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Responsabilidade Social das Empresas e Valores Humanos: Um estudo sobre a atitude dos gestores brasileiros

I. INTRODUÇÃO E ENQUADRAMENTO DA TESE

1.1. APRESENTAÇÃO DO TEMA

A presença de preocupações éticas na gestão de empresas e de negócios pode ser encontrada em inúmeros textos e exemplos relatados ao longo da história, no entanto, durante as últimas décadas este tema tornou-se alvo de uma atenção sem precedentes por parte de acadêmicos, empresários, políticos e sociedade em geral. A consolidação das democracias, a abertura de fronteiras comerciais e o desenvolvimento tecnológico que facilitou o acesso e a circulação livre de informação foram fatores determinantes para o aumento da visibilidade das problemáticas éticas que a administração de empresas encerra. A sociedade tornou-se mais vigilante em relação à atividade empresarial e muitas empresas foram obrigadas a repensar os critérios éticos da sua conduta, pressionadas por uma concorrência sem fronteiras e por um mercado tendencialmente global. Surgiram associações dedicadas a promover práticas empresariais socialmente responsáveis1, foram criados índices internacionais de competitividade empresarial com base no desempenho social e ambiental2, multiplicaram-se debates em todo o mundo sobre os impactos ambientais da industrialização sem controle e da exploração ilimitada de recursos naturais, e o desenvolvimento sustentável passou a integrar a agenda política e a constituir prioridade de organizações internacionais3. No meio acadêmico, surgiram novas publicações periódicas dedicadas às questões éticas no contexto empresarial4 e foram introduzidas disciplinas de ética nos planos curriculares dos cursos de administração de empresas em universidades de todo o mundo, tendo aumentado significativamente o número de autores que estudam problemas de ordem ética na administração. Acompanhando todas estas mudanças, desenvolveu-se o campo da ética empresarial.

1

Como o World Business Council for Sustainable Development ou o Institute of Social and Ethical Accountability.

2

Como o Dow Jones Sustainability Index ou o Ethibel Sustainability Index.

3

De que são exemplo o Global Reporting Initiative ou o Global Compact promovido pela ONU.

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Embora a teoria ética seja, desde a origem, por natureza e por condição, uma disciplina filosófica, os seus fundamentos contribuíram amplamente para o avanço do conhecimento em outras disciplinas, tais como a sociologia e, mais recentemente, a administração de empresas. A ética empresarial sugere uma aplicação dos princípios das doutrinas éticas à atividade empresarial, adotando-os como critério de avaliação moral das ações praticadas nesse contexto. Srour (2000) define, a este respeito, a moral como um conjunto de valores, regras de comportamento e códigos de conduta que coletividades adotam, e a ética como uma reflexão teórica sobre a validade filosófica da moral, concluindo que a ética empresarial consistirá, portanto, no estudo da moral que guia a conduta das empresas e na apreciação crítica dessa moral em termos filosóficos5. Assim, as práticas empresariais inscrevem-se no âmbito da ética empresarial quando os efeitos que produzem ou possam vir a produzir impactam no bem-estar ou na qualidade de vida de indivíduos e de coletividades.

Uma das abordagens possíveis ao comportamento ético empresarial6 consiste na análise e avaliação do desempenho social das empresas (DSE). Este DSE refere-se aos impactos sociais e ambientais que decorrem das decisões e ações empresariais, traduzindo a forma como a empresa assume, na sua prática, as responsabilidades a que está vinculada perante a sociedade. O DSE está portanto associado ao conceito de Responsabilidade Social das Empresas (RSE), cuja premissa central baseia-se na crença de que as empresas e a sociedade são entidades interligadas e interdependentes, existindo um conjunto de expectativas legítimas da sociedade em relação à atuação das empresas e aos resultados por elas alcançados (WOOD, 1991). Deste modo, a concepção clássica de RSE identifica-a com a obrigação dos empresários adotarem políticas e práticas adequadas aos objetivos e valores da sociedade (BOWEN, 1953), buscando com a sua ação benefícios sociais para além dos estritamente econômicos (DAVIS, 1973). A finalidade econômica será aqui entendida como a geração de lucros que promovam o crescimento da empresa e beneficiem financeiramente os

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A conduta das empresas será, necessariamente, um reflexo de decisões individuais e manifesta-se no comportamento das pessoas que a compõem enquanto agentes dessas decisões. Neste sentido, dado que a ética e a moral são conceitos aplicáveis apenas a pessoas e não a organizações, sempre que, por simplificação de linguagem, for referido um comportamento empresarial, este deve ser entendido como a manifestação, no plano organizacional, das decisões e ações individuais. Estas sim, sujeitas a avaliação ética.

