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4 CONFIGURAÇÕES DAS HERANÇAS EDUCATIVAS DE MÃE PARA FILHA

5.1 A necessidade dos genogramas e de outras perspectivas de análises

As narrativas, acompanhadas de uma riqueza de detalhes, não obedeceram uma linearidade temporal, mas uma ordenação pessoal, quem sabe pela distância temporal que as separa dos fatos lembrados. “Essa ordenação obedece uma lógica afetiva cujos motivos ignoramos; enfim, recontar é sempre um ato de criação” (BOSI, 2003, p. 62). Essa lógica exigiu um mapeamento dos depoimentos,56 nomeado de genograma por Bowen que desenvolveu sua base teórica. A investigação, estruturação e sistematização do uso do genograma como instrumento na terapia familiar, e a ampliação do seu uso em outras áreas da saúde foi de McGoldrick (CERVENY; DIETRICH, 2008).

Das funções do genograma, desenvolvidas por Cerveny e Dietrich (2008) para a prática terapêutica, destaco aquelas pertinentes ao seu uso no contexto dessa tese: “faz parte do processo de conhecimento da família; [...] é um mapa das relações familiares; permite observar os padrões repetitivos das gerações passadas” (CERVENY; DIETRICH, 2008, p. 43). Esses três elementos colaboram para compreensão das heranças educativas, ao permitir conhecer a família de origem das mulheres, mapear a família que compuseram, cada filha em específico e a respectiva família, acrescidos da observação do aspecto da escolarização, as variações de aproximação e distanciamento entre mães e filhas.

Para análise dos genogramas, busco inspirações no princípio da genealogia (FOCAULT, 2005) que não pretende voltar ao tempo para reestabelecer a continuidade da história, mas procura restituir os acontecimentos na sua singularidade, a partir da diversidade e da dispersão, do acaso dos começos e dos imprevistos.

Esse segundo movimento da pesquisa busca inspiração na perspectiva genealógica foucaultiana, tomando ciência tardiamente, mas em tempo de atribuir ao primeiro movimento da pesquisa o status de inspiração na perspectiva arqueológica. Num dar-se conta de que carregava a caixa de ferramentas de Foucault (1999, 2005, 2008), sem vasculhá-la e experenciá- la como pretendia e/ou deveria. Acredito que pelo recorte e pelo foco, alguns instrumentos foram imprescindíveis, como a análise do discurso. Outros instrumentos inspiradores, como a genealogia, e outros, ainda, reveladores, como a arqueologia.

Na arqueologia reencontram-se os elementos de arché (ideia de começo, de princípio, da emergência dos objetos de conhecimentos) e de arquivo (registro desses objetos) visando o

56 Não estava previsto na metodologia da pesquisa, surgiu por uma necessidade advinda no momento da produção e análise dos dados.

presente. Coloca a historicidade dos objetos de saber, problematiza nosso pertencimento, e ao mesmo tempo a um regime de discursividade dado e uma configuração de poder (REVEL, 2005). A arqueologia se movimenta para entender a história dos discursos.

A perspectiva da arqueologia, nesta tese, indica que se trata de um procedimento de escavar verticalmente as camadas descontínuas de discursos já pronunciados sobre o analfabetismo de mulheres, a fim de trazer à luz fragmentos de ideias, conceitos, discursos talvez já esquecidos. A partir desses fragmentos pode-se compreender as epistemes antigas ou mesmo a nossa própria epistemologia e entender como e porque as heranças educativas se aproximam e também se distanciam deste século.

Outra aproximação da perspectiva arqueológica é que não se limitam aos acontecimentos discursivos, não se confinam ao próprio discurso. Buscam, também, as articulações entre as práticas discursivas e toda a outra ordem das coisas que se pode chamar de práticas não discursivas, tais como condições econômicas, sociais, culturais (VEIGA-NETO, 2014).

A genealogia de Foucault é baseada em três possibilidades de domínios: uma ontologia histórica de nós-mesmos em nossas relações com a verdade, que permite nos constituirmos como sujeitos de conhecimentos; nas nossas relações com um campo de poder, que permite nos constituirmos como sujeitos que agem sobre os outros; e em nossas relações com a moral, que permite nos constituirmos como agentes éticos (REVEL, 2005).

A perspectiva genealógica continua as análises sobre os saberes, os discursos continuam sendo lidos e analisados, mas com um diferencial, a constante tensão com práticas de poder. Seu caráter ascendente, pergunta, de onde veio? E não se propõe a fazer outra interpretação, mas sim uma descrição histórica das muitas compreensões. Consegue talvez, desnaturalizar enunciados que são repetidos como se tivessem sido descobertas e não invenções. Sua característica de emergência, permite proceder à análise histórica das condições políticas de possibilidades dos discursos que instituíram o objeto e pergunta: como e de que maneira em que ponto surge? (VEIGA-NETO, 2014).

