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um recorte de tempo, gênero, classe social e cor/etnia e geração. Então, se há o desejo de um movimento de transição e de novas configurações dessa herança educativa, há de se produzir novos discursos nas dimensões sociais, históricas, políticas e culturais.

3.2 Transições e outras configurações discursivas nas experiências sociais de (algumas) mulheres

O tráfego feminino nos espaços públicos, pela via do trabalho remunerado, afirmou-se notadamente nos anos 80 do século XX, inscrevendo-se, segundo Sarti (2011), na lógica das obrigações familiares. Essa década também demarcou o rompimento de um ciclo na educação das meninas – para serem mulheres preferencialmente casadas, mas independentes. Entre a educação antiquada e os ventos do feminismo, “a mulher casada brasileira rompeu um ciclo – fora educada pela mãe de modo muito semelhante ao que já ensinara a avó, no entanto, dava à filha conselhos que construiriam gerações de mulheres diferentes” (DEL PRIORE, 2013, p. 83). Esse contexto possibilitou às mães redimensionarem seu discurso na educação das filhas, projetando para elas um futuro diferente do seu no presente e do legado de três gerações. Isso reflete nas heranças, dentre elas a escolarização. Mães analfabetas ou com escolaridade mínima (assim como as participantes dessa pesquisa) também puderam incentivar as filhas a continuarem os estudos, a conquistarem espaço no mundo do trabalho e, possivelmente, a independência financeira.

Também, segundo Arend (2013), diminuiu bastante o número de meninas que trabalhavam como babás ou empregadas domésticas. Essas jovens realizavam as tarefas domésticas e o cuidado com os irmãos mais novos em suas próprias residências como apoio às mães que trabalhavam fora de casa. A partir da década de 1990 o Estado brasileiro implementou políticas sociais, para que alterassem as condições de vida de crianças e dos adolescentes pobres, pautadas nas diretrizes da obrigatoriedade da escolarização na infância. E um esforço

maior passou a ser feito no sentido de estender o saber escolar às meninas pobres como parte dos direitos sociais, dos quais destacam-se: Bolsa Família,38 Programa Social de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti)39 e o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem).40 As possibilidades de escolarização para as mulheres também se ampliaram nesse momento, pois esses programas, por meio de um conjunto de incentivos, buscaram com que essa população pudesse permanecer frequentando os bancos escolares até concluir o ensino secundário. Acrescento ao destaque de Arend (2013) os programas redesenhados pelo Plano Brasil Sem Miséria, a partir de 2011, realizados em interação e parceria entre o MDS e o MEC:

No eixo da garantia de renda, a principal iniciativa é o Programa Bolsa Família, cabendo ao MEC o acompanhamento da condicionalidade em educação. Ainda neste item, o acompanhamento do Benefício de Prestação Continuada (BPC) conta com o apoio do MEC na realização do controle anual dos beneficiários. No eixo da inclusão produtiva, cabe ao MEC a oferta de cursos de qualificação profissional por meio do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec). Por fim, no eixo de acesso a serviços, temos a Ação Brasil Carinhoso (FERNANDES, 2014, p. 544-545).

38 Lei Federal n. 10.836, de 9 de janeiro de 2004, é regulamentado pelo Decreto n. 5.209, de 17 de setembro de

2004, possui três eixos principais: complemento da renda, acesso a direitos, articulação com outras ações. Desde 2011, faz parte do Plano Brasil Sem Miséria, que reuniu diversas iniciativas para superar a extrema pobreza. A gestão é descentralizada, a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios têm atribuições em sua execução. O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) é o responsável pelo Programa, e a Caixa Econômica Federal é o agente que executa os pagamentos (Disponível em <http://mds.gov.br/assuntos/bolsa- familia/o-que-e>. Acesso em 23 de outubro de 2016). Teve como resultados até outubro de 2014: 14 milhões de famílias atendidas e 22 milhões de pessoas superaram a extrema pobreza (CAMPELO e FALCÃO, 2014).

