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2.5 Afinal, o que se sabe das mulheres alunas do Programa Mulheres Mil

2.5.7 Dolores: estagnação e sofrimento

Mulher de estatura mediana, cabelos longos e grisalhos, presos a um coque. Autodeclarou-se de família branca, mas como é mais “escurinha”, se considera parda. Resume

os seus 60 anos de vida numa palavra: sofrimento. Ela e o esposo têm problemas de saúde e não podem trabalhar. Moram num “puxadinho” na casa do filho. Enfrentam dificuldades financeiras. Desabafa que de vez em quando deseja ficar sozinha, ou fazer uma atividade, como ter participado das aulas do curso de qualificação, isso lhe dá a sensação de distração. Revela- se angustiada quando imagina ficar em casa por longos períodos, e expressa uma vontade de “ter um dia só para ela”. Quanto à infância, lembra que estudou até a terceira série, aos 12 anos, quando o pai tirou os seis filhos da escola para trabalharem nas terras de outros. Voltavam para casa, no sábado à tarde, e entregavam o dinheiro para não apanhar do pai, que era alcoólatra. Casou-se aos 18 anos, teve cinco filhos. Com 36 anos de idade trabalhava numa fábrica de calçados, período da vida em que sofreu depressão e passou mais tempo no hospital do que em casa. Acarretou na sua demissão e desde lá só se dedicou integralmente à família. Sente que a “vida parou, não sei onde ela parou, mas a vida não anda, passei muita humilhação”. Como tem problema de reumatismo, não pode se dedicar às tarefas domésticas, acredita que se soubesse ler e escrever “clariaria sua cabeça”. Gosta de costurar à mão, desmanchou uma colcha e a transformou em cortina, que usará para separar o quarto da cozinha, já que a casa não tem divisórias. Também faz colchas e capas para colchão com retalhos, linha e carretel. Aprendeu a escrever seu nome nas aulas de alfabetização oferecidas no IFFAR, concomitante ao Programa Mulheres Mil. Quando precisa de ajuda em relação à leitura e à escrita solicita à nora.

O passado é para refletir, não para repetir (Mário de Andrade)

Carta para Josefa, minha avó

Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo – e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água.

Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja (contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?).

Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém. Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos — e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Quem te roubou? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava. Não teremos, realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, por que te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!”

É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua.

3 HERANÇAS EDUCATIVAS DO ANALFABETISMO DE MULHERES: APROXIMAÇÕES DO SÉCULO XXI

Diferentes áreas do conhecimento definem heranças das mais diversas formas. Na esfera do direito trata-se da transmissão do patrimônio familiar dos bens materiais e da sucessão. Na biologia, os estudos abordam o patrimônio genético, como uma mistura de heranças paterna e materna, cuja informação se recombina dando origem a um novo ser. Na psicologia sistêmica e psicanalítica, abrange variados enfoques, ora como transmissão transgeracional, intergeracional, transubjetiva, multigeracional, cogeracional, ora como produção intersubjetiva, que incide sobre o intrapsíquico e na subjetividade do sujeito, ainda fomenta delegações, missões, lealdades invisíveis, segredos, mitos e ritos nas interações entres os membros da família ao longo das gerações.

Investigar as heranças educativas do analfabetismo de mulheres se constitui no fio condutor dessa tese. Trato o analfabetismo como herança familiar, social, econômica, política e cultural para problematizar como ele tem sido nomeado comumente com termos que remetem a necessidade de “tratamento”, “reparos”, “cura” ou “erradicação”. Ferraro (2004) se refere a uma sucessão de desconceitos (ignorância, cegueira, preguiça, doença, erva daninha, incapacidade, periculosidade, etc.) que têm marcado a abordagem do analfabetismo, desde o período da reforma eleitoral no final do Império (a Lei Saraiva, de 1881), quando emergiu como questão nacional e perdura até os dias atuais. Desconceitos que têm servido muito mais para desacreditar e estigmatizar os analfabetos e para consumar e legitimar a sua exclusão do direito do voto e da cidadania, do que à causa da universalização da alfabetização no país. Nesse sentido, pensei em abordá-lo numa outra perspectiva, de herança educativa.