O que muda da arqueologia para a genealogia é o procedimento descritivo da primeira para o procedimento explicativo da segunda. Quanto à ênfase, a arqueologia examina o momento e a genealogia examina o processo. E um terceiro movimento metodológico, denominado estratégia, por Foucault, foi uma tentativa de ligar a arqueologia à genealogia, priorizando a segunda. O caráter positivo dessa analítica foucaultiana é que ela não é desenvolvida para lastimar ou acusar o objeto analisado, mas para compreendê-lo naquilo que ele é capaz de produzir em termos de efeitos (VEIGA-NETO, 2014).

Nesta seção também opero com a análise do discurso na perspectiva dos enunciados e afirmo que o mais importante é estabelecer as relações entre os enunciados e o que eles descrevem, para a partir daí compreender a que poder(es) atendem tais enunciados, qual/quais poder(es) os enunciados ativam e colocam em circulação. É ler o texto no seu volume e externalidade (monumental) e não na sua linearidade e interioridade (documental).

Metodologicamente, é ao mesmo tempo mais fácil e mais difícil. Mais fácil porque não envolve todo um conjunto de operações linguísticas e analíticas que as demais análises do discurso exigem. Mais difícil porque é preciso se “ater ao que efetivamente é dito, apenas à

inscrição do que é dito” (DELEUZE apud VEIGA-NETO, 2014, p. 98). A análise foucaultiana

é capaz de mostrar coisas que talvez as outras análises não o sejam, na medida que nem assume a lógica interna do que está sendo analisado, nem parte de alguma metanarrativa transcendente ao próprio discurso (VEIGA-NETO, 2014, p. 106).

Atrevo-me na análise do discurso, nessa perspectiva dos enunciados, com inspiração arqueológica e genealógica foucaultiana, desenvolvendo argumentos que sustentem o título dessa seção, e o aprofundamento do foco desta tese, sobre inscrição de heranças educativas de mães para filhas. Inicio com apresentação e análise dos genogramas demostrando as configurações familiares e como as heranças educativas se reconfiguram de mãe para cada uma das filhas.

O conceito de configuração social está fundamentalmente ligado a uma antropologia da interdependência humana, que considera os indivíduos, antes de tudo, como seres sociais que vivem em relações de interdependência, ocupando lugares em rede de relações de interdependência, e com isso possuindo capitais ou recursos ligados a esses lugares. Ou seja, uma configuração social pode ser definida como o conjunto dos elos que constituem uma parte da realidade social concebida como uma rede de relações de interdependência humana (LAHIRE, 2008). Esses lugares na rede de relações de interdependência interferem no movimento da inscrição das heranças educativas das mães para com as filhas.

Essa parte específica da investigação sobre heranças educativas, de certa forma, destacada no genograma para constituir-se objeto de análise, pode ser considerada como trechos escolhidos de configurações mais amplas. Um(a) pesquisador(a) não pode reconstruir tudo, inclusive são múltiplos elos invisíveis, do presente, do passado e das perspectivas de futuro (LAHIRE, 2008). São múltiplas as relações com outras práticas discursivas, que não pertencem à constelação familiar, mas confluem na constituição dos sujeitos. Nessa perspectiva, nomeio de reconfigurações essa possibilidade de não repetição dos elementos originais da configuração familiar das mulheres.

Para compreender as reconfigurações expressas no genograma é necessário acompanhar os símbolos conforme as legendas: na Figura 3 apresento os símbolos básicos de representações da condição dos sujeitos quanto ao sexo, tipo de filiação, situação de gravidez, aborto e falecimento.

Figura 3 – Símbolos do Genograma

Fonte: Genopro (2016).

Na Figura 4 faço referência ao destaque atribuído às mulheres participantes da pesquisa e suas respectivas filhas para localizá-las na rede de relações da constelação familiar.

Figura 4 – Destaque às mulheres da pesquisa

Fonte: Elaborado pela autora.

Na Figura 5, que demonstra as características dos relacionamentos familiares, utilizei apenas o traçado contínuo, que representa casamento, mesmo havendo outras possibilidades nos símbolos padrões do genograma. Como não entrei no mérito da formalização das uniões, o traçado casamento indica que há uma relação conjugal. Os rompimentos foram representados conforme as expressões utilizadas pelas mulheres, separada e divorciada, também sem entrar no mérito da formalização.

Figura 5 – Relacionamentos familiares

Fonte: Adaptado pela autora de Genopro (2016).