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2.2. VALORES HUMANOS

2.2.2. Propriedades Filosóficas dos Valores

A reflexão desenvolvida na seção anterior alerta para a dificuldade fundamental que a teoria dos valores encerra de definir com clareza o próprio conceito de valor. Do ponto de vista filosófico, a concepção de valor como objeto que não é, mas que vale, tal como sugerido por Lotze, dificulta desde logo a sua definição. É por isso na psicologia e na sociologia que podem ser encontradas as tentativas mais relevantes de concretização e operacionalização de valores humanos. No entanto, o pensamento filosófico permanece como base de todos estes desenvolvimentos práticos e, segundo a sua tradição, os valores humanos são melhor compreendidos por meio do entendimento das suas propriedades fundamentais. Assim, antes de procurar uma definição precisa para o conceito, devem ser analisadas as propriedades habitualmente atribuídas aos valores pela filosofia em geral e pela axiologia em particular. No

Quadro 6 são resumidas essas propriedades.

Preferência

Os valores de cada pessoa resultam de escolhas individuais, refletidas ou intuídas, perante objetos reais, idéias, homens ou ações.

Polaridade

A cada valor contrapõe-se um contra-valor, como o bom se opõe ao mau e o belo ao feio, não existindo valor sem o correspondente contra-valor.

Hierarquia

Os valores, individualmente considerados, permitem diferentes graus de realização e, entre si, estão ordenados de acordo com uma hierarquia de importância.

Estabilidade

Os valores e a hierarquia axiológica apresentam estruturas estáveis e duráveis ao longo do tempo, não variando significativamente com os objetos a que aderem.

Objetividade / Subjetividade

O pensamento axiológico revela duas posições filosóficas antagônicas: uma que defende a validade objetiva dos valores independentemente dos sujeitos particulares que atribuem o valor; e outra que defende o subjetivismo dos juízos de valor, dependendo a sua validade inteiramente de cada sujeito.

Universalidade

Contrariando as teses do relativismo axiológico, a universalidade dos valores é defendida por quem acredita existirem valores absolutos, válidos para todas as pessoas; esta propriedade axiológica tem

permitido o desenvolvimento teórico do tema e sua aplicação às ciências sociais.

Preferência

Os valores manifestam-se como resultado de uma preferência individual em relação a coisas reais, idéias, homens, opiniões ou ações. Essa preferência está espelhada no princípio da “não-indiferença” dos valores referido por Morente (1980): quando se atribui um valor a algo, nada se diz da sua essência ontológica, mas diz-se que ele não é indiferente para quem o valoriza. Tal como afirma Hessen (2001), “é da essência do ser humano conhecer e querer,

tanto como valorar”, sendo este um exercício permanente ao longo da vida, uma vez que

“todo o querer pressupõe um valor” e “nada podemos querer senão aquilo que de qualquer

maneira nos pareça valioso e como tal digno de ser desejado” (2001: p. 45). Esta concepção

remete o valor para o campo do desejo e da preferência pessoal por um objeto ou por um estado de coisas em face de uma multiplicidade de possíveis alternativas. Lewis (2000) parece partilhar esta concepção, ao considerar que os valores são crenças e avaliações pessoais sobre o “bom”, o “justo” e o “belo”, que resultam de escolhas livres. Mais recentemente, também Vieira e Cardoso (2003) confirmam esta idéia, referindo que “a despeito das influências

genéticas e da história de vida, os valores são, até certo ponto, escolhidos pelos indivíduos”

(2003: p. 4). Conclui-se, portanto, que os valores não são fruto da arbitrariedade, mas resultam de escolhas individuais fruto da reflexão dedicada ou da preferência intuitiva (SCHELER, 1941).

