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2.2. VALORES HUMANOS

2.2.3. Classificação Geral dos Valores Humanos

A palavra “valor” pode assumir uma ampla variedade de significados, no entanto, foi já esclarecido que algo só tem valor na medida em que o tenha para alguém (HESSEN, 2001), tratando-se portanto de um conceito dependente e estritamente inerente à condição humana. Por este motivo se adota a designação de Valores Humanos para identificar quaisquer valores que o sujeito humano atribua a qualquer objeto, seja este uma coisa real, uma idéia, um homem, uma opinião ou um ato. Em seguida são apresentadas definições e classificações de Valores Humanos que influenciaram e ainda influenciam o pensamento contemporâneo sobre o tema, a fim de sustentar teoricamente uma proposta agregadora das diferentes concepções.

No seu livro de 1937, Filosofia dos Valores, Hessen percorre os paradigmas fundamentais da teoria axiológica e desenvolve um pensamento articulado sobre o sentido ontológico, antropológico e teológico dos valores. Evitando a síntese incompleta de uma definição única e definitiva, Hessen fornece, no entanto, algumas concepções parciais que ilustram a sua crença geral. Destas, podem destacar-se a idéia de que “será valor tudo aquilo

que for apropriado a satisfazer determinadas necessidades humanas” (HESSEN, 2001: p. 46)

e a noção de valor como “qualidade de uma coisa, que só pode pertencer-lhe em função de

um sujeito dotado com uma certa consciência capaz de a registar” (HESSEN, 2001: p. 50).

Com estes princípios, Hessen estabelece uma relação intrínseca dos valores com os sujeitos que os pensam e com as necessidades humanas que a sua realização satisfaz43. No mesmo livro, Hessen propõe uma classificação dos valores que busca sintetizar os consensos alcançados em torno do conceito até àquela data. Embora o mesmo não se verifique na psicologia ou nas ciências sociais, a tradição filosófica evita as tentativas de sistematização dos valores humanos. E assim, tal como as restantes classificações, e em especial as que têm origem na filosofia, a de Hessen não identifica os valores propriamente ditos, desenvolvendo, em vez disso, as grandes categorias nas quais se incluem os valores que caracterizam a vivência humana. As suas propostas são ainda hoje reconhecidas como válidas e representam uma importante referência da axiologia moderna. Hessen (2001) propõe uma classificação dos valores a partir de dois ângulos: formal e material. No primeiro, são distinguidas categorias

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A concepção de Hessen parece ter adesão do pensamento filosófico posterior, como se verifica no caso de Adolfo Sánchez Vázquez que, no seu livro Ética, originalmente publicado em 1969, defende que o valor “não é propriedade dos objetos em

si, mas propriedade adquirida graças à sua relação com o homem como ser social” (VÁZQUEZ, 2005: p. 141). Este

reconhecimento da subjetividade dos valores, embora rejeitando a sua relatividade absoluta, constitui um dos traços mais relevantes da herança filosófica de Hessen.

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relacionadas com características gerais dos valores que estes podem assumir em função da sua natureza. Estas categorias formais, descritas na Figura 7, são a expressão de algumas das propriedades gerais dos valores mencionadas anteriormente.

Do ponto de vista material, os valores são agrupados em categorias que evocam a sua essência propriamente dita e o fim a que respeitam. Em termos materiais, Hessen (2001) distingue duas classes de valores, considerando que o sujeito humano é um ser dotado de sensibilidade e de espírito: os valores sensíveis e os valores espirituais. O autor esclarece que “os primeiros referem-se ao homem enquanto simples ser da Natureza” e os segundos “ao

homem como ser espiritual” (HESSEN, 2001: p. 91). A Figura 8 sistematiza a classificação

material de Hessen.

VALORES

(do ponto de vista Formal)

Positivos e Negativos

(dependendo da polaridade atribuída pelo sujeito)

Pessoais e Reais

(que pertencem a pessoas ou aderem a coisas)

Autônomos e Dependentes

(fins em si mesmos ou meios para outros valores)

Figura 7. Classificação Formal dos Valores (adaptado de Hessen, 2001)

VALORES

(do ponto de vista Material)

Sensíveis

Espirituais

Figura 8. Classificação Material dos Valores (adaptado de Hessen, 2001) Hedônicos (do prazer sensível) Vitais (de suporte à vida biológica) de Utilidade ou Económicos

(valor instrumental dos bens que satisfazem necessidades vitais)

Lógicos (do conhecimento ou procura da verdade)

Éticos (restritos apenas a pessoas) Religiosos (eixo dos outros valores) Estéticos (das aparências)