Herança, aqui, compreendida como uma relação com o outro, conforme Derrida (SKLIAR, 2008), há de se homenageá-la, questioná-la e produzir novas respostas. A questão da herança deve ser a pergunta que se deixa ao outro: a resposta será do outro, do herdeiro. Assim como na epígrafe dessa seção, crônica de Saramago, localizo a problematização do neto herdeiro à avó analfabeta:

Não sabes ler [...]. Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. [...] Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. [..] Por que foi então que te roubaram o mundo? Quem te roubou? Mas

disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender (SARAMAGO, 196835).

Como é possível sua avó ter herdado centenas de palavras práticas de um vocábulo elementar, ir vivendo, com sua herança, de quinhentas palavras e um pequeno quintal com uma casa simples? Quem lhe roubou o mundo? Ele, de origem daquela carne e sangue, poderia lhe responder, escolhendo algumas palavras que ela pudesse compreender, em meio as inumeráveis do seu vocabulário. Mesmo respondendo, diz ele: “Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas — e isso ainda é pior” (SARAMAGO, 1968). Essa culpa, se trata de ter sido infiel a sua herança educativa? Ou pela impotência de que a resposta sobre o culpado desse roubo do mundo, não o devolveria? Uma certeza, a culpa não é dela. Assim, como dirá Norma (71 anos), mais adiante, “não foi culpa minha [...], foi lá da antiguidade”.

O avô de Saramago, Jerónimo Melrinho, também era analfabeto. E assim como herdou da avó Josefa, as “histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte” (SARAMAGO, 1968), do avô, o homem mais sábio que ele conheceu em toda a sua vida, herdou as chaves para construir uma identidade pessoal forte. No discurso proferido, em 1998, por ocasião do recebimento do Prêmio Nobel de Literatura, assim narrou o herdado do avô:

Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que accionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas [...] E algumas vezes, em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: "José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira." Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para todas as pessoas da casa, a figueira. [...] Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. [...] Talvez repetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer, quer fosse para as enriquecer com peripécias novas. Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo.

Mais adiante em seu discurso, Saramago (1998) problematiza o fato de que se soubesse de onde veio e de que materiais se fez a pessoa que começou a ser e esta em que pouco a pouco

35 Crônica publicada em A capital, Lisboa, em 14 de março de 1968. Disponível no arquivo de José Saramago <https://www.josesaramago.org/carta-josefa-minha-avo-1978/>. Acesso em maio de 2017.

foi se tornando, nada mais teria a explicar sobre as proximidades e distâncias com seus antecessores: “Afinal, estava enganado, a biologia não determina tudo, e, quanto à genética, muito misteriosos deverão ter sido os seus caminhos para terem dado uma volta tão larga” (SARAMAGO, 1998).

Nesse sentido, Lahire (2008) acredita que o termo transmissão não expressa totalmente o trabalho, de apropriação e de construção, efetuado pelo herdeiro, pois há efeito das diferenças entre aquele que se presume que transmite e aquele que se supõe que recebe. Nessa seção, destaco os enunciados das narrativas de sete mulheres sobre as heranças educativas do analfabetismo, analisando as implicações discursivas do social, histórico, político e cultural que permitiram essa condição educativa se aproximar do século XXI. Para então, nas próximas seções, além de aprofundar os conceitos de gerações e heranças, demonstrar o movimento de “infidelidade” de duas mulheres às suas heranças educativas no que se refere à educação de suas filhas. Infidelidade, nesse caso, compreendida como o herdado se reconfigura a cada geração e tempo histórico.

3.1 Discursos sobre as heranças educativas do analfabetismo: a intersecção classe social,