Polaridade

Parece também consensual o reconhecimento da polaridade dos valores. A este respeito, Morente (1980) refere que todo o valor tem seu contra-valor, na medida em que a não-indiferença implica necessariamente, por lei de sua estrutura essencial, um afastamento positivo ou negativo do ponto de indiferença. Assim, ao bom opõe-se o mau, ao justo opõe-se o injusto, ao belo opõe-se o feio, ao útil opõe-se o inútil, não existindo valores sem contra- valor. Esta estrutura polar é uma das características fundamentais da ordem axiológica (HESSEN, 2001), constituindo a razão pela qual, segundo Morente (1980), alguns psicólogos confundiram valores com sentimentos, dada a coincidência destes fenômenos psíquicos serem os únicos com características semelhantes de polaridade – no entanto, enquanto a polaridade dos valores é fundada, porque os valores expressam qualidade irreais, mas objetivas, das coisas, a polaridade dos sentimentos representa vivências internas da alma que, por natureza, têm uma fundamentação parcialmente ininteligível. Vieira e Cardoso (2003) afirmam

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igualmente que os valores “surgem em dicotomias à nossa escolha” (2003: p. 3), confirmando a polaridade axiológica.

Hierarquia

Outra característica fundamental dos valores é o fato de a sua natureza e a estrutura das suas relações implicarem uma hierarquia. Por um lado, os valores admitem vários graus na sua realização, sendo possível cumpri-los em diversas intensidades, contendo, portanto, uma hierarquia interna de níveis de realização (HESSEN, 2001). Por outro lado, e talvez mais relevante, as classes de valores estão organizadas numa estrutura hierárquica que estabelece uma ordenação por via da importância de cada um em relação aos outros. Morente (1980) esclarece que esta hierarquia entre os valores pode ser compreendida com base na distância a que cada valor – e respectivo contra-valor – se situa do ponto de indiferença. Assim, quanto maior for a distância em relação à indiferença, mais importância assume esse valor e maior será a sua posição na hierarquia axiológica. Para determinar o grau de importância e a posição relativa de cada valor, Scheler (1941) fornece cinco critérios: a duração (será superior o valor que inspirar um sentimento de maior duração, entendendo esta como fenômeno temporal absoluto e não relativo, ligado à essência do valor e não ao prolongamento objetivo no tempo do seu depositário); a divisibilidade (será superior o valor que, pelo seu fracionamento, provoque o menor fracionamento entre os indivíduos que os sintam, ou que seja ilimitadamente comunicável sem sofrer divisão ou diminuição); o potencial de

fundamentação (será superior o valor que justifica outros valores, sendo inferiores os valores

que se fundamentam naquele); a satisfação (será superior o valor cuja realização produza uma satisfação mais profunda, não relacionada com o prazer sensível, mas com o prazer espiritual do seu cumprimento, e quando essa satisfação for independente do sentimento ou do prazer produzido por outro valor); e a relatividade (será superior o valor cujo sentir a que está associado menos dependa da essência dos sentidos e das leis funcionais da vida orgânica para se realizar, dirigindo-se ao puro sentimento de preferir e de amar). Com base nestes critérios, Scheler (1941) defende que é possível estabelecer uma hierarquia entre as classes de valores. Independentemente da suficiência ou eficácia destes critérios, a existência de uma hierarquia axiológica parece uma idéia consensual, tendo-se multiplicado durante o século XX as tentativas de classificação e ordenação dos valores.

Estabilidade

Os valores e a sua estrutura hierárquica apresentam, também, características de permanência independentes dos seus depositários. Sobre este aspecto, Hessen (2001) refere que “os valores não se alteram com a alteração dos objetos em que se manifestam” (2001: p. 57). Scheler (1941) adianta que a preferência manifestada por um valor traduz uma superioridade desse valor baseada na íntima relação que existe entre a essência dos valores, pelo que “a hierarquia dos valores é algo absolutamente invariável” (1941: p. 131)39.

Objetividade / Subjetividade

Uma das questões polêmicas em torno dos valores refere-se à discussão teórica que opõe quem defende a objetividade dos valores e sua independência em relação ao sujeito a quem defende, pelo contrário, uma subjetividade e um relativismo axiológico que faz depender a validade filosófica dos valores de cada indivíduo ou circunstância. Têm-se registrado ao longo da história do pensamento movimentos pendulares que oscilam entre uma posição e outra, tratando-se este de um problema ontológico central no debate sobre o que significam os valores humanos. Scheler destaca-se como um dos primeiros filósofos da modernidade a defender e fundamentar extensamente a objetividade dos valores, reagindo com agressividade argumentativa contra o relativismo de outras posições. Já no prólogo da segunda edição da sua obra mais influente publicada originalmente em 1916, O Formalismo

