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Mulheres analfabetas e inscrições de suas heranças : aproximações e distanciamentos na educação de suas filhas

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Laura,Glória,Guiomar,Cíntia,Márcia,Miriam,Joice,Julia,

Tainá,Luciana,Madalena,Catarina,Juliana,Daniela,

Lucelina,Fabiana,Jusamara,Gabriela,Cris,Elis,Ivete,

Iracema,Clara,Hanna,Lívia,Dora,Eva,Sônia,Mari,Sílvia,

Dalva

,Dulce,Anaís,Flora,Vilma,

Norma

,Ilma,Isis,Lu,Lais,

Cristiane,Berenice,

Rosalina

,Amanda,Fernanda,Eunice,

Karine,Daiana,

Dolores

,Berenice,Jane,Joana,Patrícia,

Micheli,Clarissa,Betânia,Francisca,Karen,Cassia,Déia,

Dara,Tita,Leia,Cleo,Tiê,Idê,Carol,

Ester

,Taís,Raquel,Sélia,

Flor,Marina,Fulor,Luana,Estela,Mel,Flávia,

Isaura

,Diana,

Paloma,Priscila,Olíva,Maria,Gisela,Janaína,Mônica,Rute,

Vânia,Daúti,

Celeste

,Helena,Silvana,Renata,Luísa

Marileia Gollo de Moraes

2018

MULHERES ANALFABETAS E INSCRIÇÕES

DE SUAS HERANÇAS:

aproximações e distanciamentos na

educação das suas filhas

(2)

Marileia Gollo de Moraes

MULHERES ANALFABETAS E INSCRIÇÕES DE SUAS HERANÇAS:

aproximações e distanciamentos na educação de suas filhas

Tese apresentada no Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul como requisito parcial à obtenção do título de Doutorado em Educação nas Ciências.

Orientadora: Profª. Drª. Maria Simone

Vione Schwengber.

Linha de Pesquisa: Educação Popular em

Movimentos e Organizações Sociais.

Ijuí

2018

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Catalogação na Publicação

Ginamara de Oliveira Lima CRB10/1204

M827m

Moraes, Marileia Gollo de.

Mulheres analfabetas e inscrições de suas heranças : aproximações e distanciamentos na educação de suas filhas / Marileia Gollo de Moraes. – Ijuí, 2018.

155 f. : il. ; 30 cm.

Tese (doutorado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí). Educação nas Ciências.

“Orientadora: Profª. Drª. Maria Simone Vione Schwengber”.

1. Heranças educativas. 2. Gerações. 3. Mulheres. 4. Analfabetismo. 5. Classes populares. I. Schwengber. Maria Simone Vione. II. Título.

CDU: 37-055.2

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GRATIDÃO

Gratidão a todos e a cada um que se sinta partícipe dessa trajetória:

 aos familiares,

em especial companheiro Flávio, filhas Marina e Laura e mãe Mariloi;  aos professores,

em especial à orientadora da pesquisa Profª Maria Simone Vione Schwengber;  às colegas do grupo de orientação,

 aos colegas de trabalho,

em especial aos professores do Curso de Licenciatura em Computação e equipe diretiva;

 às amigas,

em especial da egrégora da Yôga;  às alunas do Programa Mulheres Mil,

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Cunhãs

Karine Cunha

Paula, Ana, Rita, Carla, Sandra, Dinorá,

Claudia, Sara, Carmen, Laura, Glória, Guiomar, Cíntia, Márcia, Miriam, Joice, Julia, Tainá,

Luciana, Madalena, Catarina, Juliana, Daniela, Lucelina, Fabiana, Jusamara, Gabriela,

Cris, Elis, Ivete, Iracema,

Vem saudar cunhãs, irmãs de toda Terra, mulatas, cafuzas, negras, brancas, amarelas Vim saudar cunhãs, irmãs de toda Terra,

amas, sinhás, mães, filhas e As da mesma guerra Vim saudar cunhãs, vim saudar cunhãs

Clara, Hanna, Lívia, Dora, Eva, Beatriz, Sônia, Mari, Sílvia, Dalva, Dulce, Anaís Flora, Vilma, Norma, Ilma, Ísis, Lu, Laís, Cristiane, Berenice, Rosalina,

Amanda, Fernanda, Eunice, Karine, Daiana, Dolores, Jane, Joana, Patrícia, Michele, Clarissa, Betânia, Francisca Vem saudar cunhãs, irmãs de toda Terra, mulatas, cafuzas, negras, brancas, amarelas Vem saudar cunhãs, irmãs de toda Terra,

amas, sinhás, mães, filhas e As da mesma guerra Vim saudar cunhãs, vim saudar cunhãs

Karen, Cássia, Déia, Dara, Tita, Leia, Cleo, Tiê, Iná, Idê, Carol, Ester, Taís, Raquel, Sélia, Flor, Marina, Fulor, Luana, Estela, Mel, Flávia, Isaura, Diana, Paloma, Priscila,

Olívia, Maria, Gisela, Janaina, Mônica, Rute, Vânia, Daúti, Celeste, Helena, Silvana, Renata, Luísa,

Vem saudar cunhãs, irmãs de toda Terra, mulatas, cafuzas, negras, brancas, amarelas Vem saudar cunhãs, irmãs de toda Terra,

amas, sinhás, mães, filhas e As da mesma guerra Vim saudar cunhãs, vim saudar cunhãs.

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RESUMO

Os índices de analfabetismo retratam a dívida educacional brasileira, pois gerações de diferentes classes sociais vivenciaram o acesso desigual à escolarização. A tese analisa como as mulheres, pouco ou não escolarizadas, que se declaram analfabetas, se inscrevem e inscrevem suas heranças no contexto da sociedade grafocêntrica. Compreende o que se aproxima e o que se distancia na trajetória de vida dessas mulheres em relação à educação das suas filhas. Parte das seguintes perguntas de pesquisa: Quais são as dimensões do lugar social que as mulheres analfabetas almejam para suas filhas? Quais foram os movimentos na educação das filhas que permitiram acesso a esse lugar almejado? Como e por que é atribuída à escola (a qual não teve centralidade na sua vida) essa função social? As mulheres analfabetas reconhecem quais outros condicionantes interferem nesse movimento de proximidade e distanciamento na vida das suas filhas? Operou-se metodologicamente na análise do discurso na perspectiva dos enunciados, com inspiração nos princípios da arqueologia e genealogia de Foucault, produzida a partir de entrevistas-narrativas. Essa pesquisa, num primeiro movimento, discute as dimensões da “dívida educacional”, trata o analfabetismo como herança educativa e traz sete mulheres egressas do Programa Mulheres Mil como foco de análise. Do conjunto dessas análises depreendeu-se que as configurações das heranças educativas do analfabetismo abrangem o contexto histórico, social e político em que a escolarização das mulheres praticamente não existiu, também envolve a ausência e assistematicidade das políticas do governo brasileiro no que se refere à alfabetização de adultos. Identifica-se como estratégias de inscrição das mulheres analfabetas numa sociedade centrada em processos de leitura e escrita, a espontaneidade de sua cultura oral, a humildade em solicitar auxílio quando necessitam ler e escrever, o estabelecimento de confiança com “a escriba”, a persistência na realização dos trabalhos informais, o desenvolvimento de outras habilidades e inclusive a valorização do estudo das novas gerações. No segundo movimento de análise, discute a compreensão a respeito de como duas dessas mulheres inscreveram suas heranças educativas para com suas filhas. As análises nessa segunda parte, destacam aproximações de alguns elementos em relações as heranças educativas que continuam, e mesmo se flexibilizando, configuram um tom de familiaridade. Também, verificaram-se distanciamentos que instauram rupturas e individualizações, rumo às reconfigurações das heranças. Dois destaques discursivos foram localizados: o discurso recorrente de “dar às filhas a escolarização que não tiveram”; e por outro lado, a delegação das heranças educativas “a gente cria, e pensa agora é contigo.” As filhas herdeiras responderam de formas diversas ao movimento empreendido pelas mães na inscrição de suas heranças educativas, porém, os elementos que as identificam e posicionam são o “não mais” analfabetas e o “ainda não” plenamente escolarizadas pautando o quanto as heranças educativas do analfabetismo, ainda, afrontam diversas gerações familiares das classes populares.

