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2.1. AS RESPONSABILIDADES SOCIAIS DAS EMPRESAS

2.1.3. Concepções de Responsabilidade Social das Empresas (RSE)

2.1.3.2. O Conceito de RSE

Nas últimas décadas, o Brasil destacou-se como um dos países com aumento mais significativo de produção acadêmica, debate público e iniciativas empresariais dedicadas à RSE. Desde a criação da Associação dos Dirigentes Cristãos de Empresas (ADCE), em 1960, a RSE adquiriu progressiva visibilidade como tema de discussão pública no Brasil. Ashley (2005) refere como o pioneirismo da ADCE em promover o debate sobre a RSE “marca, de

forma contundente, a relevância de pensar a dinâmica social das empresas com mais intensidade no Brasil” (2005: p. 69). Entre muitas iniciativas que desde então se verificaram,

a criação do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, em 1998, constitui um dos mais importantes impulsos de envolvimento de empresários na discussão e de transformação de práticas gerenciais concretas. Sendo uma associação de empresas privadas, o Instituto ETHOS representa atualmente uma das mais influentes fontes de reflexão e divulgação do tema da RSE no Brasil. A sua concepção de RSE alerta para a necessidade das empresas desenvolverem laços duradouros e mutuamente benéficos com os múltiplos

stakeholders, tal como esclarece a seguinte declaração:

“Responsabilidade social empresarial é uma forma de conduzir os negócios que torna a empresa parceira e co-responsável pelo desenvolvimento social. A empresa socialmente responsável é aquela que possui a capacidade de ouvir os interesses das diferentes partes (acionistas, funcionários, prestadores de serviço, fornecedores, consumidores, comunidade, governo e meio ambiente) e conseguir incorporá-los ao planejamento de suas atividades, buscando atender às demandas de todos, não apenas dos acionistas ou proprietários” (INSTITUTO ETHOS, 2006).

Os eixos fundamentais desta visão do Instituto ETHOS permeiam a generalidade das definições propostas por outros autores brasileiros. Mas, embora pareça existir convergência nas idéias centrais, ainda permanecem diferenças de entendimento sobre os fundamentos, os limites e o significado da RSE. Tenório (2004) distingue três abordagens da RSE que incluem três visões diferenciadas. Primeiro, uma visão clássica, simplificada, segundo a qual a RSE significa o cumprimento das obrigações legais e o comprometimento com o desenvolvimento econômico. Segundo, uma visão que associa a RSE ao envolvimento da empresa com ações comunitárias que busquem melhorar a qualidade de vida dessas comunidades. E terceiro, uma visão mais atual na qual a ação social da empresa é considerada em todos os aspectos da sua atividade, estabelecendo a RSE como “uma série de compromissos da empresa com a sua

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cadeia produtiva: clientes, funcionários, fornecedores, comunidades, meio ambiente e sociedade” (TENÓRIO, 2004: p. 32). Froes (2001), por seu lado, defende que o exercício da

RSE implica uma escolha da empresa quanto ao foco de atuação (meio ambiente, cidadania, etc.), à estratégia de ação (negócios, marketing institucional, etc.) e ao papel social que pretende desempenhar (difusão de valores, promotora da cidadania, etc.). O autor resiste a propor uma definição fechada de RSE, preferindo apresentar uma classificação detalhada das diferentes visões a seu respeito, elaborada em função das motivações que originam ou dos efeitos produzidos por ações empresariais vinculadas a concepções socialmente responsáveis. Apesar disto, o autor denuncia a sua visão pessoal ao declarar que “a empresa socialmente

responsável torna-se cidadã porque dissemina novos valores que restauram a solidariedade social, a coesão social e o compromisso social com a eqüidade, a dignidade, a liberdade, a democracia e a melhoria da qualidade de vida de todos que vivem na sociedade” (FROES,

2001: p. 36).

Puppim de Oliveira (2005: p. 3), embora reconhecendo que não existe uma lista exaustiva do que são ações socialmente responsáveis, define a RSE como respeitando “à

maneira como as empresas agem, como impactam e como se relacionam com o meio ambiente e suas partes legitimamente interessadas”. Para Karkotli e Aragão (2005), a RSE

pode ser entendida em sentido estrito como a obrigação da empresa responder pelas ações praticadas por quem a ela esteja ligado e atue em seu nome. Em sentido mais amplo, a RSE consiste, para os autores, no comportamento ético em busca “de Qualidade nas relações que a

organização estabelece com todos os seus stakeholders, (…) incorporado à orientação estratégica da empresa, e refletido em desafios éticos para as dimensões econômicas, ambiental e social” (KARKOTLI & ARAGÃO, 2005: p. 48). Ashley (2005) amplia esta

responsabilidade para a necessidade da empresa responder perante “as expectativas de seus stakeholders atuais e futuros” (2005: p. 47), evidenciando uma preocupação mais vasta com o desenvolvimento sustentável. A este respeito, Thiry-Cherques (2003) refere como a filosofia moral contemporânea defende que a responsabilidade de cada um se estende a toda a humanidade, presente e futura, estabelecendo o bem-estar das gerações vindouras como critério ético e, portanto, objeto de responsabilização da ação empresarial.