39 O Peti teve início em 1996, como ação do Governo Federal apoiado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), para combater o trabalho de crianças em carvoarias da região de Três Lagoas (MS). Sua cobertura foi ampliada para alcançar progressivamente todo o país para implantação de políticas públicas voltadas ao enfrentamento do trabalho infantil, atendendo às demandas da sociedade, articuladas pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI). Em 2005, ocorreu a integração do Peti com o Programa Bolsa Família. Em 2011, o Peti foi instituído pela Lei Orgânica de Assistência Social (Loas) como um programa de caráter intersetorial, integrante da Política Nacional de Assistência Social, que compreende: transferências de renda; trabalho social com famílias e oferta de serviços socioeducativos para crianças e adolescentes que se encontram em situação de trabalho. A partir de 2013, foi iniciada a discussão sobre o Redesenho do Peti, com o objetivo de acelerar as ações de prevenção e erradicação do trabalho infantil de acordo com o Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador e com a Carta de Constituição de Estratégias em Defesa da Proteção Integral dos Direitos da Criança e do Adolescente. Disponível em <http://mds.gov.br/assuntos/assistencia-social/servicos-e-programas/peti/peti>. Acesso em 23 out. 2016.

40 O Projovem, instituído pela Lei n. 11.129, de 30 de junho de 2005. A partir de 1º de janeiro de 2008 passou a ser regido pela Lei n. 11.692, de 10 de junho de 2008. É destinado a jovens de 15 (quinze) a 29 (vinte e nove) anos, com o objetivo de promover sua reintegração ao processo educacional, sua qualificação profissional e seu desenvolvimento humano, será desenvolvido por meio das seguintes modalidades: Projovem Adolescente – Serviço Socioeducativo; Projovem Urbano; Projovem Campo – Saberes da Terra; e Projovem Trabalhador. A execução e a gestão do programa se dão, intersetorialmente, por meio da Secretaria-Geral da Presidência da República e dos Ministérios da Educação, do Trabalho e Emprego e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11692.htm>. Acesso em 23 out. 2016.

A possibilidade de independência das mulheres articulou-se com trabalho remunerado, escolarização e formação profissional compondo outras configurações discursivas nas experiências sociais, constatadas nas estatísticas41 sobre a presença das mulheres em ocupações do mundo do trabalho historicamente exercidos por homens e com níveis de escolaridade cada vez mais avançados.

Atualmente, a taxa de ocupação em trabalhos formais no Brasil atinge 58,6% de homens e 57,7% das mulheres. Já a taxa de ocupação em trabalhos informais entre as mulheres economicamente ativas é de 39,65%, e de 39,18% entre os homens economicamente ativos. Em um número reduzido e com menor remuneração,42 as mulheres conquistaram postos de gerência ou direção em diferentes áreas, mas continuam na liderança nas áreas da educação, saúde e serviços sociais, ainda sob influência das associações históricas entre as mulheres e as atividades que envolvem cuidado e responsabilidade afetiva. 71,7% das mulheres entre 20 e 22 anos concluem o Ensino Médio, já entre os homens essa taxa é de 54,9%. Elas também são a maioria dos estudantes com frequência no Ensino Superior na faixa dos 18 aos 24 anos, 63,3%, contra 53,2% dos homens (BRASIL, SIS, 2015).

Ainda 90,7% das mulheres ocupadas são as principais responsáveis pela execução ou orientação (em geral, de outra mulher43) dos afazeres domésticos e de cuidados, demonstrando que a maior escolarização e participação das mulheres no mercado de trabalho não implicam numa substituição de trabalho e sim no acúmulo. Das 51,6 horas semanais de jornada total de trabalho os homens ocupam 41,6 com o trabalho principal e 10 horas com afazeres domésticos. Já as mulheres, das 56,7 horas semanais de trabalho, ocupam 35,5 horas com o trabalho principal e 21,2 horas com afazeres domésticos (BRASIL, SIS, 2015).