Reconhecendo a existência de uma hierarquia que estabelece uma ordenação das classes de valores em função da sua importância relativa, Hessen afirma três princípios gerais acerca de uma possível escala axiológica subjacente à sua classificação: primeiro, os Valores Espirituais prevalecem sobre os Valores Sensíveis; segundo, os Valores Éticos prevalecem sobre os Valores Estéticos e Lógicos; e por fim, os Valores Religiosos assumem a posição cimeira da escala, dado constituírem o fundamento último de todos os outros valores. Hessen recorre aos critérios de Scheler (descritos na seção 2.2.2.) para justificar estes princípios. No entanto, não é clara a relação hierárquica que Hessen estabelece entre os Valores Estéticos e os Valores Lógicos, ficando igualmente por esclarecer a ordenação dos Valores Sensíveis. Estas indefinições parecem não existir na proposta clássica de Scheler para a ordenação dos valores. De acordo com Morente (1980), Scheler define seis classes de valores – às quais Hessen aderiu quase integralmente – e adianta uma hierarquia também largamente coincidente com o pensamento de Hessen. A Figura 9 apresenta graficamente a proposta de Scheler e mostra a hierarquia definida pelo afastamento de cada classe de valores em relação ao ponto de indiferença, tal como descrita por Morente.

A Figura 9 evidencia a concepção filosófica de valor, segundo a qual a sua qualidade fundamental é não ser indiferente (MORENTE, 1980), assumindo maior importância relativa os valores cuja não realização (ou violação) tem um custo mais elevado ou implica um sacrifício mais profundo das crenças individuais. Como exemplo, Morente refere que entre salvar a vida de uma criança (que é uma pessoa e, portanto, contém valores morais supremos) e deixar que se queime um quadro, será sempre preferível deixar que o quadro seja destruído,

V. Religiosos V. Éticos V. Estéticos V. Lógicos V. Vitais V. Úteis 0

Figura 9. Classificação e Hierarquia dos Valores segundo Scheler

(baseado em Morente, 1980)

+ -

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o que demonstra a superioridade do Valor Ético sobre o Valor Estético. Tal como Hessen, Scheler também considera que quem tenha a intuição dos Valores Religiosos, situa-os no topo da hierarquia em relação aos demais (MORENTE, 1980), estando menos disposto a sacrificá- los em nome de qualquer outro. Apesar da rigidez teórica das propostas de Hessen e de Scheler, decorrente de uma pretensão normativista do seu pensamento, as contribuições destes autores facilitam o entendimento do significado dos valores humanos e fornecem os princípios elementares da sua articulação. Das suas idéias, pode inferir-se a importância primordial dos Valores Éticos na escala de valores humanos, apenas ultrapassada pela superioridade absoluta dos Valores Religiosos. Esta relevância essencial da Ética no âmbito dos valores é justificada por nela se incluírem as dimensões da vida em sociedade mais críticas para o bem-estar coletivo e para a realização humana.

Ainda no campo da filosofia, mas numa linguagem menos influenciada pelo absolutismo da visão teológica dos valores presente em Scheler e em Hessen, Rescher (1969) define valores como frases ou palavras “capazes de racionalizar a ação [humana] por meio

da sugestão de uma atitude positiva dirigida a um estado de coisas benéfico” (1969: p. 9)44. O

autor enuncia seis princípios que podem ser adotados como critério para a classificação dos valores, alertando para a ainda problemática ausência de padrões amplamente aceitos que permitam essa classificação. Os seis critérios de Rescher (1969) podem ser resumidos nos seguintes termos:

a) Classificação segundo o Subscritor do Valor

(distinguindo, por exemplo, os valores pessoais, os valores profissionais ou os valores nacionais)

b) Classificação segundo o Objeto valorizado

(distinguindo os valores das coisas, os valores ambientais, os valores relativos a características pessoais, a características de um grupo ou a características de uma sociedade)

c) Classificação segundo o Benefício gerado

(distinguindo os valores materiais, econômicos, morais, sociais, políticos, estéticos, religiosos, intelectuais, profissionais ou sentimentais)

d) Classificação segundo o Objetivo em questão

(distinguindo, por exemplo, os valores de troca, valores de uso ou valores de cura)

e) Classificação segundo a Relação entre Quem Subscreve e Quem Beneficia

(distinguindo os valores egocêntricos e os valores altruístas)

f) Classificação segundo o Impacto do Valor nos Outros Valores

(distinguindo os valores instrumentais e os valores intrínsecos ou finais)

