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2.1. AS RESPONSABILIDADES SOCIAIS DAS EMPRESAS

2.1.2. A Responsabilidade Moral das Empresas

A responsabilização de entidades coletivas, tais como as empresas, envolve questionamentos de natureza jurídica, sociológica, psicológica e filosófica. A legitimação da transferência de responsabilidades dos indivíduos que praticam atos e têm intenções para organizações com existência abstrata e sem consciência é motivo de ampla discussão que alimenta debates acadêmicos e reflexões sobre o papel dos indivíduos nas organizações (RANKEN, 1987). Hemingway e Maclagan (2004: p. 41) referem, a este propósito, que o exercício da RSE, em cada empresa, “não é tanto um indicador da política corporativa, mas

sim o reflexo de valores e de ações individuais”19. Embora não seja pretensão desta pesquisa

aprofundar este ângulo de análise da RSE, é prudente reconhecer a controvérsia e concretizar qual o significado da responsabilidade aqui adotado e como esta pode ser atribuída às empresas e às pessoas que as compõem.

No Dicionário das Ciências Sociais, Birou (1976: p. 360) define responsabilidade como o “acto de assumir conscientemente a execução e as conseqüências de um acto e a

obrigação moral que deriva do exercício de um cargo ou do cumprimento de uma missão”.

Esta dupla acepção restringe o conceito de responsabilidade a uma atribuição exclusivamente humana, decorrente da capacidade individual de praticar atos conscientes. Zimmerman (1992) refere que, em relação à responsabilidade moral, é necessário verificarem-se duas condições para que alguém possa ser considerado responsável pelas conseqüências de um ato praticado: primeiro, a pessoa deve ter agido de livre vontade, resultando o ato de uma escolha entre opções alternativas; segundo, a pessoa deve ter consciência das implicações morais daquela ação. Estas condições excluem os atos danosos cujo exercício não pode ser evitado e inibem a responsabilização de sujeitos com incapacidade cognitiva e discernimento limitado (como as crianças ou os deficientes mentais). As características da responsabilidade são, em todo o caso, atribuições originadas no indivíduo.

Quando se trata do caso específico da responsabilidade social, esta é entendida como “a responsabilidade daquele que é chamado a responder pelos seus actos face à sociedade ou

à opinião pública, (…) na medida em que tais actos assumam dimensões ou conseqüências sociais” (Birou, 1976: p. 361). Estes atos podem referir-se tanto a deveres negativos (evitar o

dano) como a deveres positivos (praticar o bem). Em termos mais gerais, pode, no entanto,

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identificar-se um nível de responsabilidade institucional, localizado no plano das organizações de indivíduos. Neste caso, a responsabilidade organizacional representa uma expectativa coletiva em relação aos resultados da ação coordenada. Por isto, tal como esclarece Thiry- Cherques (2003),

“a responsabilidade social compreende o dever de pessoas, grupos e instituições em relação à sociedade como um todo, ou seja, em relação a todas as pessoas, todos os grupos e todas as instituições. A responsabilidade é o que nos faz sujeitos e objetos da ética, do direito, das ideologias e, se quisermos, da fé. É o que nos torna passíveis de sanção, de castigo, de reprovação e de culpa” (THIRY-CHERQUES, 2003: p. 33).

Embora a responsabilidade seja uma atribuição dos indivíduos, também podem ser atribuídas responsabilidades às organizações e, em particular, às empresas. Estas responsabilidades decorrem dos objetivos que justificam a própria existência de cada organização e podem ser aferidas em função dos resultados alcançados com a atividade organizacional e dos meios utilizados para fazê-lo. Assim, quando se busca definir o quadro de responsabilidades de uma empresa perante a sociedade, situa-se a análise no plano organizacional, ou seja, no questionamento do que a sociedade espera que seja o resultado da ação coletiva. Os indivíduos, quando agem em nome e no contexto de uma determinada organização, assumem, em diferentes graus consoante a sua posição, a responsabilidade de contribuir para o cumprimento das responsabilidades organizacionais. No caso da RSE, os dirigentes e trabalhadores são individualmente responsáveis pelos atos praticados em nome da sua empresa, sujeitando-se, pelo incumprimento das expectativas sociais, a penalizações econômicas, a sanções legais ou a condenações morais que recaem diretamente sobre a organização e, indiretamente, sobre eles próprios. Neste estudo, busca-se determinar quais são as RSE no plano organizacional, reconhecendo, no entanto, que elas só podem ser cumpridas por meio da decisão e da ação individual. É no cruzamento destes dois planos que se situa o centro das preocupações desta pesquisa.

