreciação ética, dotado de direitos e obrigações, passível de culpa e de responsabilização. Recentemente, foram acrescentados ao discurso sobre RSE, os conceitos de desenvolvimento sustentável – como

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FRIEDMAN, M. The Social Responsibility of Business Is to Increase Its Profits. New York Times Magazine, 13/09/1970.

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Essa interdependência é especialmente visível no início da segunda metade do século XX, após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando, como referem Bittencourt e Carrieri (2005), “a derrocada da filosofia do liberalismo deu origem a um

vácuo filosófico (…), o que implicou a ruptura com a teoria social que estabelecia a harmonia entre os interesses privados e os interesses da sociedade como um todo” (p. 13).

Quadro 5. Origens da Crítica Social à Empresa (baseado em Kreitlon, 2004)

reflexo de preocupações com o impacto ambiental da atividade empresarial – e de

stakeholders – como indicador da multiplicidade de grupos cujos interesses se cruzam com os

da empresa. Com o aparecimento destas novas exigências, o quadro de responsabilidades das empresas alargou-se, sem, no entanto, estabilizar numa teoria consensual. Atualmente, são comuns definições de RSE que incluam as idéias de filantropia, governança corporativa, ética, desenvolvimento sustentável e orientação para os stakeholders. Na Figura 3 são situados cronologicamente alguns destes conceitos e idéias que permeiam a literatura e o discurso sobre RSE.

Tal como referido, o campo da RSE tem evoluído com a contribuição dispersa de múltiplas noções, nem sempre articuladas de forma clara entre si, que freqüentemente acrescentam mais confusão ao debate do que esclarecem as suas fronteiras e os seus propósitos. Numa extensa revisão da literatura sobre RSE publicada durante um período de trinta anos (de 1972 a 2002), Bakker, Groenewegen e Hond (2005) identificam um aumento considerável do volume de publicações a partir de 1990, com o conseqüente agravamento da sobreposição de conceitos, refletindo o interesse crescente dos pesquisadores pela temática. Os autores descobriram também, com surpresa, que a maioria dos artigos revela uma orientação epistemológica teórica (48,7%) e descritiva (37%), sendo uma minoria os

Ética nos Negócios / Filantropia Empresarial Responsabilidade Social dos Empresários e Gestores

Responsabilidade Social das Empresas (RSE) Resposta Social das Empresas

Orientação para os

Stakeholders

Desempenho Social das Empresas (DSE) Desenvolvimento

Sustentável

Cidadania Empresarial

1950 1955 1960 1965 1970 1975 1980 1985 1990 1995 2002

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trabalhos com orientação prescritiva (14,3%), ao contrário do que parece ser a crença geral em relação ao campo26. Segundo os autores, a evolução do campo da RSE é marcada por uma tendência para se desenvolver hipóteses baseadas em trabalhos anteriores e testar teorias, introduzindo simultaneamente novos construtos no discurso acadêmico e profissional (BAKKER et al., 2005). Assim, a fragmentação do conceito sugere que, por prudência, se analisem algumas tendências atuais a fim de clarificar uma visão sobre o significado e o alcance da RSE.

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A orientação teórica centra-se na proposta, discussão e teste de hipóteses ou correlações; a orientação descritiva consiste no relato de fatos e de opiniões; e a orientação prescritiva refere-se à sugestão de estratégias, regras e idéias com intenção instrumental ou normativa (BAKKER et al., 2005).