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ABSTRACT

Illiteracy rates in Brazil portray the country's educational indebtedness, since generations of different social classes experienced unequal access to schooling. The thesis analyzes how women with little or no schooling, who declare themselves illiterate, inscribe themselves and their inheritance in the context of a graphocentric society. It encompasses what is close and what is far from their course of life in relation to the education of their daughters. The research starts from the following questions: What are the dimensions of the social position illiterate women want for their daughters? Which were the movements in the education of their daughters that allowed access to this position they want? How and why is this social function assigned to the school (which had no centrality in their lives)? Do illiterate women recognize which other conditions interfere with this movement of closeness and distance in the lives of their daughters? Produced from interviews-narratives and inspired by Foucault's principles of archeology and genealogy, a methodological analysis of the discourse from the perspective of the statements was carried out. In an initial movement, this study discusses the dimensions of "the educational indebtedness", treats illiteracy as an educational heritage, and focuses the analysis on seven women from the Program Thousand Women (Programa Mil Mulheres). From the overall analyses, it was concluded that the configurations of the educational heritage of illiteracy encompass the historical, social and political context in which women's schooling virtually did not exist, it also involves the absence and nonsysthematicity of Brazilian government policies regarding adult literacy. It identifies as strategies for the insertion of illiterate women in a society centered on reading and writing processes the spontaneity of their oral culture, the humility to ask for help when they need to read and write, the establishment of trust with "the scribe", endurance in doing informal work, development of different skills and even appreciation of schooling of younger generations. In the second analysis movement, it discusses the understanding of how two of these women inscribed their educational heritages with regard to their daughters. The analyses in this second part emphasize the convergence of some elements in relation to the educational inheritances that persist and, even if becoming flexible, configure a tone that denotes familiarity. Also, a drifting apart which produced breaks and individuations towards a reconfiguration of inheritances was also identified. Two discursive highlights were observed: the recurring discourse of "to offer their daughters the schooling they did not have"; and, on the other hand, the delegation of educational heritages "we raise them and think: now it is up to you". The daughters responded in different ways to the movement undertaken by their mothers when inscribing their educational heritages; however, the elements that identify and position them are the "no more" illiterate and the "not yet" fully schooled, indicating how much the educational inheritances of illiteracy still affront several generations of family members of the lower classes.

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LISTA DE SIGLAS

ACISA – Associação Comercial e Industrial de Santo Augusto

CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico BA – Bahia

BPC – Benefício de Prestação Continuada BSM – Brasil Sem Miséria

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CEFET – Centro Federal de Educação Tecnológica

COREDE – Conselho de Desenvolvimento Regional EJA – Educação de Jovens e Adultos

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IFFAR – Instituto Federal Farroupilha

INAF – Índice Nacional de Alfabetismo Funcional IPEA – Instituto Pesquisa Econômica Aplicada

LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional MA – Maranhão

MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome MEC – Ministério da Educação

MOVA – Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos ONU – Organização das Nações Unidas

PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra e Domicílio PNE – Plano Nacional de Educação

PNPM – Plano Nacional de Políticas para Mulheres PROJOVEM – Programa Nacional de Inclusão de Jovens

PRONATEC – Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas SENAR – Serviço de Aprendizagem Rural

SIS – Síntese dos Indicadores Sociais

SPM – Secretaria de Políticas para Mulheres

TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido TDIC – Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância

UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul URI – Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Taxa de analfabetismo da população de 15 anos ou mais na região Celeiro/RS .... 30

Figura 2 – Taxa de analfabetismo da população de 15 anos ou mais nas regiões brasileiras .. 32

Figura 3 – Símbolos do Genograma ... 98

Figura 4 – Destaque às mulheres da pesquisa ... 98

Figura 5 – Relacionamentos familiares ... 99

Figura 6 – Genograma Isaura ... 101

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Caracterização das mulheres por idade e escolaridade ... 62

Quadro 2 – Escolaridade das Filhas de Isaura ... 122

Quadro 3 – Escolaridade das Filhas de Dalva ... 122

Quadro 4 – Comparativo da ocupação de Isaura e suas filhas ... 124

Quadro 5 – Comparativo da ocupação de Dalva e suas filhas ... 124

Quadro 6 – Escolaridade das netas e netos de Dalva ... 126

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SUMÁRIO

INÍCIO DE CONVERSA ... 15

1 DESLOCAMENTOS EXPERENCIADOS E PERCURSO METODOLÓGICO DA PESQUISA ... 20

1.1 Análise do discurso: aproximações com o método do percurso metodológico ... 25

2 AS MULHERES E O CONTEXTO ESPAÇO-TEMPORAL DA PESQUISA ... 36

2.1 Escolha dos pressupostos conceituais ... 36

2.2 O Programa Mulheres Mil como referência espaço-temporal da pesquisa ... 39

2.3 Nomeações das mulheres alvo do Programa Mulheres Mil nos documentos da Política Pública ... 41

2.4 Como elas se dizem? ... 45

2.4.1 As personagens do livro Mulheres Mil: do sonho à realidade ... 46

2.5 Afinal, o que se sabe das mulheres alunas do Programa Mulheres Mil do IFFAR – Campus Santo Augusto ... 47

2.5.1 Dalva: o desejo de subir mais alto... a “estrela d’Alva” ... 47

2.5.2 Isaura: da escravidão ao sentir-se “feito gente!” ... 48

2.5.3 Celeste: dedicação à igreja e orgulho da família ... 49

2.5.4 Rosalina: a casa como lugar de afeto e de ganhar a vida ... 50

2.5.5 Norma: memórias da precariedade e gratidão pelo momento presente ... 50

2.5.6 Ester: coragem e trabalho ... 51

2.5.7 Dolores: estagnação e sofrimento ... 51

3 HERANÇAS EDUCATIVAS DO ANALFABETISMO DE MULHERES: APROXIMAÇÕES DO SÉCULO XXI ... 55

3.1 Discursos sobre as heranças educativas do analfabetismo: a intersecção classe social, gênero, cor ... 57

3.2 Transições e outras configurações discursivas nas experiências sociais de (algumas) mulheres ... 64

3.3 Os campos discursivos sobre alfabetismo e analfabetismo: concepções teóricas e significações produzidas pelas mulheres ... 69

3.4 Estratégias de inscrição no cotidiano da sociedade grafocêntrica no discurso de mulheres analfabetas ... 74

(15)

4.1 Analfabetismo, mães analfabetas e filhas escolarizadas no banco de teses e

dissertações da Capes ... 81

4.2 Posição, conexão e unidades geracionais ... 83

4.3 Transmissões trans e intergeracionais ... 85

4.4 As contradições da herança ... 87

4.5 Inscrição das heranças educativas ... 88

4.6 Heranças educativas e suas implicações escolares ... 90

5 RECONFIGURAÇÕES DAS HERANÇAS EDUCATIVAS DAS FILHAS DE MULHERES ANALFABETAS ... 94

5.1 A necessidade dos genogramas e de outras perspectivas de análises ... 95

5.2 Reaproximação da pesquisadora e o encontro com Isaura no Sítio da Esperança .... 99

5.3 Reaproximação da pesquisadora e, enfim, a entrevista com Dalva ... 107

6 AS HERANÇAS EDUCATIVAS E OS PERCURSOS ESCOLARES: “NÃO MAIS” ANALFABETAS, “AINDA NÃO” PLENAMENTE ESCOLARIZADAS ... 116

6.1 “Dar às filhas a escolarização que não tiveram”, afinal, é possível? ... 116

6.2 As respostas das filhas frente à delegação das heranças educativas: “A gente cria e pensa, agora, é contigo!” ... 120

6.3 “Não mais” analfabetas e “ainda não” plenamente escolarizadas: as heranças educativas e suas implicações escolares ... 125

“CONCLUO” E APRENDO ... 131

REFERÊNCIAS ... 136

APÊNDICE 1 – ROTEIRO DAS ENTREVISTAS ... 150

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INÍCIO DE CONVERSA

Escrever é um desafio. Iniciar a escrita é mais desafiador ainda. A folha parece estar em branco. Nem tanto, as memórias (as histórias) já fazem parte de sua constituição fibrosa. Cem nomes de mulheres estão estampados como pano de fundo na capa desse trabalho e remetem ao universo das participantes da pesquisa, o Programa Mulheres Mil, que a cada oferta de curso, reunia um grupo de cem mulheres. Esse conjunto de nomes compõe a letra da música Cunhãs de Karine Cunha, a qual dediquei um espaço na epígrafe, e em destaque estão Dalva, Norma, Celeste, Dolores, Ester, Isaura e Rosalina, os nomes fictícios das mulheres estudadas nessa tese.

