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4 CONFIGURAÇÕES DAS HERANÇAS EDUCATIVAS DE MÃE PARA FILHA

5.3 Reaproximação da pesquisadora e, enfim, a entrevista com Dalva

Foram vários os encontros com Dalva que antecederam a entrevista, no supermercado, na igreja, na rua, até que fui à sua casa, que fica no mesmo bairro que resido, para agendar a entrevista. Inclusive, de tantos encontros, o dia que fui para agendar já achou que iria realizar a entrevista. Convidou para entrar, e mesmo em meio ao preparo do almoço, disposta, já foi falando: “procurei dar para as filhas o que eu não tive”. Expliquei que se tratava do agendamento, e que voltaria no dia e horário que ficasse melhor para ela. Agendamos para o dia seguinte, pela manhã, pois à tarde ela teria compromissos na igreja. Ressaltou que iria adiantar suas tarefas, para me receber, pois ela assumiu um compromisso de servir as refeições para uma filha da vizinha, os pais foram morar no interior e ela ficou sozinha na cidade, e como

trabalha fora, não tem como cozinhar. E já que faz almoço para ela e o companheiro, não custa ajudar.

Comentou que estão aguardando a efetivação da aposentadoria do seu companheiro, percebido como processo moroso, de acordo com o que pude observar. Criticou o atual governo, e a conjuntura da corrupção, e desabafou que “é o povo que paga a conta, eles roubam, e a gente que paga”. Mas que encontram formas de “ir se virando, tem que dar um jeito”, momento em que mostrou os artesanatos em crochê, que restaram de sua produção e vendas de Natal. Comprei tapetes para cozinha, para valorizar o seu trabalho e por gostar de peças de crochê (elas me conectam, afetivamente, com as mulheres de minha família, avó, mãe, tias, irmãs...). Também vende chinelos, produzidos por sua cunhada, e diz que não teria paciência para fazê-los por isso apenas ajuda a cunhada a vender. Na sala e na cozinha de sua casa tem espalhadas peças de crochê multicoloridas, produzidas com o aproveitamento dos “restos dos barbantes das peças que fiz para vender”.

Na manhã seguinte, quando cheguei ela me esperava lá fora, em pé, vestida como se fosse sair, diferente do dia anterior que fui sem avisar. O companheiro estava sentado, próximo e por ali ficou durante toda a entrevista, participando, em muitos momentos quando solicitado por ela para confirmar algum dado. Entramos e percebi que o mate estava pronto, novinho, foi servido após as explicações sobre a pesquisa: leitura e assinaturas do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), leitura de sua história de vida já sistematizada no primeiro movimento da pesquisa. Inclusive, percebi um encantamento emocionado, enquanto fiz essa leitura, lhe expliquei porque lhe atribuí o nome fictício Dalva, remetendo ao trecho da primeira entrevista em que ela diz que gostaria de “subir mais alto, não chegar a ser uma professora”. Ela comentou que tem uma grande amiga com esse nome, e concordou que poderia ser esse, mesmo tendo disponibilizado outros nomes que constam na música Cunhãs, de Karine Cunha, ao lhe mostrar a capa do projeto de tese. Ela também não escolheu os nomes fictícios para suas filhas, deixando para mim essa tarefa.

Comentou que no dia anterior, ao agendarmos a entrevista, ela ligou para as filhas e o filho para saber até que série tinham estudado, para ter dados mais precisos. “Prá recordar na memória”. Fiquei emocionada com o comprometimento de Dalva com a pesquisa, ela se preparou em todos os sentidos, desde sua apresentação pessoal, o ambiente, checar com as filhas (e filho) os dados sobre sua escolarização, os presentes à pesquisadora. Deu a impressão de que vinha se preparando desde o nosso primeiro contato e não de um dia para o outro.

Próximo ao sofá, no qual sentei, uma mesinha com destaque à imagem de Nossa Senhora Aparecida e as revistas das Mãos ensanguentadas de Cristo. Quando estava saindo da entrevista, ganhei uma das revistas, “leva, a senhora que sabe ler, leva prá ler”. Explicou como preencher uma ficha com os meus dados, e os meus pedidos de oração e graça, trazer de volta para ela que ela coloca no correio, para me associar e passar a receber mensalmente a revista, o valor é uma doação espontânea, não está estipulado. Contou que ela e o marido se curaram com a novena das Mãos ensanguentadas de Cristo, que posso fazer para as crianças, é muito poderosa.