Apesar da concepção geral de RSE atribuir à empresa o papel de provedora do bem- estar (BELIZÁRIO, 2005), muitos autores contemporâneos incluem a responsabilidade econômica e o fim lucrativo nas obrigações inerentes à RSE, contrariando a visão mais radical

de quem opõe a busca do lucro ao cumprimento das responsabilidades sociais. Duarte e Torres (2005) referem que a RSE implica uma atuação estratégica da empresa, traçando metas para atender necessidades sociais, de forma a garantir o lucro, a satisfação do cliente e o bem- estar social. Os autores sintetizam as crenças atuais sobre o tema, nos seguintes termos:

“A responsabilidade social surge como resgate da função social da empresa, cujo objetivo principal é promover o desenvolvimento humano sustentável, que atualmente transcende o aspecto ambiental e se estende por outras áreas (social, cultural, econômica, política), e tentar superar a distância entre o social e o econômico, obrigando as empresas a repensar seu papel e a forma de conduzir seus negócios” (DUARTE & TORRES, 2005: p. 24).

Apesar da inexistência de um acordo geral sobre a amplitude das responsabilidades empresariais, as concepções de RSE referidas revelam uma convergência razoável em alguns princípios fundamentais. A este propósito, Kreitlon (2004) afirma que existe já, atualmente, um consenso mínimo sobre as condições a que uma empresa deve atender para que seja considerada socialmente responsável, identificando três características básicas que a sua conduta deve demonstrar:

“a) reconhecer o impacto que causam suas atividades sobre a sociedade na qual está

inserida;

b) gerenciar os impactos econômicos, sociais e ambientais de suas operações, tanto a nível local como global;

c) realizar esses propósitos através do diálogo permanente com suas partes interessadas, às vezes através de parcerias com outros grupos e organizações”

(KREITLON, 2004: p. 10).

Este consenso mínimo resume as crenças que atualmente sustentam a generalidade das concepções de RSE defendidas por autores de todo o mundo. Estas concepções, no entanto, nem sempre respondem com clareza à questão elementar sobre quais são, concretamente, as responsabilidades sociais de uma empresa, limitando-se a enunciar princípios vagos de conduta empresarial e de filosofia gerencial. As tentativas academicamente mais férteis de concretizar as responsabilidades empresariais têm origem nos E.U.A., talvez em resultado do tradicional pragmatismo que caracteriza aquele país e do longo e intenso debate que há várias décadas ali alimenta a controvérsia em torno deste assunto.

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Uma das elaborações teóricas com maior adesão na literatura norte-americana sobre RSE, registrando também aplicações no Brasil (PINTO et al., 2004), é a proposta apresentada por Carroll em 1979, a qual resistiu, no essencial, até à atualidade, permanecendo amplamente aceita pela comunidade científica (ACAR et al., 2001). Carroll estabelece quatro tipos específicos de responsabilidades sociais das empresas, identificadas com base nas expectativas da sociedade em relação ao desempenho empresarial. O autor apresenta uma definição de RSE estruturada em quatro dimensões – econômica, legal, ética e filantrópica –, dispostas em formato piramidal, tal como descrito na Figura 4.

A forma piramidal proposta por Carroll pretende destacar a Responsabilidade Econômica como base que sustenta todas as outras responsabilidades que são, por sua vez, assumidas pelas empresas com a prioridade seqüencial sugerida pela ordenação apresentada na pirâmide27. Na concepção clássica, a RSE envolve um compromisso voluntário dos empresários com responsabilidades que estão além das estritas obrigações econômicas ou legais das empresas (MCGUIRE, 1963), destacando-se, nos termos propostos por Carroll (1979), as Responsabilidades Éticas e Filantrópicas. As primeiras dizem respeito a

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Esta hierarquia foi confirmada em estudos empíricos posteriores (AUPPERLE et al., 1985).

Responsabilidades econômicas

Obrigação que as empresas têm de gerar riqueza, manter o crescimento e responder às necessidades de consumo da sociedade.

Responsabilidades legais

Necessidade de que o crescimento econômico seja alcançado sem violar o quadro normativo e cumprindo as obrigações legais.

Responsabilidades éticas

Adoção de uma conduta sintonizada com os códigos morais e os valores implícitos da sociedade, para além do exclusivo cumprimento da lei.