O termo cunhã deriva do tupi kuñã e significa menina indígena, mulher mestiça e jovem e ainda a mulher do caboclo (MICHAELIS, 2016a). A letra da música saúda as cunhãs, referindo-se a todas as mulheres: “mulatas, cafuzas, negras, brancas e amarelas [...] amas, sinhás, mães, filhas e As da mesma guerra” pactuando a relação com essa pesquisa que versa sobre mulheres e gerações, heranças e analfabetismo.

Essa intencionalidade está antecipada na capa com a ilustração “As rendeiras de Kaliazin”, de Evgeny Katzman (1928). É praticamente um convite à reflexão sobre mulheres iguais, semelhantes e diferentes. Iguais a todas como espécie, iguais a algumas como parte de um determinado grupo social e diferente de todas, como um ser singular (CHARLOT, 2000). Essas constatações exigem pensar sobre o que as aproxima, seriam os laços familiares? Relações de trabalho? A condição de gênero? A classe social? Também exige pensar o que as distancia, seria a diferença de gerações? As experiências? Os saberes? As expectativas?

Um convite à compreensão de todas e cada uma, de sua relação com a alfabetização, seja na leitura, ora como ato solitário de decifração, ora como silêncio quebrado por um leitor solidário. E também na relação com a escrita, as possibilidades e estratégias encontradas nas situações-limites decorridas do analfabetismo. Como cada uma se localiza na sociedade grafocêntrica, assim como as rendeiras de Kaliazin, diante de uma leitora, há aquela que continua concentrada no bordado, outra borda voltando o olhar para ela. As duas mais jovens parecem estar transcendendo esse momento que mistura trabalho e leitura, basta observar os olhares voltados para fora, em direção à luz que vem da janela. Um olhar mais próximo, e outro projetado ao longe. Contemplação? Trânsfuga? Estratégia de sobrevivência? Sonhos?

Assim como a folha, que parecia em branco, também fui me constituindo enquanto alguém que se pretende pesquisadora. Para onde vou? De onde venho? Onde quero chegar? Penso que são elementos úteis, primeiro, pois não faço tabula rasa, parto das minhas andanças, busco um novo (re) começo, isso implica desprendimentos, movimentos. Mas, então, o que

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agora pergunto? Parece que continuo indagando sobre Mulheres e Analfabetismo. O que recorto como tema de estudo agora. Talvez a problematização inicial da pesquisa fosse como me desloquei e ainda como cheguei até aqui. O doutorado parece que se refere a uma formação, a outra maneira de viajar e de se mover, partindo do meio, pelo meio, entrar e sair, não começar nem terminar:

É que o meio não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio(DELEUZE e GUATTARI, 2011, p. 49).

Talvez uma travessia intelectual em deslocamento, no sentido foucaultiano, supõe caminho que se faz e se refaz, em processo, de apreciar teorias, autores, um modo de viajar, sair do lugar conhecendo primeiro a ti mesmo, vislumbrando o modificar-se a ti mesmo, criar-se a ti mesmo (FOUCAULT, 1999). Doutorado talvez, um ardil que ele nos põe, ao termo do qual nos espera, móvel e em outro lugar (FOUCAULT, 1999).

A minha aproximação com a temática de analfabetismo e mulheres se deu durante o processo de escolarização e mais intensamente na experiência docente de atuação profissional no Ensino Superior. Percebi que tinha uma tese, porém precisava escrevê-la buscando novos interlocutores. Aliás, depois da delimitação do foco da pesquisa, tenho a impressão de que todos os assuntos desenvolvidos nas minhas aulas de formação de professores renderiam teses, aí aponto possibilidades de investigação e instigo os acadêmicos à continuidade dos estudos. Bem diferente de quando cursei a graduação na década de noventa: poucos professores já cursavam o mestrado, muitos estavam “sofrendo” nos processos seletivos e a impressão que passavam é de que a pós stricto sensu era apenas para alguns. E naquele contexto histórico, era mesmo somente para alguns. Como exceção dessa regra, localizei no discurso de uma pró-reitora de pesquisa, extensão e pós-graduação na abertura de um evento de iniciação científica, do qual participei como bolsista do CNPq, uma pista de que os bolsistas seriam os futuros professores da universidade. Duvidei, mas acabei me rendendo, uns sete anos depois, ao ingressar no mestrado e assumir duas disciplinas, no curso de Pedagogia, como professora universitária.

E assim em deslocamentos que recortei como tema da pesquisa “Analfabetismo, mulheres, gerações e inscrições de suas heranças” decorre, primeiramente, do desejo de avançar no processo de produção intelectual e transcender as constatações e inquietações empíricas de minha trajetória enquanto professora e pesquisadora. A pretensão é problematizar e responder como as mulheres, pouco ou não escolarizadas, que se declaram analfabetas, se inscrevem e

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inscrevem suas heranças no contexto da sociedade grafocêntrica. Tenciono compreender, por meio da análise do discurso, o que se aproxima e o que se distancia na trajetória de vida dessas mulheres em relação à educação das suas filhas.

Espero que as palavras deem conta de narrar o processo de deslocamentos reflexivos que tenho experienciado. Para tanto, na primeira seção, demarco alguns elementos de minha constituição identitária docente (FARIAS, 2009) enredados na história de vida, na formação e na prática pedagógica com o intuito de localizar e compreender tanto a trajetória dos meus deslocamentos teóricos quanto às opções por novos interlocutores nessa tese, seguida da reflexão sobre a composição do percurso metodológico da pesquisa na perspectiva da análise do discurso foucaultiano.

Na segunda seção apresento o universo espaço-temporal da pesquisa, o Programa Mulheres Mil. Analiso os documentos que o configuram como política pública de inclusão produtiva e sua execução no câmpus Santo Augusto do Instituto Federal Farroupilha como referenciais para apresentar as mulheres, sujeitas dessa pesquisa enquanto população e constituição da amostra. Parto do que se sabe dessas mulheres enquanto grupo social participante do Programa Mulheres Mil e sigo com as narrativas individuais, de sete mulheres, compondo a discursividade que as singulariza.

Na terceira seção problematizo como a herança educativa do analfabetismo feminino se aproxima do século XXI. Mostro, inicialmente, como as mulheres pesquisadas herdaram essa condição, analisando as implicações sociais, históricas, políticas e culturais. Após, analiso as aproximações discursivas em correlação com diferentes campos discursivos: a história das mulheres nos aspectos da educação, da escolarização e da possibilidade de trabalho formal e renda. Também, analiso o campo discursivo sobre alfabetismo e analfabetismo, desde concepções teóricas e significações produzidas pelas mulheres, e as estratégias de inscrição no cotidiano da sociedade grafocêntrica.

Na quarta seção constituo um percurso analítico teórico entre as duas facetas, herdar e transmitir, no processo de configuração de heranças educativas. Inicialmente, apresento as pesquisas sobre analfabetismo, mães analfabetas e filhas escolarizadas localizadas no banco de teses e dissertações da Capes. Na sequência, desenvolvo algumas categorias teóricas sobre os conceitos de gerações e heranças, focando na constituição de um conceito de heranças educativas e suas implicações escolares.

Na quinta seção exploro a possibilidade de reconfiguração das heranças educativas das filhas de mulheres analfabetas. O foco, agora, são duas mulheres, Isaura e Dalva. Localizo

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em suas narrativas a constituição de suas famílias, ilustrada pelos genogramas, e o movimento empreendido na inscrição de suas heranças educativas mediante a análise dos enunciados sobre os percursos escolares de suas filhas.

Na última seção, mostro as respostas das filhas herdeiras frente à delegação das heranças educativas, desde a acolhida daquilo que é possível e passível de continuidade na sua linhagem, e o que, de certa forma, escolheram fazer diferente. Analiso as situações discursivas recorrentes em “dar às filhas a escolarização que não tiveram”, e a responsabilização das herdeiras “a gente cria e pensa, agora, é contigo!”. Discorro sobre o posicionamento comum das filhas, num lugar de “não mais” analfabetas e “ainda não” plenamente escolarizadas.