Fui presenteada com vidros de conserva, um de picles e o outro de pepinos. Também produção sua. Mas “só para a família”, não faz para vender. Enfim, fiquei de voltar para devolver os vidros e a ficha da novena com os pedidos de oração e graça. Assim como aconteceu com Isaura, foi a entrevista ideal, “aquela que permite a formação de laços de amizade [...] Se não fosse assim, a entrevista teria algo semelhante ao fenômeno da mais-valia, uma apropriação indébita do tempo e do fôlego do outro” (BOSI, 2003, p. 61).

Dalva, aos 68 anos de idade, é mãe de três filhas e um filho e avó de sete netos e três bisnetos. Está casada há 44 anos. Aposentou-se, após os 19 anos de trabalho como servente na Prefeitura Municipal de Santo Augusto. A escolarização foi interrompida aos nove anos, com a morte de seu pai, momento em que ela e os irmãos maiores tiveram que trabalhar na cidade para ajudar a mãe. Dos sete irmãos, apenas dois estudaram, porque foram morar com os tios. Do segundo casamento de sua mãe tem mais seis irmãos, todos se alfabetizaram.

Sua filha mais velha, Cris (47 anos) estudou até a oitava série, e ao completar quinze anos interrompeu a escolarização em função do casamento. Trabalhou como doméstica, mas por questões de saúde, agora é dona de casa. Teve uma filha (neta C) que chegou a iniciar um curso superior, mas interrompeu ao engravidar. A neta C tem uma filha (bisneta C) com sete anos de idade e estava grávida do segundo filho ou filha. Interessante registrar que Cris gostaria de ter tido mais filhos, mas seu marido não queria a vê-la sofrer dores, novamente.

A filha Dara (43 anos) cursou até o segundo ano do Ensino Médio, interrompendo aos 16 anos, quando casou. O esposo, na época, queria que ela estudasse, tinha condições de pagar os estudos, inclusive. Mas ela optou por interromper, e segundo Dalva “hoje ela se arrepende”. Dara separou do esposo e atualmente tem um companheiro. Produz e vende cuca, bolacha e pães. Teve um casal de filhos, neto D (23 anos) e a neta D (22 anos). A neta D estudou até a sétima série, interrompendo a escolarização também pelo casamento. O neto D estudou até a quarta série e interrompeu os estudos por preguiça de estudar. Segundo Dalva, “é muito

inteligente em computação e eletrônica, fez curso e trabalha, mas preguiçoso para o estudo”. Ele casou-se aos 19 anos e tem uma filha.

Figura 7 – Genograma Dalva

Fonte: Entrevista narrativa e sistematização em Genopro (2016).

Essa relação frágil com a escola pode ser fruto de vários acidentes de percurso: reprovações, sentimento de discriminação pela professora, mudanças de estabelecimentos de

ensino e interrupções. Participar da vida ativa, seja compondo sua própria família e/ou ingressando no mundo do trabalho, predispõe a outros interesses e ao investimento do aluno em ocupações que podem competir com aquele voltado para a escola. Além disso, a escola da qual o aluno obtém resultados não satisfatórios pode ganhar um lugar marginal diante de outras solicitações, como o lazer e a conquista de maior independência dos pais, mediante a obtenção da sua própria renda e constituição de sua própria família (ZAGO, 2011).

Há duas questões de gênero instigantes, a filha mais velha, Cris, não ter tido mais filhos pela sensibilidade do seu esposo ao não querer ver sua esposa passar pelas dores do parto e o primeiro esposo de Dara, que insistiu para que ela prosseguisse os estudos após o casamento, oferecendo-se para custeá-los, ainda assim fez opção de parar. As duas situações se opõem ao senso comum que culpabiliza o marido por querer ter mais filhos do que o desejado pela mulher e pela interrupção dos estudos. Considero importante adotar esse olhar da não vitimização da mulher, e sem generalizações, não atribuir aos homens à responsabilidade pela direção de suas trajetórias de estudo, trabalho e procriação.

A filha mais nova de Dalva, Julia (36 anos), diferente das outras duas irmãs, casou-se após concluir o Ensino Médio, e tinha o desejo de fazer faculdade, mas na época o Ensino Superior mais próximo era na Unijuí/Ijuí e não tinham condições de custear. Ela chegou a trabalhar como assistente administrativa de uma escola particular.