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Solomon (1993) distingue três níveis de ética empresarial: o micronível – que se ocupa de avaliar a justiça das trocas individuais e as obrigações que comprometem as partes envolvidas nas transações; o macronível – que analisa a economia de forma agregada, procurando compreender a natureza do mundo dos negócios e as suas funções específicas; e o nível molar – que está centrado na empresa como unidade básica da economia e que se dedica a estudar o seu papel na sociedade. Apesar desta distinção ajudar a compreender a diversidade das preocupações que integram o campo da ética empresarial, nem sempre é possível estabelecer fronteiras nítidas entre os três níveis ou limitar a reflexão ética apenas a um deles.

acionistas, centrando todo o esforço organizacional neste fim. Srour (2000) refere que o objetivo da reflexão ética é “libertar os agentes sociais da prisão do egoísmo que não se

importa com os efeitos produzidos sobre os outros” (2000: p. 29), destacando, desta forma, a

importância da ética no combate filosófico ao egoísmo de algumas morais. Se a ética busca esta libertação do egoísmo, no plano empresarial a concepção clássica de RSE parece corresponder precisamente a um esforço idêntico, implicando uma filosofia gerencial que não seja auto-centrada e que integre nos seus planos preocupações de natureza social e ambiental. Neste sentido, a RSE é uma questão com raízes filosóficas, constituindo, talvez, o eixo central de todo o campo da ética empresarial, uma vez que a generalidade dos comportamentos empresariais eticamente questionáveis pode ser avaliada à luz da sua adequação aos requisitos impostos pelas responsabilidades da empresa perante a sociedade. Esta abordagem remete a RSE para a esfera do comportamento empresarial que depende significativamente das preferências e escolhas dos seus dirigentes quanto ao formato e aos limites da relação que pretendem estabelecer e desenvolver entre a empresa e a sociedade.

O debate público sobre a RSE desenvolveu-se principalmente a partir da década de cinqüenta do século XX, promovido por um rápido crescimento do poder e da influência das empresas na sociedade, especialmente nos Estados Unidos da América (BOATRIGHT, 2003). Na essência, a discussão em torno da RSE centra-se na reflexão sobre os fins que devem orientar o exercício da atividade empresarial. A visão liberal clássica defende que a empresa deve ter como objetivo exclusivo da sua atividade o lucro, contribuindo para o bem-estar social por meio do pagamento de impostos, os quais, administrados pelo Estado, permitirão que a riqueza gerada pela empresa reverta a favor da sociedade de uma forma adequada (FRIEDMAN, 1962). O conceito de RSE foi construindo o seu significado à medida que esta visão ia sendo desafiada por autores que situam as responsabilidades da empresa além do fim lucrativo e do estrito cumprimento da lei. Esta concepção mais ampla das finalidades empresariais, por oposição à visão clássica, defende que a empresa deve contribuir ativamente para o desenvolvimento social, não apenas por meio dos lucros econômicos que gera, mas também por meio de uma intervenção direta na resolução de problemas de ordem social e na minimização dos efeitos prejudiciais que a sua atividade pode ter no bem-estar coletivo (DAVIS, 1973). Segundo os defensores desta visão, a RSE implica a obrigação da empresa integrar preocupações sociais na definição dos seus objetivos, comprometendo-se perante a sociedade da qual depende.

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O movimento acadêmico e social em defesa da RSE e a adoção crescente de um discurso e de uma prática empresariais sintonizados com essas preocupações não reúnem, no entanto, unanimidade de interpretação do seu significado. Apesar do entendimento geral interpretar este movimento como gerador de novos paradigmas gerenciais e promotor de maior justiça social, o fenômeno pode ser analisado, tal como sugerido por alguns autores, de um outro ponto de vista. O modelo explicativo da transformação do capitalismo proposto por Boltanski e Chiapello (1999) fornece bases para uma visão da RSE como forma de legitimação e de perpetuação do capitalismo. Os autores afirmam que o capitalismo pressupõe a liberdade e autonomia dos agentes e que, por isso, enquanto modelo sócio-econômico dominante, necessita de um “espírito” que motive as pessoas a voluntariamente participar na forma de vida e de organização capitalista (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 1999). Para que este “espírito” tenha um efeito mobilizador, deve incorporar uma dimensão moral que justifique a participação das pessoas, saciáveis em seus desejos e necessidades, num processo insaciável de acumulação ilimitada como é o capitalismo. Assim, a perpetuação do capitalismo dá-se por meio de uma alternância permanente entre o estímulo e o refreamento da intenção insaciável de acumulação que lhe é subjacente (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 1999). A transformação do capitalismo assegura a sua sobrevivência e é alcançada através da

crítica que questiona o modelo estabelecido e promove a mudança para um novo formato

distinto do anterior sem abandonar a estrutura capitalista fundamental. Em síntese, o capitalismo transforma-se para responder à necessidade de justificação das pessoas comprometidas, em uma determinada época, com o processo de acumulação ilimitada.