(20)

“Há tantos quadros na parede há tantas formas de se ver

o mesmo quadro” (Humberto Gessinger, 1992)

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1 DESLOCAMENTOS EXPERENCIADOS E PERCURSO METODOLÓGICO DA PESQUISA

E se não me perguntarem de onde venho? Além de concordar com Maria Zambrano (apud ARROYO, 2011) “não é de todo infeliz aquele que pode contar a si mesmo a própria história”, argumento que para contextualizar a escrita, o tema e o foco da pesquisa e a acolhida às narrativas, dizer de onde parti e das sinuosidades do percurso torna-se significativo, assim como a visualização da marcação da chegada.

Falo das andanças, nesses vinte anos de docência, das perguntas lançadas e de respostas que produziram algum sentido, desde a inserção no Curso de Pedagogia1 que possibilitou uma iniciação à formação ao exercício da docência, à pesquisa, à extensão e a uma visão política, social e histórica arraigada nos aportes teóricos da Pedagogia Crítica.

Da primeira experiência com extensão universitária na capacitação dos alfabetizadores e acompanhamento aos grupos do Programa Alfabetização Solidária2em Andorinha (BA) e Bacurituba (MA) já despertou meu interesse a condição das mulheres irem à aula, acompanhadas dos filhos, o que era justificado pelo fato do casal estar estudando, ou mesmo por não ter com quem deixá-los. Admirava os alfabetizandos e as alfabetizandas pela persistência em participar do Programa, pois muitos percorriam longas distâncias a pé, de bicicleta, ou mesmo de jegue, na escuridão das noites quentes do sertão nordestino, após um dia inteiro de trabalho braçal.

O trabalho voluntário, como apoiadora pedagógica do Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos do Estado do Rio Grande do Sul (Mova/RS) na cidade de Getúlio Vargas/RS, possibilitou observar os diferentes processos de aproximação e distanciamento das mulheres em relação ao Mova: houve resistência ou impedimentos por parte das mulheres em participarem dos grupos de alfabetização – sendo que algumas se reconheciam analfabetas, durante as buscas na comunidade, mas nunca participaram das aulas; outras iniciaram, mas não permaneceram, se afastaram e não retornaram; houve quem realizou um movimento constante

1 Habilitação ao Magistério das Séries Iniciais e das Matérias Pedagógicas do 2º Grau na Universidade Regional

Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) – Campus de Erechim. Ao concluir o Ensino Fundamental, fiz uma opção pelo Magistério, mas não foi possível cursá-lo, pois o Colégio Santa Clara (na minha cidade de origem, Getúlio Vargas) era particular e os meus pais não tinham condições de custear o mesmo. O desejo pela profissão prevaleceu durante o Ensino Médio de Auxiliar de Escritório, influenciada pelos professores da área de Ciências Humanas.

2 Programa articulado pelo Conselho da Comunidade Solidária, desde 1998, dirigido a municípios com os maiores

índices de analfabetismo no Brasil. Uma parceria entre as prefeituras dos municípios (garantia de instalações), universidades (capacitação dos alfabetizadores, coordenação e avaliação do curso), MEC (financiamento da metade dos custos) empresas e instituições (adoção de municípios para financiamento da outra metade dos custos). Dentre os trabalhos produzidos a respeito, destaco a tese de Clarice Traversini (2003).

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de afastamento e retorno; também aquelas que persistiram até alfabetizarem-se, outras tiveram o processo de alfabetização truncado pela interrupção da proposta da administração popular, no final do ano de 2002.

Da experiência mais significativa no magistério público estadual, a participação no processo de implementação da modalidade de EJA – Ensino Médio – decorreu a inquietação ao constatar que 55% dos estudantes ingressantes frequentavam essa mesma escola quando se afastaram dos estudos, por diversos motivos: trabalho, situação financeira, família, casamento, gravidez, filhos, marido, pai, desejos e compromissos juvenis, festa, bar, amigos, bate-papo, exército, incompatibilidade com a cultura escolar, dificuldade na aprendizagem dos conteúdos, atritos com o professor e rigidez dos horários. A mesma instituição que, de certa forma, contribuiu para o afastamento das crianças, adolescentes e jovens num processo de exclusão – revelado na postura autossuficiente, na rigidez da organização dos tempos e espaços, na incompatibilidade cultural com os educandos – acolhe-os, num outro momento de suas vidas, com propostas diferentes de ensino e aprendizagem, de relacionamentos, de espaços educativos e de reconhecimento de saberes. O que, para mim, evidenciava-se paradoxal.3

Trabalhar com a educação de jovens e adultos, sem formação inicial específica, desafiou, além do autodidatismo, a buscar a continuidade dos estudos, e a opção foi pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, inicialmente como aluna do Programa de Educação Continuada4 e em seguida como mestranda na linha de pesquisa Educação, Culturas, Ações Coletivas e Estado. Esta experiência foi desestabilizadora, pôs em dúvida as concepções, as práticas, as certezas, as crenças e os conceitos. Até então, tinha muita segurança ao escrever, falar, declarar minhas posturas, brigar com aqueles que não compactuavam com as mesmas ideias, classificar práticas, teorias, profissionais, pessoas e comportamentos. Experimentei mais intensamente a minha incompletude, no direito de não dar respostas prontas, de mudar de ideia, de errar, de recomeçar, de duvidar, de voltar atrás, rever, de somente ouvir e não opinar de imediato, de amadurecer, de cansar, de desabafar, de precisar de ajuda, de transgredir. O que Paulo Freire (1998, p. 58) denomina como consciência do inacabamento “gosto de ser homem, de ser gente, por que sei que minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida”.

O meu mestrado culminou com a dissertação “Mulheres das classes populares: histórias e saberes”, orientada pela Professora Drª. Jaqueline Moll, concluída em 2005. A reflexão foi a

3 Reflexões publicadas no artigo Inclusão e Exclusão na Escola: um paradoxo (MORAES, 2006b).

4 Cursei duas disciplinas com o Professor Dr. Nilton Bueno Fischer (in memorian).

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respeito de quem são as mulheres das classes populares, sujeitos dos programas de alfabetização de adultos e como elas se constituem na perspectiva das relações de saber – em que estão imersas no cotidiano – e as relações com o saber, tendo a leitura e a escrita como saberes-objetos e o Mova/RS na cidade de Getúlio Vargas/RS como ponto de confluência. Concluí que as mulheres das classes populares vão se constituindo, enquanto tais, na “escola da vida”, por meio do diálogo, conversa, “fofocagem”, observação da natureza, participação em diferentes grupos, em cada experiência do mundo feminino no processo dinâmico da vida. Quanto às relações com a leitura e a escrita, concluí que as egressas do Mova o tiveram como espaço de confluência, convergindo na busca desse saber-objeto, porém diferenciando-se nas motivações pela alfabetização.

Enquanto docente do Ensino Superior (URI – Campus de Erechim/RS) e do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico no Instituto Federal Farroupilha (IFFAR) – Campus Santo Augusto/RS, algumas atividades foram mais significativas5 no campo da educação de jovens e adultos e motivaram o retorno aos estudos em nível de doutoramento. A opção foi pela linha de pesquisa Educação Popular em Movimentos e Organizações Sociais, do Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências da UNIJUÍ. Merece destaque à docência no Programa Mulheres Mil, no componente curricular “Mulher e identidade feminina” do Curso Higiene, Produção e Conservação de Alimentos. Discuti os elementos instituídos e instituintes da identidade feminina no cotidiano das classes populares a fim de compreender, valorizar e contribuir no processo de constituir-se mulher. Ouvi duzentas histórias de vida6 e fui visualizando as categorias construídas para a análise dos elementos comuns dos relatos de vida das quatro mulheres sujeitos da pesquisa de mestrado. Retomei um dos pressupostos epistemológicos da dissertação de Mestrado a opção pelo “paradigma emergente” de Santos (1999), mais especificamente, a tese “Todo conhecimento é local e total” que sustentou a ideia da singularidade de cada mulher e a dinâmica própria da vida, mesmo pertencendo à mesma classe social e aproximando-se em função de aspectos comuns. Reconheço o propósito da exemplaridade e não da generalização, tanto que ao trabalhar com a amostra de quatro mulheres, não me sentia autorizada a falar da população da pesquisa. Porém, me surpreendi ao constatar

5A coordenação de projetos de formação de professores tanto em extensão quanto na pós-graduação.