Prá ver que o estudo dela foi mais, fez uns cursinhos na ACISA, do Sebrae, e fez outros cursos, continuou fazendo os cursinhos. A vontade dela era continuar estudando. Mas agora vem mais uma filha. Já são três filhos. Mas ela tem vontade (Dalva, 68 anos).

Aliás, a vontade é o que a diferencia das outras irmãs, segundo Dalva: “surgiu da vontade dela, querer estudar, porque se não tem vontade não adianta”. Pesquisadora: você acha que ela vendo a história das irmãs, pode ter influenciado para que ela fizesse diferente? Dalva: “Eu acho que sim”.

Ela teve mais oportunidade de estudo. Por causa que as outras começavam a estudar e logo arrumavam namorado e casavam. Essa não, já quis aperfeiçoar mais o estudo prá frente. Tentou mais o estudo, essa aí é uma parte que foi bem diferente das outras (Companheiro).

Interessante observar que a vontade da filha mais nova (Julia, 36 anos) foi determinante diante das oportunidades. Dalva faz uma comparação com a situação da filha Dara (43 anos):

Dara teve a oportunidade de estudar, a mãe queria, o pai queria, o marido que ela arrumou também queria, mas ela que desistiu. Foi escolha dela. Ela achava que não precisa, agora hoje, ela acha que podia ter continuado, seria mais fácil até dela achar um serviço (Dalva, 68 anos).

Por outro lado, a vontade de Julia dar continuidade aos estudos no Ensino Superior não foi suficiente para concretizar seu desejo, por dificuldades financeiras. O que permite concluir que vontade e oportunidade são dois lados da mesma moeda. E compreende-se por oportunidade as condições favoráveis para a realização de algo. E em várias narrativas aparece especificada como oferta de cursos (preferencialmente públicos e gratuitos), roupa e calçado (“de marca”, como se refere Isaura), material escolar, distância possível entre escola e residência ou transporte escolar público. E poderia acrescentar toda gestão administrativa e pedagógica (tanto macro quanto micro) da educação, a formação de professores, o currículo escolar. Já, por vontade, compreende-se o querer, o ânimo, a determinação e a firmeza de realizar algo, atingir os seus objetivos. Na falta de uma delas, oportunidade e/ou vontade, em se tratando de escolarização, os processos, aqui analisados, foram interrompidos.

A noção de oportunidade, aqui, aparece articulada com a imprevisibilidade (sem projeto inicial de escolarização, tudo muito incerto no ponto de partida), aleatoriedade (segue conforme as possibilidades do momento) e ainda com a apreensão de outras referências de mundo distintas do universo familiar (VIANA, 2011). Mesmo nessa fragilidade a filha mais nova de Dalva, Julia (36 anos) teve êxitos escolares iniciais que atraíram êxitos subsequentes, entrando numa lógica de “sucesso”.

Nesse sentido, o êxito escolar inicial – mas também os intermediários – constituíram- se como circunstâncias produtoras de sentidos, disposições e práticas que tenderam a reforçá-lo, e se transformaram numa base importante, embora insuficiente por si só, para a continuidade dos estudos (VIANA, 2011, p. 51).

As duas filhas mais velhas, Cris (47 anos) e Dara (43 anos) segundo Dalva, tiveram oportunidade, mas faltou vontade, optaram pelo casamento. A filha mais nova, Julia (36 anos) teve oportunidade e vontade que lhe possibilitou concluir o Ensino Médio. A vontade de prosseguir os estudos no nível superior não foi suficiente para superar a falta de condições financeiras.

O diferencial na escolarização da filha mais nova, em relação às irmãs mais velhas, é avaliado por Dalva e seu companheiro, como vontade. Viana (2011) concorda que a autodeterminação é condição sine qua non de produção de sobrevida escolar nos meios

populares. Sem um projeto de estudos a longo prazo, as etapas intermediárias do processo assumiram uma importância decisiva enquanto momentos de produção e de realização dessa autodeterminação.