na Ética e a Ética Material dos Valores, Scheler adianta que “o espírito que anima a ética que aqui se expõe é de um objetivismo e um absolutismo éticos rigorosos”, classificando o seu

ponto de vista de “intuicionismo emocional” ou “apriorismo material” (SCHELER, 1941: p. 16)40. Scheler (1941) afirma que os valores são, na sua essência, independentes dos seus depositários, constituindo, em si mesmos, qualidades materiais cuja ordenação hierárquica ocorre com independência da forma sob a qual os valores se revelem. Tal como refere, “é

claro que as qualidades valiosas não variam com as coisas. Assim como a cor azul não se torna vermelho quando se pinta de vermelho uma bola azul, também os valores e a sua ordem não são afetados porque os seus depositários mudam de valor. (…) O valor da amizade não é afetado porque o meu amigo revela-se falso e me trai” (SCHELER, 1941: p. 46)41. A este respeito, o filósofo Nicolai Hartmann, com o seu livro Ethik publicado em 1926, completa a 39 Tradução livre. 40 Tradução livre. 41 Tradução livre.

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doutrina que se opõe a todo o relativismo axiológico ao aprofundar o objetivismo defendido por Scheler, transformando-o num verdadeiro ontologismo dos valores, segundo o qual os valores são considerados como algo existente em si mesmo, ou seja, como entidades ideais com existência própria e independentes das pessoas e das condições circundantes (HESSEN, 2001).

Hessen (2001) apresenta uma visão mais moderada da concepção ontológica de valor. Para o autor, o valor “é a qualidade de uma coisa, que só pode pertencer-lhe em função de um

sujeito dotado com uma certa consciência capaz de a registar” (2001: p. 50). Mas embora o

valor só seja valor para alguém e só exista por referência a um sujeito, este sujeito não se refere ao indivíduo que atribui o valor, mas ao sujeito em geral, ao sujeito humano, ou seja, àquilo que há de comum em todos os homens (HESSEN, 2001). Assim, o autor rejeita o subjetivismo que defende uma validade variável dos juízos de valor em função do sujeito que julga, alertando que o sujeito não é a medida dos valores, devendo buscar-se sempre uma validade geral para cada juízo de valor. Hessen sintetiza o seu pensamento nos seguintes termos:

“a expressão «subjetivismo dos valores» é profundamente exata, se por ela quisermos significar (…) referência a um sujeito; é, porém, inteiramente falsa, se referida à validade dos valores. Há, com efeito, uma validade objetiva, ou melhor, supra-individual dos valores. A expressão relativismo ou «relatividade» dos valores é também exata se com ela quisermos significar que na base de todo o valor e valoração está sempre, necessariamente, a ideia de uma relação com um sujeito valorante. É, porém, falsa, se entendida com relação à ideia da sua própria e intrínseca validade. Há, de fato, uma validade absoluta dos valores” (HESSEN, 2001: p. 54).

Rescher (1969) parece concordar com esta posição ao defender que os valores, embora sejam relacionais (uma vez que dependem da interação com os sujeitos), têm uma base objetiva, podendo ser avaliados por meio de critérios e padrões impessoais que podem ser ensinados e transmitidos entre indivíduos. Atualmente, o objetivismo moderado de Hessen revela uma adesão significativa tanto no campo filosófico, como, especialmente, no contexto das ciências sociais aplicadas.