6 Nomeado de Mapa da Vida no documento base do Programa Mulheres Mil, considerado uma ferramenta no

processo de construção da política pública que objetiva criar oportunidade e ambiente para compartilhar as experiências de vida das mulheres, para que elas possam ser devidamente registradas, validadas e valorizadas. O método potencializa o sujeito como autor da história da sua vida, do seu grupo, instituição ou comunidade. A construção do mapa da vida estimula pessoas a organizar sua própria história numa cronologia que possibilite que cada uma visualize e apresente sua trajetória global (BRASIL, s.d.).

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uma extensão dessa exemplaridade ao se pensar as mulheres, adultas, das classes populares,7 sujeitos dos programas de inclusão social pelo viés da educação.

Nesse lugar – de professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico, com atuação em ensino, extensão e pesquisa – o deslocamento começou a ganhar velocidade causando um transbordamento de experiência, só que carente de atenção analítica. Assim, compreendo que a gênese desse processo de deslocamento reflexivo implicado nessa escrita é anterior a inserção profissional na área da educação, pelo viés de formação na perspectiva da pedagogia crítica, encontra-se inclusive nas marcas deixadas pela pedagogia tradicional ainda na minha escolarização básica, bem como pela catequese católica, relações de saber estabelecidas na família e outras formações não discursivas.8

Ao conhecer a pedagogia crítica, passei a questionar o que havia vivenciado, o que fizeram de mim. No mestrado, consegui compreender que a pedagogia crítica se renova por meio de leituras mais ecléticas com possibilidades múltiplas, busquei entender o que eu fiz com o que fizeram de mim. Já no doutorado estou num processo de releitura, buscando compreender como certos discursos se legitimaram na minha trajetória e quais as possibilidades de desconstruí-los e reconstruí-los. Desconstrução, na perspectiva de Derrida e Roudinesco (2004), remete a um trabalho de pensamento inconsciente e consiste em desfazer,9 sem nunca destruir, um sistema de pensamento.

Esse deslocamento teórico não é particular, é social e necessário, pois faz parte de um movimento muito maior, denominado como revolução paradigmática,10 pós-modernismo ou fim das metanarrativas.11 Com nomenclaturas diferentes, Mires (1996) e Silva (2002) remetem

7 Optei pela expressão classes populares, embora na literatura estudada, também, encontrei os termos camadas e meios populares.

8 Fischer (2001) conceitua as formações não discursivas como instituições, processos sociais e econômicos partindo do entendimento do discurso enquanto prática social.

9 Essa expressão remete à imagem da ação de “desmanchar” uma blusa tricotada à mão. Você desfaz para refazê-la, torná-la melhor, não para destruí-la.

10 Termo utilizado por Mires (1996) ao analisar os questionamentos às oito teses da Modernidade: 1) determinação (causa – efeito); 2) naturalismo (a naturalização do social, do econômico, do político); 3) essencialismo (todo fenômeno tem essência, é verdadeiro, e a aparência é uma projeção da essência, para descobri-la dividir o todo em partes – cartesianismo); 4) racionalismo (razão endeusada); 5) pensar dicotômico (divisão geométrica “ou”); 6) projeção de transcendência (ideia de que existe um plano externo que deve ser seguido, ligado à determinação); 7) Determinismo (há uma ordem universal, objetiva e imutável); 8) Ciência: objetivo (a matéria, é científico) x subjetivo (o imaterial – metafísico, teológico, espiritual, filosófico).

11 Silva (2002) conceitua o pós-modernismo como um movimento intelectual que proclama que estamos vivendo uma nova época histórica, a Pós-Modernidade, radicalmente diferente da anterior, a Modernidade. Esse movimento questiona seis elementos da Modernidade: 1) a pretensão da totalidade do saber – metanarrativas; 2) a razão e a racionalidade; 3) dúvida do progresso; 4) a essência; 5) sujeito racional, livre, soberano, fragmentado; 6) a linearidade.

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a um momento instituinte de novos paradigmas da ciência,12 que se refletem nas teorias do conhecimento, da educação, do currículo, da sociologia, da história, da história das mulheres, das teorias de gênero, das concepções de alfabetização e alfabetismo.

Novas configurações nas experiências sociais demandam rever compreensões e teorizações. Nessa perspectiva, as concepções são retomadas nas análises sociológicas que apontam não somente para as diferenças de classe, mas também para as desigualdades de gênero, étnico-raciais, culturais e geracionais (WELLER, 2010). A teoria crítica reclama a renovação de uma sociologia das ausências por uma nova ecologia dos saberes, das temporalidades, do reconhecimento, da transescala e das produtividades (SANTOS, 2007). A Educação Popular também busca novos paradigmas ao reconhecer o esgotamento das chaves de leitura das coordenadas teóricas críticas, as quais orientaram o pensamento e ação da esquerda social e política mundial e latino-americana, as quais não dão conta de explicar as recentes transformações sociais, políticas e culturais (CARRILLO, 2010).

As transformações na historiografia, inicialmente focada numa racionalidade universal, direcionam seu interesse para a história de “pessoas comuns”, compreendidas desde as contradições de classe, avançam pluralizando os objetos de investigação e a percepção do significado das sutilezas, desvendando as invisibilidades, dentre elas as mulheres (SOIHET e PEDRO, 2007). As teorizações de gênero também enfatizam a necessidade de deixar de enfocar, de forma isolada, aquilo que mulheres ou homens fazem ou os processos educativos pelos quais seres humanos se constituem como mulheres ou homens. Em outra direção, sinalizam a necessidade de compreender esses aspectos e processos, articulando-os aos diferentes modos pelos quais o gênero opera estruturando esse social, que os torna possíveis e necessários (MEYER, 2004). As concepções clássicas de alfabetização fundamentadas na aquisição do código da leitura e da escrita, como uma questão de tudo (alfabetizado) ou nada (analfabeto) são colocadas sob suspeição pelas teorizações de múltiplos alfabetismos (TRINDADE, 2004).

Com base nos pressupostos acima mencionados, continuo com o foco da pesquisa, tratando sobre analfabetismo e mulheres participantes dos programas de inclusão social, porém lançando-me ao desafio de outras abordagens do tema e de percurso metodológico. Como na composição de Gessinger (1992) na epígrafe dessa seção “há tantos quadros na parede, há tantas

12 Mires (1996), ao decretar as oito teses que se vão, anuncia a era da responsabilidade em que a razão endeusada deve ser convertida em algo humanamente justo. A razão da vida e suas questões existenciais: de onde eu vim, para onde vou, quem sou eu, qual o sentido da vida, qual é o meu lugar. Tudo é relativo, o tempo, o espaço, as relações, os significados, as representações. Não somos atores de uma realidade objetiva, mas criadores da realidade que participamos.

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formas de se ver o mesmo quadro”, optei pelo mesmo quadro, porém desafiando-me a olhá-lo de outras perspectivas. Por isso, intencionalmente, na epígrafe de cada seção, apresento a mesma imagem da capa “As rendeiras de Kaliazin”, (des) configurando os efeitos visuais de cores, formas, reflexos, rotação, bordas, luzes e sombras. Ora aproximando, ora distanciando da imagem original da capa, o que inspira e convida ao exercício analítico que me propus desenvolver sobre mulheres e heranças educativas.

1.1 Análise do discurso: aproximações com o método do percurso metodológico

Foucault (1999) apresenta inquietações diante do que é discurso em sua realidade material de coisa pronunciada ou escrita, diante dessa existência transitória cuja duração não nos pertence e que tem como destino ser apagado. Inquietação de sentir seus poderes e perigos “inimagináveis”. Dentre os perigos apresenta a hipótese de que a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por procedimentos externos e internos. No grupo de procedimentos externos, formam-se três sistemas de exclusão que atingem o discurso, apoiados sobre suporte institucional: a interdição (a palavra proibida), a separação e rejeição (a segregação da loucura), a oposição do verdadeiro e falso (a vontade das verdades).

Já no grupo dos procedimentos internos na dimensão do acontecimento e do acaso, identificam-se desnivelamentos entre os discursos: os discursos que se dizem no correr dos dias e das trocas, que passam com o ato que os pronunciou, e os discursos que para além de sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer. Nesse último grupo destacam-se os textos religiosos, jurídicos, literários, científicos.

Parto da afirmação de que “o desaparecimento radical desse desnivelamento não pode nunca ser senão um jogo, utopia ou angústia” (FOUCAULT, 1999, p. 23), ensaio um deslocamento ao analisar discursos de mulheres, esses discursos que passam com o ato de quem os pronunciara, e trazê-los ao estatuto do que permanece dito e do que ainda está por dizer.