Responsabilidades filantrópicas

Contribuição ativa e voluntária das empresas na resolução de problemas sociais e na melhoria da qualidade de vida da sociedade em geral.

comportamentos que, não sendo impostos por lei, são socialmente desejáveis e eticamente justificados, cumprindo a expectativa da sociedade em relação à atuação da empresa, enquanto as segundas implicam o envolvimento direto da empresa, por meio de contribuições financeiras ou transferência de recursos, em ações que visam melhorar o bem-estar da comunidade envolvente e promover o desenvolvimento social (FERRELL et al., 2002). A Responsabilidade Filantrópica proposta por Carroll justifica-se pelo fato do autor ancorar o seu pensamento à realidade norte-americana, caracterizada por uma profunda tradição filantrópica, o que transforma a filantropia numa verdadeira expectativa da sociedade em relação às empresas, elevando-a à categoria de RSE. No entanto, o próprio autor reconhece que, embora seja desejável e socialmente valorizada, essa Responsabilidade Filantrópica é menos importante do que as restantes três responsabilidades sociais das empresas (CARROLL, 1991). Apesar de alguns autores questionarem a validade da dicotomia estabelecida por Carroll entre a dimensão econômica e a dimensão social da RSE (MITCHELL et al., 1997), as sua propostas constituíram a base de alguns dos principais desenvolvimentos teóricos posteriores, nomeadamente os trabalhos de Wartick e Cochran (1985) e de Wood (1991).

Baseados na formulação de Carroll, Wartick e Cochran (1985) propuseram um modelo integrativo de Desempenho Social das Empresas (DSE), no qual é sugerido que o DSE consiste numa articulação entre princípios (valores que orientam as políticas de responsabilidade social, coincidentes com as quatro dimensões da RSE propostas por Carroll),

processos (forma reativa, defensiva, acomodativa ou proativa como a empresa responde às

pressões e exigências da sociedade) e políticas (ação concreta, traduzida pelos mecanismos utilizados para atuar socialmente) (WARTICK & COCHRAN, 1985). Desta forma, os autores tentaram pela primeira vez conciliar teorias habitualmente consideradas opostas no âmbito dos estudos sobre o DSE, nomeadamente a categorização original de RSE proposta por Carroll (1979), a noção de responsabilidade pública dos processos de gestão defendida por Preston e Post (1975) e a tipificação da Resposta Social Corporativa formulada por Sethi (1979). Com base no trabalho de Wartick e Cochran (1985), Wood (1991) definiu o DSE como a configuração de princípios de responsabilidade social, de processos de resposta social, e de políticas, programas e resultados observáveis associados à relação da empresa com a sociedade (WOOD, 1991), acrescentado, desta forma, à descrição anterior, uma componente de resultados e de impactos sociais da atuação organizacional. Wood reorganizou o modelo de Wartick e Cochran, desenvolvendo um conjunto mais abrangente de princípios de

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responsabilidade social (institucionais, organizacionais e individuais), integrando a teoria dos

stakeholders nos processos de resposta social e definindo os resultados da ação empresarial

em termos de políticas, programas e impactos sociais.

Em geral, tanto o modelo de Wartick e Cochran (1985) como os desenvolvimentos posteriores de Wood (1991), são elaborações teóricas que amplificam e esclarecem a proposta original de Carroll para a definição de DSE, mas não contrariam as suas premissas nem o seu desenho conceptual (CARROLL, 1999). Entre os méritos do modelo de Carroll, destacam-se principalmente três fatores inovadores do seu pensamento. Primeiro, a referência explícita aos compromissos econômicos como integrantes da responsabilidade social da empresa. Embora seja sugerida uma distinção entre as múltiplas responsabilidades, Carroll não opõe os fins lucrativos às restantes dimensões, contrariando a tendência para apontar o lucro como fonte de todos os egoísmos capitalistas. Segundo, a inclusão da responsabilidade legal no modelo desafia uma posição dominante que defende a lei como fronteira da responsabilidade social. A este respeito, McGuire (1963) foi pioneiro ao excluir o cumprimento das obrigações legais e econômicas das práticas de RSE, defendendo, tal como Walton (1967), o voluntarismo que deve presidir à adoção dessas práticas. Para estes autores, a RSE pressupõe a liberdade de optar, sem imposição externa, por estratégias que contribuam para o bem-estar social. Carroll, pelo contrário, entende a responsabilidade social num sentido mais amplo, argumentando que ela não pode excluir a obrigação de cumprimento da lei, na medida em que esta é a expressão de uma vontade social de regulação.

Finalmente, em terceiro lugar, apesar do diagrama piramidal sugerir uma interpretação do sentido específico segundo o qual as empresas cumprem as suas responsabilidades, Carroll afirma que estas responsabilidades podem – e devem – ser cumpridas simultaneamente. O que pode variar é o seu grau de cumprimento na prática gerencial, dependendo da dimensão da empresa, da filosofia de gestão, da estratégia corporativa, das características da indústria ou das condições gerais da economia (CARROLL, 1991). Assim, a empresa não pode demitir-se de qualquer uma de suas responsabilidades para cumprir outra, devendo procurar conciliar todos os compromissos sociais. No essencial, esta concepção de RSE enfatiza a necessidade de as empresas cumprirem os seus objetivos econômicos, respeitando a lei e assumindo, simultaneamente, compromissos que envolvam a adoção de um comportamento ético e de um papel interventivo na melhoria da qualidade de vida da sociedade ou, pelo menos, de parte dela.