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2.1. AS RESPONSABILIDADES SOCIAIS DAS EMPRESAS

2.1.1. Empresa e Sociedade

2.1.1.1. Em defesa da RSE

A empresa é, por definição, uma unidade econômica que assegura a sua sobrevivência por meio da riqueza que gera, ou seja, do crescimento que alcança no exercício da sua atividade. Num mercado de competição livre, esse crescimento é, teoricamente, o resultado do êxito alcançado na satisfação de necessidades humanas. O lucro – expressão econômica do crescimento – adquire desta forma legitimidade social. No entanto, o lucro não constitui um fim em si mesmo, mas um meio que permite prolongar e desenvolver a atividade empresarial, a qual está sujeita a avaliação crítica e vulnerável ao julgamento ético. Por outro lado, sendo a empresa uma entidade privada, os direitos de propriedade dos meios de produção legitimam a expectativa de retorno financeiro por parte dos acionistas, enquanto principais investidores. Estas especificidades estão no centro da discussão sobre o papel da empresa na sociedade, a qual está, por seu lado, ligada ao questionamento do papel que deve exercer o próprio Estado e ao debate sobre quais as responsabilidades que devem recair sobre ambos.

O tema da Responsabilidade Social das Empresas (RSE) alcançou maior visibilidade a partir da década de cinqüenta do século XX, com o pensamento de autores como Howard Bowen (1953) ou Joseph McGuire (1963) que desafiaram a visão liberal segundo a qual a função social da empresa cumpre-se no objetivo único de gerar lucros e enriquecer os seus proprietários. Contrariando esta visão, Bowen defende que o aumento de poder das empresas deveria ser acompanhado por um aumento da sua responsabilidade, competindo aos empresários promover a adoção de políticas e práticas empresariais adequadas aos objetivos e valores da sociedade (BOWEN, 1953). McGuire, por seu lado, destaca a necessidade das empresas adotarem uma postura interventiva na resolução de problemas sociais, assumindo compromissos morais que estão além do estrito cumprimento da lei e da busca do indispensável lucro econômico (MCGUIRE, 1963). Para Davis (1960, 1973), existe uma responsabilidade partilhada entre o Estado, as empresas e a sociedade no que respeita à

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intervenção ativa na resolução de problemas sociais, constituindo a RSE a obrigação da empresa buscar com a sua ação benefícios sociais para além dos estritamente econômicos (DAVIS, 1973). Subjacente a estas concepções, está a premissa de que as empresas devem a razão da sua existência a um determinado contexto social, sendo agentes sociais que refletem e reforçam valores (WARTICK & COCHRAN, 1985). Estas idéias estimularam a reflexão sobre o quadro de responsabilidades que as empresas devem assumir na sociedade, gerando teorias controversas que ainda hoje dividem opiniões.

Durante a segunda metade do século XX, à medida que o debate sobre a RSE se desenvolveu nos meios acadêmicos e políticos, consolidaram-se três correntes de pensamento que refletem três formas diferentes de defender uma concepção mais alargada das responsabilidades empresariais. Essas três escolas, embora não constituam corpos unificados de pesquisa e de produção acadêmica, identificam três abordagens distintas à RSE, com fundamentos teóricos e ângulos de análise próprios. Distinguem-se, assim, a Business Ethics (preocupada com a fundamentação ética e filosófica da ação empresarial), a Business and

Society (que legitima a RSE por meio de uma visão sócio-política da sociedade, de inspiração

contratualista) e a Social Issues Management (que busca soluções de gestão que permitam compatibilizar o exercício da RSE com os fins lucrativos da atividade empresarial). O

Quadro 2 resume algumas das crenças e dos objetivos que movem quem se inscreve em cada

uma destas correntes.

Business Ethics

Abordagem de inspiração filosófica, na forma de ética aplicada, normativa, centrada nos valores e julgamentos morais.

Crença: A ação empresarial não é amoral, sendo susceptível de apreciação ética.

- Busca avaliar a moralidade dos comportamentos empresariais, como reflexo do processo decisório coletivo ou individual.

- Busca avaliar a moralidade do sistema econômico, sua organização e função social.

Business and Society

Abordagem sócio-política, fundada numa visão contratualista da relação entre empresa e sociedade.

Crença: Empresa e sociedade são entidades interdependentes que integram o mesmo sistema e têm

um vínculo baseado num contrato social, competindo à segunda controlar e fiscalizar a ação da primeira, em resultado da legitimidade que aquela confere a esta para explorar recursos e transacionar bens e serviços.

- Busca justificar a RSE como exercício do legítimo controle da ação empresarial por parte dos múltiplos grupos de interesse que são por ela afetados.

Social Issues Management

Abordagem instrumental que procura compatibilizar o desempenho social das empresas (DSE) com a sua rentabilidade.

Crença: A longo prazo, os interesses da empresa e da sociedade são convergentes, constituindo o

DSE uma fonte de vantagens competitivas.

- Busca desenvolver ferramentas práticas de gestão dos impactos sociais da ação empresarial, que promovam o DSE e gerem, simultaneamente, oportunidades de crescimento econômico para a empresa.

Os autores cujo pensamento se filia à corrente Business Ethics procuram identificar qual a ação boa, avaliando a moralidade das decisões tomadas em contexto empresarial e defendendo a RSE como um imperativo ético que decorre da interferência que a ação das empresas tem no bem-estar geral da sociedade. De outro ângulo, quem defende a RSE baseado nos princípios da corrente Business and Society busca identificar qual a ação

legítima. Para estes autores, a separação funcional entre empresa e sociedade, embora seja

teoricamente defensável, é uma impossibilidade prática (KREITLON, 2004), sendo este o argumento central contra a concepção liberal que limita a finalidade da atividade empresarial ao seu objetivo econômico. Por fim, quem se inscreve na corrente Social Issues Management tende a procurar identificar qual a ação útil. Embora dominada por uma preocupação essencialmente econômica, esta escola de pensamento integra na sua abordagem a noção de

cidadania empresarial e as circunstâncias sociais e políticas que condicionam o crescimento

econômico, defendendo a RSE como resposta à concepção de um mercado constituído por cidadãos e não apenas por consumidores (KREITLON, 2004).

Quadro 2. Correntes de Pensamento sobre a RSE (baseado em Kreitlon, 2004)

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Como revelam as distintas abordagens das três escolas, a RSE pode ser concebida e defendida com recurso a premissas e justificativas muito diversas, invocando o seu fundamento ético, destacando o seu caráter regulador ou apelando ao seu papel instrumental. No entanto, apesar das divergências argumentativas que as definem, estas correntes não têm correspondência, na prática, com uma filiação nítida da generalidade dos estudos e das pesquisas sobre RSE. Os autores tendem a sobrepor argumentos e a adotar concepções diferentes de RSE, ignorando, em muitos casos, a diversidade de correntes de pensamento e de crenças que sustentam o debate, talvez como reflexo da própria insuficiência teórica que caracteriza a invocação isolada da argumentação de cada escola. Por isto, revela-se de maior utilidade avaliar a pertinência do pensamento de cada autor, sem recorrer a fronteiras teóricas que limitem o entendimento amplo da multiplicidade de abordagens que cabem dentro do tema da RSE.