O controle dos discursos impõe aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras, não permitindo que todo mundo tenha acesso a eles: a rarefação dos sujeitos que falam. Impõe certas exigências ou qualificação para fazê-los e a forma mais superficial e mais visível desses sistemas de restrição é constituída pelo ritual. Esse define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam, os gestos, comportamentos, circunstâncias, e todo conjunto de signos que acompanham o discurso (FOUCAULT, 1999).

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Nessa perspectiva, Foucault (1999) reconhece, enquanto procedimentos de sujeição do discurso, a distribuição dos sujeitos que falam nos diferentes tipos de discurso e a apropriação dos mesmos por certas categorias de sujeito. E elenca, como sistemas de sujeição do discurso, o sistema de ensino, a escritura, o sistema judiciário, o sistema institucional da medicina. Por outro lado, acredita que uma cumplicidade primeira com o mundo fundaria para nós a possibilidade de falar dele, nele; de designá-lo e nomeá-lo, de julgá-lo e de conhecê-lo sob a forma das verdades. Indaga: “Se o discurso existe, o que pode ser, então, em sua legitimidade, senão uma discreta leitura?” (FOUCAULT, 1999, p. 48). Conceitua, então, discurso como regimes de verdades que produzem identidades:

O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos; e quando tudo pode, enfim tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da consciência de si (FOUCAULT, 1999, p. 49).

E a análise do discurso em suas condições, jogos e efeitos exigem decisões do nosso pensamento: questionar nossa vontade de verdades; restituir ao discurso seu caráter de acontecimento, suspender a soberania do significante. O método implica certas exigências ou princípios de inversão, de descontinuidade, de especificidade, de exterioridade. São quatro noções que servem de princípio regulador para a análise do discurso – acontecimento, série, regularidade e a possibilidade – e se opõem, respectivamente às noções que, de modo geral, dominaram a história tradicional: criação, unidade, originalidade, significação (FOUCAULT, 1999).

Os discursos podem ser tratados como conjuntos de acontecimentos discursivos. O acontecimento é sempre no âmbito da materialidade que ele se efetiva, produz-se como efeito de e em uma dispersão material. O discurso funciona nas coisas ditas, na materialidade, e não como algo a ser interpretado. Definida a complexidade do campo conceitual do discurso, questiono como operacionalizar a análise do discurso tendo como materialidade as falas das mulheres. Parece que o percurso de análise requer cautela, nesse sentido problematizo, ponto por ponto, o processo de captura das falas mediante a entrevista narrativa, o tratamento adequado às falas durante a transcrição e a operacionalização da análise do discurso.

Para Schütze (2013), a entrevista narrativa autobiográfica compreende três partes centrais. A primeira, com uma questão narrativa orientada autobiograficamente, onde o objeto da narrativa é efetivamente a história de vida, não devendo ser interrompida pelo

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pesquisador-entrevistador. Após a indicação de uma coda13 narrativa, o pesquisador-entrevistador inicia a segunda parte, com suas perguntas, explorando o potencial narrativo tangencial de fios temáticos narrativos transversais, que foram cortados em fragmentos, inicialmente, resumidos pelo estilo narrativo. A terceira parte consiste no incentivo à descrição abstrata de situações, de percursos e contextos sistemáticos que se repetem, no estímulo às perguntas teóricas do tipo “por quê” e suas respostas argumentativas.

O resultado é um texto narrativo que apresenta e explicita de forma continuada o processo social de desenvolvimento e mudança de uma identidade biográfica, isto é, sem intervenções ou supressões decorrentes da abordagem metodológica ou dos pressupostos teóricos do pesquisador (SCHÜTZE, 2013, p. 213).

As fronteiras tênues entre o dito, o transcrito e o analisado pelo pesquisador são algumas de minhas preocupações-acompanhantes na dinâmica da pesquisa qualitativa. Andrade (2012, p. 187) sinaliza a respeito da transcrição das coisas ditas:

[...] compreendi a impossibilidade de reconstrução ou reintegração da narrativa do modo mesmo como foi enunciada. Isso porque, ao ser dito e tornar-se público, o enunciado coloca-se fora daquele que enuncia, fazendo parte de outro contexto e de outro tempo, podendo ser (re) inventado na análise da pesquisadora. A coisa escrita aprisiona a ideia dita; ao se transcrever uma narrativa, aprisionam-se e retiram-se outros sentidos que a fala pode ter colocado.

Os principais argumentos a favor de empreender um tratamento adequado às falas, revisando as transcrições de entrevistas, de acordo com Moraes e Schwengber (2017), são: 1) o autor do trabalho se dá o direito de revisar seu texto, por que então não vai deixar que os textos de outras pessoas sejam revisados, mesmo que sejam transcrições; 2) as transcrições de falas não têm que abarcar as diferenças de pronúncia, por exemplo. A língua falada soa diferente da escrita; 3) a fala é diferente também porque a pessoa não pode voltar atrás no que já falou e corrigi-la. O que está dito está dito, e pronto. A transcrição tem que ser fiel ao conteúdo, e não aos ditos “erros” de coloquialidade da fala; 4) não revisar as transcrições de falas é um modo de marcar os sujeitos entrevistados, a grafia incorreta na transcrição marca o falante. A linguagem passa “informações” sobre os sujeitos; 5) uma transcrição, para ser exatamente igual ao que foi dito, tem que ser fonética, utilizando outros símbolos, não as letras convencionais da escrita – trata-se de outro código; 6) uma transcrição mais fiel à fala, só teria razão de ser se o pesquisador estivesse estudando esta ou outras possibilidades de variação linguística especificamente. Quer dizer, o trabalho estaria situado na área da linguística.

13De uma finalização: “Então era isso...”.

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A respeito da operacionalização da análise do discurso, opto pelo caminho já percorrido por Fischer (2001, 2012) ao trabalhar com a perspectiva teórica de Foucault. Parto da definição do discurso como um conjunto de enunciados que se apoiam na mesma formação discursiva e analiso os quatro elementos básicos do enunciado: o referente, o fato de ter um sujeito que pode afirmar efetivamente aquilo, o fato do enunciando não existir isolado, mas sempre em associação e correlação com outros enunciados do mesmo discurso (diferentes campos discursivos) e a materialidade do enunciado.

Na análise do discurso, na perspectiva dos enunciados, aparecem como referente as mulheres, público-alvo do Programa Mulheres Mil: mulheres com histórico de adultez precoce14 refletindo na precarização dos processos de escolarização, de inserção no mundo do trabalho formal e de renda mínima. A análise da caracterização discursiva do público-alvo nos documentos do Programa Mulheres Mil, das narrativas das participantes do projeto piloto nas regiões norte e nordeste quanto às adjetivações atribuídas às mulheres, e da sistematização das narrativas das mulheres participantes da pesquisa é possível afirmar a existência de sujeitos que confirmam um conjunto de marcas sociais que ao mesmo tempo as singularizam e as coletivizam. Além disso, os enunciados, na sua materialidade, estão em correlação com diferentes campos discursivos: da política pública, da história das mulheres nos aspectos da educação, da escolarização e das possibilidades de trabalho formal e renda.

A investigação respeita os princípios básicos da pesquisa qualitativa em educação: 1) a fonte direta de produção dos dados é o ambiente natural, constituindo o investigador o instrumento principal; 2) a investigação qualitativa é descritiva; 3) os investigadores qualitativos interessam-se mais pelo processo do que simplesmente pelos resultados ou produtos; 4) tendem a analisar os seus dados de forma indutiva; 5) o significado é de importância vital na abordagem qualitativa (BOGDAN e BIKLEN, 1994). Utilizo a entrevista narrativa para a produção das falas, que ao serem transcritas receberam o devido tratamento já mencionado anteriormente, constituindo-se em potenciais “discursos”, cuja opção de análise foi na perspectiva dos enunciados.

Nada simples, pois como afirma Fischer (2001), o enunciado, diferentemente dos atos de fala e das palavras, não está imediatamente visível, nem inteiramente oculto. “As ‘coisas ditas’, portanto, são radicalmente amarradas às dinâmicas de poder e saber de seu tempo. Daí que o conceito de prática discursiva, para Foucault, não se confunde com a mera expressão de

14 Adultez antecipada ainda no período cronológico da infância e da juventude (MORAES, 2005). Implica assumirem atividades do mundo adulto: trabalhar, responsabilizar-se com a casa, com o cuidado para com a família, contribuir com a renda familiar, compor a própria família, casar, sustentar-se por conta própria.