Esses dados evidenciam mudanças discursivas a respeito das mulheres, nos âmbitos público e privado, porém não atingem todas as mulheres, nem nas mesmas proporções. Há atravessamentos da intersecção das dimensões étnicas, geracionais, religiosas, de orientação sexual, classe social, país de origem. Se uma visão marxista ortodoxa, ainda, defende que classe é mais importante, Davis (2011) argumenta:

Claro que classe que é importante. É preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante para perceber as intersecções entre raça, classe e

41 Trago alguns dados da Síntese dos Indicadores Sociais (SIS) 2015 divulgada pelo Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE) e disponível em <http://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca- catalogo?view=detalhes&id=295011>. Acesso em fevereiro 2016.

42 Da proporção de pessoas ocupadas em cargos de direção ou gerência estão 6,6 % dos homens e 5% das mulheres.

Porém, as mulheres nestes cargos recebiam em média 70,0% do rendimento médio dos homens em igual condição.

43 Na categoria de empregados domésticos, cerca de 92% dos trabalhadores são do sexo feminino (BRASIL, 2015).

gênero, de forma a perceber que entre essas categorias existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras (DAVIS, 2011, p. 4).

Em nível mundial, a meta de promoção de igualdade de gênero e autonomia das mulheres registrou avanços na educação, emprego e participação parlamentar. E como desafios, seguem a eliminação da violência contra mulheres e meninas; a igualdade de oportunidades, recursos e responsabilidades entre homens e mulheres; a participação das mulheres em pé de igualdade em todos os âmbitos, desde a casa, os negócios até o parlamento (ONU, 2012-2013). Não perguntei às participantes da pesquisa se elas se reconhecem nos avanços destacados nas estatísticas. Mas da análise das narrativas discursivas em correlação aos estudos sociais, históricos, políticos e culturais da educação das mulheres no Brasil, sem pretensão de generalização, considero as mulheres desse estudo como exemplaridade de uma geração de mulheres analfabetas. Durante séculos, o Estado brasileiro fora eficiente em manter as mulheres afastadas da educação pública, confirmando a raiz histórica da herança educativa do analfabetismo. Sem as antigas restrições e impulsionadas por mudanças econômicas e culturais, incluindo os feminismos (ROSEMBERG, 2013), as estatísticas e as proposições de políticas públicas, nesse caso a SIS (BRASIL, 2014, 2015 e 2016) e o III Plano Nacional de Política para Mulheres (PNPM) (BRASIL, 2013), denotam um contexto diferente, mas ainda problemático.

No Brasil foram registrados avanços nos dados relativos à educação, porém as heranças educativas do analfabetismo continuam nas estatísticas, em proporções cada vez menores, mas ainda 8% da população de 15 anos ou mais estão nesse cômputo (BRASIL, PNAD, 2015). O Brasil está entre os nove países que ficaram longe da meta de alfabetização da população adulta, em 95% até o final do ano de 2015, e que realizam progressos lentos no período avaliado de 2000 a 2011. Inclusive, o Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024, em sua Meta 9, propõe elevar a taxa de alfabetização da população com quinze anos ou mais para 93,5% até 2015 e, até o final da vigência do PNE, erradicar o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% a taxa de analfabetismo funcional (BRASIL, 2014 ). Aqui se configura o clássico paradoxo entre as formas de implementação das políticas públicas e os recursos financeiros a elas destinados, nesse caso, a atual política de cortes nos anos de 2016 e 2017. Cabe salientar, também, que está presente uma abordagem histórica do analfabetismo como “desconceito” de ignorância, cegueira, preguiça, doença, erva daninha, incapacidade, periculosidade (FERRARO, 2004) por isso a pretensão de sua erradicação.