Neste sentido, tal como sugere Ventura (2005), o movimento pela RSE pode ser visto como uma crítica, motivada por circunstâncias sociais, políticas e econômicas dos tempos modernos, que promove um deslocamento do capitalismo para uma nova configuração socialmente legitimada. Para um trabalhador, a motivação material da remuneração salarial constitui razão suficiente para manter o seu emprego, mas não para dedicar-se a ele, tornando- se necessário mostrar que a busca e obtenção de lucro pode ser desejável e digna de mérito, não se limitando aos motivos e estímulos econômicos. A RSE parece fornecer, assim, o argumento moral do bem comum que oferece uma justificativa situada além da motivação material e que legitima o modelo capitalista (VENTURA, 2005). Esta interpretação do movimento de RSE questiona o seu significado na sociedade, nas suas formas de organização e nos seus modelos de desenvolvimento. No entanto, embora contribua para clarificar o que

representa a RSE em termos macro-sociais, esta visão da RSE como legitimadora do capitalismo não constitui uma crítica à natureza dos seus propósitos concretos.

A busca de legitimação não parece, por si só, determinar a não desejabilidade das práticas que a RSE inspira, mas apenas caracteriza as razões conscientes ou inconscientes que motivam o discurso e a ação. Estas razões constituem apenas uma forma, entre várias, de justificar o exercício da RSE. No cotidiano da vida empresarial, as decisões de gestão que têm alguma relação com os princípios de RSE têm origem em motivações complexas que sobrepõem valores pessoais e razões estratégicas, desejos de integração e de legitimação sistêmica da ação. Nestes termos, as justificativas para o exercício da RSE podem ser distinguidas segundo a origem da sua motivação, a qual pode ser interna (se resulta essencialmente de uma resposta a um estímulo interno à organização) ou externa (se resulta principalmente de uma pressão originada no exterior). As fronteiras entre a natureza das motivações que justificam a RSE não devem ser entendidas como limites rígidos que não permitem interferência simultânea de diversas motivações numa mesma estratégia ou política empresarial. O Quadro 1 apresenta uma simplificação das justificativas da RSE, de acordo com a sua origem e o nível de análise das suas implicações.

Origem Interna Externa Macro Integração (Promove Aceitação) Legitimação (Legitima Sistema) N ív el d e A n á li se

Micro Consciência Social (Motivação Ética)

Pressão do Mercado

(Motivação Estratégica)

O Quadro 1 aborda a RSE a partir das suas motivações, distinguindo a motivação

interna – que tem origem na consciência individual do decisor ou no desejo de integração no

meio social e econômico por meio da identificação com o discurso e a prática dominantes – da motivação externa – que tem origem na pressão exercida pelo mercado para a adoção de uma prática geradora de vantagens competitivas ou na crítica que sustenta e legitima o sistema capitalista. As motivações internas correspondem a um movimento essencialmente de dentro para fora da organização, enquanto as motivações externas correspondem a um movimento inverso estimulado pela influência de uma força exterior nas escolhas internas da

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empresa. Estas justificativas, embora porventura incompletas, estabelecem um corte nos planos de análise da RSE, permitindo distinguir os diferentes níveis do seu questionamento. E assim, a análise do papel legitimador ou integrador da RSE não retira relevância ao estudo das motivações estratégicas ou éticas que, em concreto, podem justificar determinada orientação social das empresas. Esta formulação parece coincidir com as propostas do modelo de análise da RSE de Hemingway e Maclagan (2004), segundo o qual as práticas empresariais socialmente responsáveis podem ter origem em motivações estratégicas ou idealistas, tal como apresentado na Figura 1. Enquanto as segundas relacionam-se com a consciência ética e os valores individuais de cada decisor organizacional, as primeiras referem-se, por exemplo, à melhoria da imagem corporativa, à necessidade de integração e aceitação na comunidade local ou à compensação de danos sociais ou ambientais provocados pela ação empresarial (HEMINGWAY & MACLAGAN, 2004).

As motivações do modelo de Hemingway e Maclagan (2004) coincidem com as justificativa interna e externa da RSE, na análise micro do Quadro 1. De fato, o discurso sobre RSE não é uniforme nem coerente em todo o mundo ou mesmo dentro de cada país ou entre empresas do mesmo setor (GRIFFIN, 2000). As empresas revelam, entre si, discursos e práticas diferenciadas e as razões destas diferenças só podem ser plenamente compreendidas com a contribuição de abordagens baseadas nos diversos planos de análise. Os dirigentes empresariais mantêm uma ampla liberdade de decisão estratégica que nem sempre se regula pelo interesse exclusivo dos acionistas (EISENHARDT, 1989), mas reflete a arbitrariedade

MOTIVO