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ideias, pensamentos ou formulação de frases” (FISCHER, 2001, p. 204). Então, indago: como reconhecê-lo? Como captar o enunciado? “Trata-se de um esforço de interrogar a linguagem – o que efetivamente foi dito [...]. Simplesmente, perguntar de que modo a linguagem é produzida e o que determina a existência daquele enunciado singular e limitado [...] trata-se de mapear os ditos” (FISCHER, 2001, p. 205).

A produção dos dados se deu em três etapas. Primeiramente, analisando a documentação das alunas egressas do curso de qualificação profissional em produção alimentícia Programa Mulheres Mil do IFFAR – Campus Santo Augusto/RS. Constatei que de um universo de duzentas mulheres atendidas em 2012 e 2013, catorze mulheres se declararam analfabetas absolutas no ato da matrícula. Esse número representa o percentual de 7% de analfabetismo, o qual se aproxima da realidade do país (8%), da região Celeiro (8,5%) e do município de Santo Augusto/RS15 (9,1%), conforme demonstrado nos mapas nas Figuras 1 e 2:

15 Santo Augusto pertence ao Conselho de Desenvolvimento Regional (COREDE) Celeiro, composto por vinte e um municípios: Barra do Guarita, Bom Progresso, Braga, Campo Novo, Chiapetta, Coronel Bicaco, Crissiumal, Derrubadas, Esperança do Sul, Humaitá, Inhacorá, Miraguaí, Redentora, Santo Augusto, São Martinho, São Valério do Sul, Sede Nova, Tenente Portela, Tiradentes do Sul, Três Passos, Vista Gaúcha (FEE, 2015). A região Celeiro é dedicada principalmente à cultura de grãos, como soja, milho e trigo, principalmente em monoculturas, mas nos últimos anos a suinocultura tem crescido bastante na região.

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Figura 1 – Taxa de analfabetismo da população de 15 anos ou mais na região Celeiro/RS

Fonte: Censo Demográfico, 2010.

Num segundo movimento, optei por investigar as sete mulheres egressas da turma 2013, pois essa foi a última oferta do Programa Mulheres Mil, no campus Santo Augusto/RS, anterior à incorporação do mesmo ao Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec).16 Na sequência, após contatar as mulheres, realizei as entrevistas semiestruturadas, gravando para posteriormente transcrever as narrativas. Dentre elas, escolhi duas para prosseguir a investigação sobre a inscrição das heranças educativas. Os critérios seguiram uma lógica: ter filha mulher, a frequência com que se referiam à mesma na sua entrevista, e dispor-se a falar mais da relação mãe e filha.

Desenvolvi dois roteiros de entrevistas semiestruturada, um para cada momento/movimento. O primeiro com as sete mulheres, perguntando sobre sua história de vida,

16 O Pronatec, criado pelo Governo Federal em 2011, por meio da Lei n. 12.513/2011, tem como objetivo expandir, interiorizar e democratizar a oferta de cursos de educação profissional e tecnológica no país ampliando as oportunidades educacionais e de formação profissional qualificada aos jovens, trabalhadores e beneficiários de programas de transferência de renda (BRASIL, 2011).

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como foi a educação, durante a infância e juventude, na família, na escola e outros espaços. Sobre dados que a identifique como idade, estado civil, profissão/ocupação, renda média, situação de domicílio, configuração familiar (o número de filhos, a chefia da família) e práticas culturais.17 Mais especificamente sobre o analfabetismo, indaguei sobre as exigências do cotidiano quanto ao conhecimento da leitura e da escrita, o que significa ler e escrever, e como se percebem na condição de não dominar a leitura e a escrita.

No segundo momento/movimento, com duas mulheres, solicitei que descrevessem a(s) filha(s), e abordassem elementos que as identificassem (os mesmos da sua entrevista). E para aprofundar o foco nas heranças educativas, perguntei sobre os aspectos das escolhas da(s) filha(s), em relação à escolarização, profissão e composição familiar que consideram semelhantes e/ou diferentes da sua trajetória de vida. E se percebem essas mesmas questões na relação da(s) sua(s) filha(s) com a(s) filha(s), em que aspectos se assemelham e em que aspectos se diferenciam.

As gravações foram transcritas, e as narrativas passaram a constar num quadro possibilitador da identificação das unidades de análise do discurso, possíveis autores para fundamentação teórica e comentários analíticos da pesquisadora. Com esses elementos esboçados, segui com a escrita do texto, assumindo todos os riscos que incidem nessa prática de análise discursiva. Por fim, é possível confirmar que o todo é maior que a soma das partes (MORIN, 2000), pois a contextualização do discurso dessas mulheres está, também, imbricado nas vivências, anteriores, do saber experiencial do trabalho na docência, na pesquisa e na extensão.

Enfim, a pesquisa como um todo está imbricada nas motivações pessoais, o que não diminui sua relevância social. Enquanto o analfabetismo absoluto e a geração de analfabetos não se tornarem temas de estudo, apenas, da história da educação, mas se apresentarem como um desafio a ser superado no país, na região Celeiro e no município de Santo Augusto cabe abordá-los como propósito de investigação. A taxa de analfabetismo absoluto da população de quinze anos ou mais, da região Celeiro (8,5%) e do município de Santo Augusto (9,1%), demonstradas na Figura 1, ultrapassa a taxa do Estado do Rio Grande do Sul (3,55%) e a taxa nacional (8%). Em Santo Augusto, essa taxa iguala-se à região norte do Brasil (9,1%), ilustrada no mapa abaixo:

17 Pergunta sobre com que frequência realizam as atividades de ir ao cinema, a exposições ou feiras, teatro, ouvir e contar histórias, ir a shows e espetáculos, ouvir noticiários no rádio, locar filmes em locadoras, assistir noticiários na TV, ir a museus, discutir assuntos da atualidade, ir à biblioteca.

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Figura 2 – Taxa de analfabetismo da população de 15 anos ou mais nas regiões brasileiras

Fonte: PNAD, 2015.

Dos dados das Figuras 1 e 2 fica visível que a região sul apresenta a menor taxa de analfabetismo (3,9%) comparada às outras regiões: sudeste (4%), centro-oeste (5,7%), norte (9,1%) e nordeste (16,2%). E dos vinte e um municípios que compõem a região Celeiro, Humaitá, que recebeu o selo de município livre de analfabetismo do MEC em 2014, apresenta a menor taxa (3,6%). Redentora apresenta a maior taxa de analfabetismo (16,3%), ultrapassando a taxa da região nordeste (16,2%) do país (PNAD, 2015).

Esses dados carecem de problematizações, as quais elenco algumas: provavelmente por ser um município com 59 anos de emancipação política18 e não ter desenvolvido políticas específicas na área de alfabetização de adultos, deixando a cargo das escolas estaduais19 no meio urbano e a cargo do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar)20 no meio rural,

18 Lei n. 3.721, de 17 de fevereiro de 1959, cria o município de Santo Augusto.

19 Escola Estadual de Ensino Fundamental Francisco Andrighetto (popular Grupo) e Escola Estadual Senador

Alberto Pasqualini (popular CIEP). As duas escolas, também, foram citadas pelas participantes da pesquisa ao relatarem suas experiências de alfabetização de adultos.

20 Com o Programa Alfabetizando para Profissionalizar (Alfa), que oportuniza para adultos do campo (produtores

e trabalhadores rurais com idade mínima de dezoito anos, com baixa escolaridade) a chance de aprender a ler e escrever, além de participação em cursos de formação profissional do Senar-RS. São 210 horas de alfabetização, complementadas por dois cursos regulares (SENAR/RS, 2016).

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conforme informações verbais de representante da Secretaria Municipal de Educação, ao buscar documentos in loco para pesquisa.