A reflexão sobre a moralidade da RSE pode ainda depender previamente do grau de relativismo atribuído a essas responsabilidades coletivas. Sethi (1975) defende a relatividade espacial e temporal dos critérios que definem o bom desempenho social das empresas e, por inerência, das responsabilidades que lhe estão subjacentes. Segundo o autor, “uma ação

ambiental sob referência das partes envolvidas” (SETHI, 1975: p. 59)20, dependendo a sua aceitabilidade das circunstâncias culturais que a caracterizam e determinam. Embora este relativismo não se estenda necessariamente à natureza das responsabilidades que vinculam as empresas à sociedade, esta visão elege a legitimidade social como critério fundamental de avaliação da prática empresarial propriamente dita. Apesar da RSE permanecer como vínculo abstrato que define obrigações gerais, o julgamento da ação concreta, no entanto, fica dependente da legitimidade conferida pela sociedade, sendo portanto culturalmente determinado. Esta posição relativista impede a aceitação de padrões morais universais, mas não compromete a análise das responsabilidades gerais das empresas e da sua dimensão moral.

A responsabilização de empresas baseada na exigência de crescimento econômico, de lucratividade e de cumprimento da lei tem fundamentação evidente e dificilmente pode ser desafiada por uma teoria ou corrente de pensamento coerente. As responsabilidades econômicas e legais que vinculam as empresas à sociedade são, aparentemente, indiscutíveis. É, no entanto, o caso particular da responsabilidade moral, quando incluída no conjunto de responsabilidades sociais das empresas, que gera maiores dúvidas e controvérsias. Como refere Thiry-Cherques (2003), só as pessoas podem ser moralmente responsabilizáveis, não as empresas enquanto entidades sociais abstratas. Apenas os atos ou intenções de seres humanos podem ser objeto de apreciação moral, mesmo que praticados ou manifestados em ambiente empresarial. E assim, teoricamente, a responsabilidade moral é a mesma para todas as pessoas, independentemente dos seus contextos particulares, podendo resumir-se na obrigação reconhecida de “preservar para os seres humanos a integridade da sua essência e do seu

mundo contra os abusos do seu próprio poder e do poder alheio” (THIRY-CHERQUES,

2003: p. 36). Esta premissa filosófica dificulta substancialmente a aceitação e discussão de uma responsabilidade moral no plano organizacional. A Responsabilidade Moral das Empresas (RME) corresponderá, portanto, a uma projeção de responsabilidades individuais para a esfera do comportamento empresarial, ou seja, um compromisso moral que vincula dirigentes, gestores e trabalhadores a uma avaliação ética das intenções e dos atos que praticam em nome da empresa que representam.

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Nos termos apresentados, a RME traduz um comprometimento perante determinadas instanciais sociais21. Essas instâncias representam os grupos ou instituições perante os quais a empresa está moralmente obrigada, sendo, por isso, responsabilizável por seus atos. No

Quadro 3 são reunidas as instâncias mais significativas.

Comunidade Famílias Futuras gerações Humanidade Naturais Sociedade Empregados Trabalho / Empresa Terceirizados

Trabalho / Trabalho Representações trabalhistas

Autoridades públicas

Empresa / Reguladores

Reguladores não governamentais Acionistas Clientes Parceiros Investidores Fornecedores Contratuais Empresa / Empresa Concorrentes

Estas instâncias da RME coincidem, em larga medida, com os diversos grupos de

stakeholders habitualmente identificados como as entidades que devem ser objeto estratégico

da atenção das políticas e práticas empresariais (FREEMAN, 1984). Neste caso, tratando-se de uma abordagem estratégica, as instâncias – ou stakeholders – são valorizadas na medida em que podem influenciar o desempenho da empresa, gerando ou comprometendo vantagens competitivas, a sua rentabilidade e a sustentabilidade do negócio. Aqui, o critério que determina a relação com as instâncias prende-se à estrita finalidade econômica da empresa, facilitando a tomada e a avaliação de decisões que interfiram no campo de cada stakeholder.