A maior incidência de analfabetismo ocorre entre homens, entre os de cor preta ou parda e entre aqueles com idade acima dos 65 anos. Outras dimensões pertinentes são a renda, a região

de residência e situação do domicílio. A taxa de analfabetismo é maior entre os que residem na região nordeste, entre aqueles que estão nas áreas rurais e entre aqueles que pertencem ao quinto mais pobre (BRASIL, PNAD, 2015). A situação das participantes da pesquisa converge com essa constatação, quanto à categoria etária (uma tem 45 anos e seis têm mais de 60 anos de idade). Também, nos fatores da renda familiar mensal, que não ultrapassa um salário mínimo (oriunda de trabalho informal, aposentadoria, ou dependência direta do companheiro) e ainda pela origem rural – apenas uma delas sempre morou na cidade. Completamos, aqui, o conjunto de marcas sociais que viemos demarcando nesse estudo quanto às heranças educativas do analfabetismo: a questão da etnia, geração, classe social, situação de domicílio.

Quanto à questão geracional, identificamos no III PNPM da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM)44 um discurso na perspectiva do capital humano. No que se refere às diferentes intenções em relação às mulheres mais jovens, como a ampliação do acesso e permanência das mesmas no Ensino Profissional, Tecnológico e no Ensino Superior, “com destaque para as áreas científicas e tecnológicas, com igualdade de gênero, raça, etnia, considerando as mulheres em sua diversidade” (BRASIL, 2013-2015, p. 23). Enquanto que para as mulheres acima de 50 anos, negras e indígenas, a meta é a redução do analfabetismo.

A teoria do capital humano considera a educação como responsável por grande parte da melhoria na qualidade de vida da população, principalmente quando se trata de países pobres (MONTEIRO, 2016). Assim, a instrução é o maior investimento humano e as habilidades adquiridas pelo homem, com a educação, são um tipo de capital, o capital humano (SCHULTZ, 1967). Porém, o capital não pode subordinar a ciência, a tecnologia, o trabalho e os processos educacionais e se constituir na medida da vida, visto que é o ser humano o centro e a medida de tudo. Trata-se do processo inverso, colocar a ciência e a técnica e os processos educacionais a serviço da dilatação da vida para todos os seres humanos (FRIGOTTO, 2002).

Nessa perspectiva do desenvolvimento humano, projetos educacionais comprometem- se com a cidadania plena, ampliação da qualidade de vida e a possibilidade de novos

44 A criação da SPM, em 2003, e as três Conferências Nacionais de Política de Mulheres (2004, 2007 e 2011) referendaram os três PNPM (2004-2007, 2008-2011, 2013-2015) e esses reafirmam os princípios da Política Nacional para Mulheres: autonomia das mulheres em todas as dimensões da vida; busca da igualdade efetiva entre mulheres e homens, em todos os âmbitos; respeito à diversidade e combate a todas as formas de discriminação; caráter laico do Estado; universalidade dos serviços e benefícios ofertados pelo Estado; participação ativa das mulheres em todas as fases das políticas públicas; transversalidade como princípio orientador de todas as políticas públicas (BRASIL, 2013). Foi extinta em 12 de maio de 2016 pela Medida Provisória 726/2016 passando a integrar o Ministério da Justiça e da Cidadania que passou a ser composto pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres; Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial; Secretaria Especial de Direitos Humanos e Secretaria Nacional de Juventude, além das atribuições do extinto Ministério da Justiça. Disponível em <http://www.seppir.gov.br/medida-provisoria-estabelece-nova-organizacao-dos-ministerios-2>.

significados à existência humana, indiferente da etapa do ciclo da vida do sujeito e do retorno a ser dado à economia.

As heranças educativas do analfabetismo, que permitem reconhecer as mulheres participantes da pesquisa como parte de uma geração de adultas analfabetas, emergem de um contexto histórico, social e político em que a escolarização das mulheres praticamente não existiu por questões culturais da época, de supervalorização do trabalho, do lugar destinado às mulheres, associados à precariedade das políticas educacionais, e de um modo dos pais e mães projetarem às futuras gerações a responsabilidade de sua fiel substituição. Não bastasse esse contexto de raiz, que vai se modificando com mais força na década de 90 do século XX, as mulheres também são herdeiras da ausência, da assistematicidade e da política do voluntariado dos programas de educação de adultos, as quais em geral emergem como políticas de governo brasileiro.

3.3 Os campos discursivos sobre alfabetismo e analfabetismo: concepções teóricas e