As irmãs, na compreensão de Dalva, atribuem a uma dádiva divina o caso de Julia: “Daí as outras duas mais velhas falam: – a Julia caiu do céu ela tem tudo” (Dalva, 68 anos). No olhar dos pais percebe-se o princípio da meritocracia. Portes (2011) acredita que há um trabalho da família mesmo nos casos em que aparece uma conquista individual. O trabalho escolar pode ser reconhecido como todas aquelas ações empreendidas pela família no sentido de assegurar a entrada e a permanência do filho no interior do sistema escolar, de modo a influenciar a trajetória escolar do mesmo. Esse trabalho se dá num tempo próprio, estabelecido pelas condições materiais de existência e da constituição histórica das famílias das camadas populares, quase sempre marcado pelo desconhecimento da estrutura e do funcionamento dos sistemas escolares, além da ausência de um capital escolar (PORTES, 2011).

Contribuiu, também, o contexto histórico em que se escolarizou Julia (36 anos) pois já haviam outras configurações discursivas62 traduzidas em políticas públicas. Mas o conjunto de circunstâncias atuantes que legitimam e dão visibilidade ao trabalho escolar empreendido pelas famílias populares, defendido por Portes (2011) auxiliam para entender o sucesso do percurso escolar de Julia em relação ao de suas irmãs: a presença da ordem moral doméstica, a atenção para com o trabalho escolar da filha, ao esforço para compreender e apoiar a filha, a presença do outro na vida da estudante e a aproximação dos professores, a busca de ajuda material e a existência da importância de um grupo de apoio no interior da escola.

Esse conjunto de circunstâncias descontrói o mito da meritocracia, aqui compreendido como um valor abstrato universal que precisa ser questionado, pois parece ter partido de uma definição abstrata, excluída das circunstâncias sociais e materiais da vida das pessoas (CHALHOUB apud FILHO, 2017).

Um elemento marcante na vida das filhas e netas de Dalva é o casamento e a gravidez. As duas filhas mais velhas (Cris e Dara) e as respectivas filhas (netas C e D) interromperam a escolarização por esses motivos. Já a filha mais nova (Julia), que concluiu o Ensino Médio antes do casamento, tem uma filha (neta J) com quinze anos que atualmente cursa o Ensino Médio. O filho, que é o penúltimo na ordem dos nascimentos, também cursou até o segundo ano do

62 Discutidas na seção 3.

Ensino Médio, interrompendo aos 19 anos ao engravidar a namorada e casar. Trabalha com retífica de motores, e tem uma filha de 15 anos que é estudante.

Essa situação me permite reforçar o argumento sobre as heranças educativas, no contexto da minha tese, que quanto maior a escolarização das mães e pais, maior é o tempo que as filhas e filhos permanecerão na escola.

Um dia tinha de chegar em que contaria estas coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô berbere, vindo do Norte de Àfrica, um outro avô pastor de

porcos, uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor num

retrato – que outra genealogia pode importar-me? A que melhor árvore me

6 AS HERANÇAS EDUCATIVAS E OS PERCURSOS ESCOLARES: “NÃO MAIS” ANALFABETAS, “AINDA NÃO” PLENAMENTE ESCOLARIZADAS

Ao iniciar minha pesquisa, criei uma expectativa de localizar nas narrativas das mulheres analfabetas o indicativo de que alguma filha tivesse cursado o Ensino Superior, pois gostaria de mostrar pelo menos um caso de escolarização plena. Identifiquei, dentre o total de oito filhas das duas mulheres investigadas, uma situação de conclusão do Ensino Médio. Essa é a realidade produzida pelos dados, e tenho que concordar com os argumentos de Romanelli (2013) sobre o deslocamento das pesquisas sobre fracasso escolar cederem lugar para estudos da situação inversa, de sucesso e longevidade escolar:

Esse deslocamento deve ser submetido a uma análise mais rigorosa. Os casos de sucesso escolar, particularmente nas famílias de camadas populares, são tão expressivos ou a opção por tal temática encobre questões téoricas e mesmo ideológicas e políticas que merecem uma interpretação mais acurada? (ROMANELLI, 2013, p. 54).

A partir dessa provocação, consenti que, ao invés de mostrar o que ainda é raro e caro às famílias das classes populares, socializo dados que refletem a realidade da educação brasileira – as mulheres analfabetas enredadas em situações desde a sua família de origem até a constituição de sua própria unidade familiar. Aspecto esse que dá créditos a minha tese, segundo as afirmações de Tomizaki (2013), sobre a importância das pesquisas darem conta de várias gerações familiares quando se pretende mostrar a complexidade dos processos de distribuição de bens ou posições sociais valorizadas.