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A RME, sendo uma responsabilidade social, dirige-se a categorias universais, a grupos e instituições, distinguindo-se, neste aspecto, da responsabilidade moral privada, cujo objeto podem ser indivíduos particulares, claramente identificáveis, como no caso da responsabilidade moral subjacente ao casamento (THIRY-CHERQUES, 2003).

Já no caso da RME, a relação com as instâncias depende de um critério ético, freqüentemente difuso e multifacetado, vulnerável à ambigüidade típica da dúvida, da subjetividade ou da intuição22. Thiry-Cherques (2003) reconhece esta dificuldade essencial da RME, afirmando que,

“no plano empresarial, a dificuldade se multiplica pela quantidade de instâncias com as quais as pessoas têm deveres e pela contradição entre os interesses de umas e de outras. Afinal, um dirigente é mais responsável perante os empregados ou perante os acionistas? Um empregado deve ser fiel aos colegas ou a sua família? Não há instância exterior à consciência que possa dar conta dessas questões” (THIRY-CHERQUES, 2003: p. 36).

Como alternativa ao estudo da RME com base nos princípios éticos que guiam a conduta, Carroll (1991) propõe uma abordagem desta responsabilidade específica das empresas a partir dos estilos de gestão que podem caracterizar a ação gerencial. Assim, o autor identifica três tipos de gestão, baseados padrões comportamentais: a gestão imoral, a gestão amoral e a gestão moral. O primeiro tipo, a gestão imoral, caracteriza os gestores cujas decisões e ações se opõem frontalmente ao que é considerado eticamente aceitável, revelando preocupação exclusiva com os seus interesses pessoais ou com a lucratividade da empresa. Vêem as normas legais como barreiras que devem ser ultrapassadas para alcançar o sucesso e privilegiam uma estratégia gerencial de exploração de oportunidades que gerem ganhos pessoais ou corporativos. O segundo tipo, a gestão amoral, define os gestores insensíveis aos impactos sociais e ambientais da ação empresarial que se projetem além da esfera limitada que influencia o negócio propriamente dito. Consideram o seu dever social circunscrito ao rigoroso cumprimento da lei, tendem a ignorar a dimensão ética da ação gerencial e remetem as questões de ordem moral para o domínio exclusivo da vida privada. Por fim, a gestão moral caracteriza os gestores que, buscando o lucro, apenas admitem fazê- lo dentro dos limites impostos pela lei e respeitando princípios éticos de conduta que assegurem a legalidade e a justiça das ações praticadas. Para estes gestores, a lei é considerada um padrão comportamental mínimo, preferindo agir em conformidade com normas morais cuja exigência se situa além do estabelecido pela pretensão legal.

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Apesar da inescapável subjetividade das questões morais, a relação da empresa com os stakeholders não depende de razões totalmente blindadas. Segundo Carroll (1991), a importância relativa dos stakeholders depende de dois critérios fundamentais: a sua legitimidade e o seu poder. É com base na avaliação destas duas dimensões que a empresa e os seus representantes se posicionam perante cada instância. Embora o poder se sobreponha com freqüência à legitimidade enquanto fator decisivo na definição da relação estabelecida entre a empresa e cada stakeholder, do ponto de vista da RSE, a legitimidade tem um papel mais determinante, dado referir-se à validade relativa da reivindicação de cada stakeholder, definida segundo critérios morais (CARROLL, 1991).

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Uma vez que a RME é uma projeção de obrigações que vinculam quem age em nome da empresa, a tipologia dos estilos de gestão proposta por Carroll (1991) facilita a compreensão dos limites que definem a responsabilidade moral das empresas por oposição ao comportamento imoral ou amoral dos gestores. Estes estilos de gestão são ilustrados pelo autor com exemplos concretos dos perfis gerenciais que caracterizam a relação promovida por cada tipo de gestor com stakeholders primários, tal como apresentado no Quadro 4.