44

Os princípios gerais de Rescher representam critérios exaustivos para uma classificação formal dos valores, no entanto, o autor evita a sua sistematização do ponto de vista material, deixando em aberto, tal como Scheler e Hessen, o debate sobre quais são e quantos poderão ser efetivamente os valores humanos. Embora admitindo que as concepções apresentadas são, em parte, um produto de circunstâncias históricas e da visão teocêntrica dos seus autores, a consistência filosófica do seu pensamento e da sua argumentação constitui, ainda hoje, uma contribuição inegável para a compreensão do significado dos valores humanos. Assim, com base nestes fundamentos filosóficos, propõe-se a seguinte classificação geral dos Valores Humanos Básicos:

Na Figura 10 são identificadas sete classes fundamentais de valores humanos, agrupadas em duas grandes categorias: os valores espirituais e os valores sensíveis. Apesar da

O que buscam: o bom Objeto: a conduta humana na

interação social

O que buscam: a verdade Objeto: o conhecimento Valores Religiosos Valores Hedônicos Valores Práticos Valores Lógicos Valores Estéticos Valores Éticos Valores Vitais

O que buscam: o sagrado Objeto: a espiritualidade, a idéia de

Deus e o significado da vida

O que buscam: o belo

Objeto: as coisas aparentes, as artes

e a expressão criativa

O que buscam: um modo de vida

Objeto: o papel do ser humano no mundo e as

condições da sua existência coletiva

O que buscam: o prazer Objeto: sensações físicas

O que buscam: a sobrevivência Objeto: necessidades primárias que

asseguram vida biológica

V A LO R ES ES P IR ITU A IS V A LO R ES S EN S ÍV EI S

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disposição gráfica, não se propõe nesta classificação uma hierarquia rígida de valores, mas apenas se reconhece a distinta função dos valores espirituais e dos valores sensíveis45. Assim, enquanto os segundos caracterizam o homem como ser da natureza, os primeiros permitem distingui-lo dos outros seres, invocando mecanismos de análise exclusivamente humanos, tais como a razão, a emoção, a consciência de si e da transcendentalidade. Nestes, distinguem-se os Valores Religiosos (ligados às crenças sobre a espiritualidade e o sentido transcendente da vida), os Valores Éticos (ligados à procura do bem e da justiça nas relações humanas), os

Valores Estéticos (ligados à apreciação da beleza e da perfeição das formas aparentes e das

manifestações artísticas), os Valores Lógicos (ligados à busca racional da verdade) e os

Valores Práticos (ligados à intervenção do ser humano no mundo).

Os Valores Práticos reúnem as preferências individuais sobre a forma como a ação humana deve interferir no mundo. Estão ligados à visão de cada pessoa sobre o papel social do ser humano, projetada na forma como ela própria se vê enquanto agente de mudança e como valoriza a harmonia de crenças e comportamentos em sociedade. Estes valores são

Práticos porque se manifestam em estilos de vida e em modos de estar perante o mundo e

perante os outros – tais como a atitude empreendedora que valoriza a independência e a autodeterminação do espírito ou a atitude conservadora que valoriza a conformidade com normas sociais e o respeito pela tradição. A postura perante o risco, a predisposição para a transgressão ou a resistência à mudança são manifestações de Valores Práticos.

A segunda classe de valores – os valores sensíveis – inclui os Valores Hedônicos (ligados à busca do prazer físico, inerente à condição natural do ser humano) e os Valores

Vitais (ligados à satisfação de necessidades primárias de sobrevivência). Esta classe refere-se

a valores de ordem inferior, no sentido em que são partilhados com a generalidade dos seres vivos animais, são em geral indiferenciados entre seres e, embora sejam condição necessária para o desenvolvimento espiritual do ser humano, não são condição suficiente que sequer assegure a vontade original desse desenvolvimento. Por isto, os Valores Espirituais constituem uma ordem axiológica superior, mais exigente e resistente perante a sedução dos prazeres imediatos e mais próxima do pleno potencial de realização humana.

45

Segundo Scheler (1941), o homem é um ser superior aos outros na medida em que realiza valores independentes dos biológicos (ou vitais), cuja categoria ôntica é essencialmente superior: são eles os valores espirituais e os valores religiosos. Assim justifica o filósofo a importância da hierarquia axiológica. Ela esclarece o que distingue o homem dos outros seres: a espiritualidade.

A classificação proposta não pretende esgotar as classes axiológicas, mas apenas cobrir as suas dimensões essenciais, sintetizando as contribuições da filosofia, evitando a rigidez hierárquica de concepções anteriores e ampliando o significado de algumas classes. É no contexto desta classificação que as abordagens desenvolvidas em seções posteriores sobre valores específicos devem ser entendidas.

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