Particularmente, nessa seção, analiso as condições em que mulheres analfabetas, Dalva e Isaura, inscreveram suas heranças educativas explorando o discurso recorrente de “dar às filhas o que não tiveram”. Procuro mostrar os elementos de sua herança familiar, os quais valorizam e mantêm, bem como aqueles que não desejam repetir. Diante dessa mobilização das mães e a delegação “a gente cria e pensa, agora, é contigo!”, analiso as respostas dadas pelas filhas, as quais permitiram pensar as diferentes reconfigurações das heranças educativas.

6.1 “Dar às filhas a escolarização que não tiveram”, afinal, é possível?

A princípio, a ação de dar significa por outra pessoa em posse de algo. Desse modo, haveria uma contradição na afirmação recorrente das mulheres em querer dar o que não

possuem. Porém, indo mais além, a ação de dar leva a outros significados como atribuir, que remete a imputar, chegando ao sinônimo de responsabilizar, delegar.

A seu modo, valorizam e reconhecem a importância da escolarização para a mobilidade na sociedade e apresentam um discurso “pró-escola”, porém, falta uma disposição para os estudos com a adoção de comportamentos de uma “contracultura escolar” (ZAGO, 2011) parece estar associada ao fato de que a sobrevivência está em primeiro lugar numa sociedade centrada no econômico.

O fato de não estudarem foi apenas um dos elementos do processo de negação dos direitos sociais. Esses definidos por Carvalho (2013) como garantia de participação na riqueza coletiva e incluem o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo e à aposentadoria, tendo a justiça social como ideia central. De certo modo, isso lhes torna incompletas no exercício da cidadania plena, pois são dependentes de outros em quase tudo o que se refere à leitura e à escrita, tendo violado inclusive parte dos direitos civis que, segundo Carvalho (2013), é a liberdade individual de expressão, visto que é recorrente a prática de solicitarem que leiam e escrevam suas correspondências.63

O discurso emerge desse contexto, mas cria novos contextos e discurso. Wagner e colaboradores (2014) e Penso, Costa e colaboradores (2008) permitem compreender que, de algum modo, as mulheres, no caso estudado, dialogam com essas heranças, ao questionarem sua adultez precoce e as diferenças na educação de meninos e meninas, ao buscarem a educação de jovens e adultos se deparando com as implicações da escolarização “tardia”, ao reconhecerem a possibilidade de participar dos cursos de qualificação profissional do Programa Mulheres Mil, construindo estratégias para desenvolver as atividades que envolvem leitura e escrita. E diferente dos seus antepassados, ao projetarem para as suas filhas uma melhor posição social, amparadas pelas políticas públicas, que avançaram significativamente a partir da década de 90 do século XX.64

Se a herança, o herdado, é aquilo que nos atribui um certo tipo de tarefas contraditórias: receber, atender, acolher aquilo que nos chega e, ao mesmo tempo, ter que refazê-lo, ter que reinterpretá-lo (SKLIAR, 2008), a possibilidade de reconfiguração das heranças educativas, traz enunciados da questão: o que elas procuraram dar às filhas? Das heranças educativas recebidas de seus familiares, trazem como principal elemento o respeito nos relacionamentos. E demonstram orgulho em transmiti-lo às filhas:

63 Situações analisadas na seção 3. 64 Aprofundado na seção 3.

A única coisa que meu pai deixou para mim foi a educação de respeitar as pessoas, não ser mal-educada. Foi o que ele me ensinou na vida, que a gente sempre tinha que amar as pessoas. Quero que as filhas fiquem, da minha parte, com essa herança sempre tive respeito pelas pessoas (Dalva, 68 anos).

A única coisa que carrego é a educação, que eu tive um pouco, não tive estudo, não ganhei dinheiro, não ganhei nada. Única herança que eu tive foi uma experiência de vida. Única herança que deixo para os meus filhos, é uma educação, respeito, e uma boa vivência, bom trabalho, boa saúde. É difícil de ficar rico, que tenham o suficiente para viver e para criar os filhos. Que sejam umas pessoas de bem com a vida, que sejam educados, que não sejam de fazer besteira que nem os outros fazem (Isaura, 66