Também, por questões históricas de localização na região norte/noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, marcada pelas relações de desigualdades (e exploração) econômicas, políticas e sociais. Originariamente, as grandes propriedades e o poder de determinados grupos se legitimaram desde a instituição do sistema de posses, impregnado do espírito latifundiário e de sua oficialização pela Lei de Terras em 1850, bem como suas fraudes e usurpações, e da criação da Inspetoria de Terras e Colonização no Rio Grande do Sul em 1876. Desse modo, em nome da modernização, o Estado descaracterizou as populações nativas, indígenas e caboclos, e suas racionalidades econômicas e culturais, legalizando os sujeitos da riqueza e da pobreza.21

Essa realidade produziu uma constante reterritorialização do agrário, desenvolvida por relações de produção variadas. Trabalhadores de estâncias, extrativistas de erva-mate, da madeira, de unidades familiares policulturas e de subsistência, colonos que se transformaram em agricultores produtores de excedentes, capitalistas da terra (proprietários- rentistas), arrendatários que se transformaram em capitalistas proprietários fundiários (dentre esses está a figura expressiva da região denominada de “granjeiro”), pequenos agricultores, meeiros, assalariados, migrantes livres do campo, indígenas, descendentes de escravos africanos, dentre outros, configuram personagens, perfis, permanências, pobreza, privatizações, poder, patrimônios, patronatos em torno da estrutura agrária que se constituiu e permanece no sul do Brasil (TEDESCO e ZARTH, 2010, p. 154).

As narrativas das mulheres, analisadas na próxima seção, expressam de certa forma as consequências dessa configuração política e territorial que demarcou e (de) limitou o lugar social ocupado por elas. Algumas mulheres, na sua infância, trabalhavam durante a semana nas fazendas, voltavam para casa no sábado, com dinheiro para os pais. Esse parece ser um dos motivos mais evidentes pelos quais elas não estudaram. Também, mencionam o fato de “morar longe da cidade e da escola”, porém a “cidade” ainda não existia. Com exceção de Rosalina (45 anos), elas nasceram antes da emancipação política de Santo Augusto. Norma (71 anos) descreve as condições de habitação, no mato, durante sua infância e juventude e o estranhamento de mudar-se para a cidade, na vida adulta.

As possibilidades de escolarização, nesse contexto, foram restritas. Além dos professores que ensinavam em casa, como Benedito de Castro e o professor Franco, há registro de uma escola pública na Ramada de São Jacob. No ano de 1922, o professor Luiz Augusto de Carvalho começou a lecionar numa casinha próxima ao Cinema e Posto 2002, sendo

21 Tedesco e Zarth (2010) analisam a produção historiográfica sobre a configuração do território agrário do norte do estado do Rio Grande do Sul, à luz de uma nova historiografia fazendo emergir a história de grupos sociais antes silenciados.

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considerada como escola particular para os alunos do povoado e arredores. Em 1928, a localidade com o nome de Santo Augusto passou a ser Terceiro Distrito de Palmeiras das Missões e em 1934 foi inaugurada uma escola de madeira construída por André Baraldi, na praça. Ela se transformou em Grupo Escolar que, atualmente, leva o nome de Escola Estadual de Ensino Fundamental Francisco Andrighetto (OLIVEIRA, 2010).22

Por isso, as mulheres narram que “alguns iam à escola”, aqueles que tinham possibilidade de custear professor ou escola particular, ou deslocar-se até o lugarejo que se tornaria futuramente a sede do município. Porém, tem um dado que me intriga, a mais nova delas, Rosalina (45 anos), sempre morou na cidade de Santo Augusto e nunca frequentou a escola. A urbanização parece ter ampliado para elas “apenas” a possibilidade de trabalho “na casa das ricaças da cidade” (expressão das mulheres): lavar roupa, limpar a casa, cuidar de crianças, cozinhar. Nesse contexto, algumas das pesquisadas23 aprenderam assinar o nome, às vezes, em troca do trabalho realizado na casa das “patroas”.

Nesse sentido, há de se concordar que os índices de analfabetismo “são um retrato da dívida educacional brasileira, pois gerações de diferentes estratos de renda vivenciaram o acesso à educação de forma desigual” (BRASIL, 2015, p. 57). Essa pesquisa coloca em evidência a intersecção das dimensões dessa dívida – gênero, raça,24 classe, geração –, a qual nomeio de herança educativa. Ter as mulheres como foco de pesquisa tem relevância acadêmica e social, enquanto as mudanças discursivas a seu respeito, nos âmbitos público e privado, não atingirem todas elas, nas mesmas proporções.

22 O professor Odilon Gomes de Oliveira é um autodidata que colheu, sistematizou e publicou seus registros sobre a história de Santo Augusto. Iniciou essa tarefa de recolher depoimentos e documentos para que não se perdessem. Reconhece a limitação e as críticas ao seu trabalho e desafia os sociólogos e historiadores à análise dos dados (TOSO, 2003).

23 Discursos analisados na próxima seção.

24 Os conceitos de raça e etnia envolvem muitas disputas e polêmicas teóricas e políticas, exatamente porque são

elementos centrais dos processos de particularização e classificação de grupos e populações humanas. Estes marcadores sociais não têm em si um significado fixo, específico e imutável, e que os significados que eles assumem precisam ser localizados e compreendidos historicamente, no contexto dos confrontos e conflitos que se desenrolam dentro e entre movimentos sociais determinados. Os sentidos que eles carregam estão, frequentemente, associados com intenções e interesses que desencadeiam e/ou mantêm em funcionamento processos de conquista e subjugação, colonização e migração e se prestam para explicar e legitimar variadas práticas de privilegiamento, exclusão e subordinação social. No caso específico destes termos, seus sentidos referem a supostas diferenças de ordem biológica, fisionômica, moral, cultural, histórica e/ou territorial, que se articulam com (ou são traduzidas como) origens e destinos comuns e isto pode ser produzido no interior, no exterior ou na interconexão de diferentes grupos e processos sociais. Se faz necessário entender como as diferenças que delimitam grupos, com base nestas noções de pertencimento, se imbricam de modo importante com outras marcas, especialmente as de gênero (MEYER, 2000).

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Vem saudar cunhãs, irmãs de toda Terra, mulatas, cafuzas, negras, brancas, amarelas Vem saudar cunhãs, irmãs de toda Terra,

amas, sinhás, mães, filhas e As da mesma guerra Vim saudar cunhãs, vim saudar cunhãs.

(Karine Cunha)

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2 AS MULHERES E O CONTEXTO ESPAÇO-TEMPORAL DA PESQUISA

Constituo um percurso analítico entre o movimento de herdar e transmitir, partindo do que se sabe dessas mulheres, enquanto grupo social, participante do Programa Mulheres Mil. Analiso, nos principais documentos e publicações, o discurso sobre as mulheres consideradas “público-alvo” da política pública. Prossigo com as narrativas individuais compondo a discursividade que as singulariza. Após, analiso as aproximações discursivas em correlação com diferentes campos discursivos: a história das mulheres nos aspectos da educação, da escolarização e da possibilidade de trabalho formal e renda.

Inicio essa seção com a definição do conceito de gênero que fundamenta a pesquisa, e a contextualização da opção pelo uso do termo mulheres. Em seguida, apresento as sete mulheres participantes do primeiro momento/movimento da pesquisa, suas narrativas e as evidências históricas, sociais, políticas e culturais que têm contribuído na herança educativa do analfabetismo de mulheres no Brasil.

2.1 Escolha dos pressupostos conceituais

Quanto às questões conceituais se sabe que a categoria de análise de gênero enfrentou uma trajetória difícil no campo historiográfico, assim como a inclusão do termo mulher ou mulheres na categoria analítica da perspectiva histórica. Acreditava-se que ao falar de homens, as mulheres estariam sendo igualmente contempladas. De fato, nem todos os homens estavam representados, via de regra na modalidade de história herdeira do Iluminismo, era o homem branco ocidental, heterossexual (SOIHET e PEDRO, 2007).

Uma contraposição a essa modalidade de história iniciou com o grupo dos Annales (1920) e ampliou o leque de fontes e observou a presença de pessoas comuns. O marxismo assumiu uma posição significativa na historiografia, porém ao privilegiar as contradições de classe, a questão feminina, assim como as questões étnicas, foram consideradas secundárias. Já na década de 1960, as transformações da historiografia, com o movimento crítico do racionalismo abstrato, em seus desdobramentos – revisionismo neomarxista, Escola de Frankfurt, historistas, historiadores das mentalidades e do discurso no sentido da desconstrução de Derrida ou na linha de Foucault – articulado com os movimentos de mulheres e os Feminismos, tiveram papel decisivo no processo em que as mulheres são alçadas à condição de objeto e sujeito da História, marcando a emergência da História das Mulheres. Já no final da década de 1970, firmado o antagonismo homem versus mulher, outra tensão se instaurou, não

Referências

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