Tipos de Gestão

Stakeholders

Gestão Imoral Gestão Amoral Gestão Moral

Acionistas

- Maximização de remuneração e de benefícios para si próprio - Limitação do acesso dos acionistas a informação relevante

- Considera a lucratividade do negócio a única recompensa dos acionistas - A comunicação com os acionistas é limitada ao exigido por lei

- Todos os stakeholders são tratados com justiça - Códigos de conduta regulam o comportamento e protegem os interesses dos acionistas

Empregados

- Os empregados são vistos como fatores produtivos a explorar e manipular para obter ganhos pessoais ou

corporativos

- Pratica-se uma gestão coercitiva e controladora, sem atenção aos direitos,

necessidades e expectativas dos empregados

- Os empregados são tratados de acordo com os requisitos legais - Políticas de motivação baseadas em objetivos de produtividade e não em estratégias de desenvolvimento pessoal - Estilo de liderança participativa que promove uma relação de confiança mútua.

- Em todas as decisões são ponderados os direitos dos empregados a um tratamento justo, à privacidade, à liberdade de expressão e à segurança pessoal

Clientes

- Intenção ativa de enganar, confundir e manipular a informação transmitida e a relação com clientes - Em todas as decisões de marketing, o cliente é explorado o mais possível.

- As decisões comerciais visam exclusivamente atender ao objetivo do lucro máximo, dentro dos limites legais

- Ignoram-se efeitos nocivos de produtos ou de

campanhas

- Dar ao cliente informação completa, pedir um preço justo, oferecer garantias e focar relação na satisfação - Os direitos dos clientes são plenamente honrados

Comunidade

- Aproveitamento máximo dos recursos da comunidade local, sem preocupação com o seu bem-estar

- Desatenção às necessidades da comunidade envolvente

- As questões relacionadas com a comunidade são consideradas irrelevantes nas decisões gerenciais

- Relação mínima com a comunidade e instituições locais, sem envolvimento nos seus problemas ou iniciativas

- Envolvimento ativo no apoio a instituições que necessitem de ajuda financeira ou operacional, estimulando comportamento idêntico nos outros

- Objetivos da comunidade e da empresa são considerados interdependentes

A gestão moral apresenta-se, segundo Carroll (1991), como uma alternativa aos comportamentos organizacionais que não maximizam a contribuição da ação empresarial para o bem comum. Neste sentido, o gestor imoral contraria frontalmente os interesses coletivos e o gestor amoral, não praticando o mal, demite-se de praticar o bem (CARROLL, 1991). O autor foca a análise no indivíduo, como berço original a partir do qual são concebidas e exercidas as múltiplas responsabilidades das empresas. Só as pessoas podem ser objeto de responsabilização moral ou de qualquer outra natureza. Por isso, na abordagem moral da RSE, o gestor confunde-se com a organização que gere e o trabalhador confunde-se com a organização que representa, enquanto agentes ativos dos compromissos empresariais.

O conceito moral introduz um elemento fundamental na equação gerencial, forçando a uma reflexão ética sobre os meios usados para atingir os fins empresariais, sobre o espectro alargado de efeitos provocados por todas as decisões gerenciais e sobre os interesses de todos quantos possam afetar ou ser afetados pela ação da empresa. A contribuição para o bem comum torna-se o centro da reflexão e o critério que define a moralidade das ações coletivas. A responsabilidade moral das empresas, como reflexo do comprometimento individual, não contraria, no entanto, os princípios éticos básicos que regulam a vida em sociedade. As responsabilidades morais dos dirigentes, gestores e trabalhadores são idênticas às de qualquer cidadão, acrescentado apenas, talvez, a exigência suplementar de representarem interesses que lhe são alheios e de deterem o poder reforçado de provocar danos ou de gerar progressos no bem-estar coletivo. É precisamente esta a razão que justifica o estudo das problemáticas éticas da atividade empresarial e do pensamento moral de quem a protagoniza.

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