Universalidade

Dificilmente se pode separar da discussão anterior sobre a objetividade dos valores o debate sobre a sua universalidade. Aqui, a questão evolui da validade objetiva dos valores

para a sua aplicabilidade, em termos idênticos, a todos os homens. A tese que contraria a defesa da universalidade dos valores radica nos princípios do relativismo axiológico. Segundo esta doutrina, todos os valores são relativos, devendo aceitar-se que cada pessoa formula os seus próprios valores, recusando atribuir qualquer tipo de validade objetiva e universal aos juízos de valor. Hessen (2001) destaca, no entanto, a contradição em que o cepticismo axiológico das teses relativistas cai ao defender a verdade da inexistência de valores absolutos, uma vez que essa defesa é, em si, já o reconhecimento implícito de que alguma coisa – como o conhecimento da verdade – constitui algo objetivamente valioso. Afirma-se assim na prática “aquilo que se nega em teoria” (HESSEN, 2001: p. 83). Mas Hessen (2001) reconhece que a objetividade e a absoluteidade dos valores podem ser mostradas, mas não demonstradas, dado os valores situarem-se num plano que nada tem de comum com o da lógica, exigindo formas de pensamento e de conhecimento diferentes. Segundo o filósofo, para aqueles que não acreditarem na espiritualidade do homem e que só virem nele o seu lado

natureza, pelo qual ele se confunde com os outros seres naturais, não poderão existir valores

espirituais, isto é, “valores dotados duma validade absoluta e transsubjetiva” (HESSEN, 2001: p. 86). Para estes, o seu naturalismo implicará sempre um verdadeiro relativismo axiológico. O autor conclui que aquele que “viver só no plano da matéria ou se achar

enfeudado a falsas doutrinas, não sendo capaz de se elevar até à esfera do Bem, do Belo e da Verdade, jamais poderá deixar de negar a objetividade e a absoluteidade dos valores”

(HESSEN, 2001: p. 88).

A universalidade dos valores está também presente em todo o pensamento de Scheler, justificado pelo princípio da sua objetividade e independência em relação aos depositários dos valores e aos sujeitos que atribuem valor. Scheler (1941) sintetiza a sua visão, afirmando que a característica essencial e mais primitiva do valor «mais alto» reside no fato de este ser o menos «relativo», sendo característica do valor «mais alto de todos» o fato dele ser um valor «absoluto», baseando-se nesta “todas as restantes conexões de essência” (1941: p. 145)42. Mais uma vez Rescher (1969) concorda com esta visão, defendendo que um valor não pode ser válido para uma pessoa e não ser para outra, constituindo esta impessoalidade dos valores “a base da sua natureza essencialmente objetiva” (1969: p. 11). Numa abordagem mais recente desta problemática e adotando um método diferente do habitual, Kidder (1994) entrevistou vinte e dois cidadãos de diversos países e regiões do mundo, com ocupações e

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responsabilidades variadas, reconhecidos por seus pares como referências de padrão ético e guardiões da consciência moral das suas comunidades. No seu estudo, Kidder propôs-se identificar, por meio dos depoimentos dos entrevistados, quais os valores que formariam um código global de ética comum a todos os homens no mundo. Embora esta sobreposição de opiniões e de discursos revele uma inevitável incoerência filosófica, representa um esforço de revisão de valores partilhados sustentado pela crença de que existem valores absolutos e universais. Esta crença em relação à universalidade dos valores está presente numa parte significativa do pensamento acadêmico atual sobre valores e tem permitido o desenvolvimento de teoria substantiva e a obtenção de resultados empíricos assinaláveis ao longo das últimas décadas.

Embora a compreensão da natureza essencial dos valores seja facilitada com a análise das suas propriedades fundamentais, dificilmente o estudo aplicado dos valores humanos pode prosseguir sem uma definição precisa do seu significado e uma classificação que permita distinguir e ordenar os diferentes tipos de valor. Apesar desta classificação objetiva contrariar os princípios filosóficos que rejeitam a definição de valor em termos do que ele é – dado o valor não possuir esta categoria ontológica –, a sua definição exata apresenta inquestionáveis vantagens práticas e operacionais, quando se pretende aplicar a Teoria dos Valores – e a Ética em particular – a realidades concretas da conduta humana. Como síntese da reflexão desenvolvida nesta seção, com base nas propriedades filosóficas dos valores inferidas a partir do pensamento de Scheler (1941), Hessen (2001), Morente (1980) e Rescher (1969), pode definir-se valores como qualidades positivas ou negativas atribuídas pelos sujeitos aos

objetos, independentes dos seus depositários e universalmente válidas para todos os homens, que se revelam por uma preferência individual deduzida com base numa hierarquia estável de valores.