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As respostas das filhas frente à delegação das heranças educativas:

4 CONFIGURAÇÕES DAS HERANÇAS EDUCATIVAS DE MÃE PARA FILHA

6.2 As respostas das filhas frente à delegação das heranças educativas:

A inscrição das heranças educativas compreende e transcende o processo de transmissão, sucessão, delegação. É um ato de quem oferece, disponibiliza, responsabiliza, sem impor, nem se opor diante das escolhas da herdeira. Nos discursos, as mulheres demonstraram essa tensão entre o dar às filhas o que não tiveram e responsabilizá-las da continuidade das suas histórias: “A gente cria, e pensa agora é contigo. Tu podes trabalhar, podes estudar. Quer continuar, continues, mas se esforça, porque a gente não tinha condições de dar estudo maior” (Dalva, 68 anos). Parece que a intencionalidade das mães de que suas filhas estudassem foi maior do que a possibilidade de concretização. Investiram os esforços em apoio simbólico, de incentivo, de apontar possibilidades de uma vida diferente da sua, esforçando-se na compra ou nas soluções populares66 para produção de material escolar e de uniformes, que muitas vezes foram de uso coletivo entre as irmãs e irmãos.

Todas as crianças no colégio, e não ganhavam um lápis. Sabe qual era o lápis das minhas crianças? De pilha que usava no rádio, porque na época não havia luz. Quebrava a pilha, pegava aquele carvão e colocava dentro de um

66 Uma definição interessante de soluções populares foi localizada no prefácio do livro Que fazer: teoria e prática

em Educação Popular de Freire e Nogueira (1993), escrito por Brandão: as maneiras de definir qual é o problema

são também os caminhos de refletir como é o problema. Os problemas percebidos se inserem dentro de um sistema de saber e buscar soluções populares e, ao mesmo tempo, modificar as relações com esse mundo e nessas mudanças é que se elabora uma visão de transformação.

toco de taquara e dava para as crianças escreverem, era o lápis deles. E a borracha, era de chinelo de dedo. Meu guri tinha um caderno só e um tapa pó de uniforme. Eu dizia para ele não sujar, pois chegava ao meio dia e passava para a outra menina. Também pedia para ela não sujar, pois no outro dia cedo o maninho tinha que vestir. Na quarta de noite eu lavava, colocava em cima do fogão a lenha para secar. Também só tinha um caderninho, eu pegava e apagava o que o guri fazia de manhã pra guria escrever de tarde. Menina, eu sofri que Deus te livre (Isaura, 66 anos).

Esse esforço das mães, para que as filhas estudassem, ajuda a desconstruir o mito da omissão parental das classes populares. Geralmente produzido na escola, que não (re)conhece essas ações ao ter como parâmetro de medida as mobilizações familiares típicas da classe média.67 Portes (2011) fala do risco de se ignorar práticas originais empreendidas por essas famílias, nascidas diante das (im)possibilidades, imprevistas, de continuidade dos filhos no interior do sistema escolar. As famílias não podem se espelhar nas ações escolares mais conhecidas praticadas por outras frações de classes, pois empreender essas ações demandaria capital cultural e uma disposição econômica de que as famílias populares não dispõem. “Essas famílias lidam em um espaço ainda pouco compreendido por nós, educadores brasileiros, onde a privação, a instabilidade, a insegurança e a angústia impulsionam e orientam as ações” (PORTES, 2011, p. 77).

As filhas responderam de muitas formas, ora se aproximando do projeto das mães, distinguindo-se dela, ora se distanciando das expectativas de superação e assemelhando-se às mães. Um tanto paradoxal, mas é isso mesmo. Quanto mais solícitas aos anseios maternos para que estudassem, superando-as na condição de analfabetismo, menos se parecem com a mãe. Nesse sentido, as situações são distintas, no que se refere à escolarização das filhas de Isaura e Dalva, demonstradas nos Quadros 2 e 3, respectivamente:

67 Acompanhamento minucioso da escolaridade dos filhos, escolha ativa do estabelecimento de ensino, contatos frequentes com os professores, ajuda regular nos deveres de casa, reforço e maximização das aprendizagens escolares, assiduidade às reuniões convocadas pela escola dos filhos, utilização do tempo extraescolar com atividades favorecedoras de sucesso escolar (VIANA, 2011).

Quadro 2 – Escolaridade das Filhas de Isaura Nome Posição na Fratria68 Idade Série concluída Grau de escolarização Motivos da interrupção da escolarização

Cleo 2ª 50 4ª E. F. inc. Escola rural oferece até a 4ª série e falta de transporte escolar público para ir à cidade

Mari 3ª 48 4ª E. F. inc.

Elis 5ª 46 4ª E. F. inc.

Berenice 6ª 45 5ª E. F. inc. Trabalho e casamento

Vânia 7ª 38 5ª E. F. inc. Casamento

Fonte: Entrevista narrativa.

Quadro 3 – Escolaridade das Filhas de Dalva

Nome Posição na Fratria69 Idade Série/ano concluídos Grau de escolarização Motivos da interrupção da escolarização

Cris 1ª 47 8ª E. F. inc. Casamento

Dara 2ª 43 2º E. M. inc. Casamento

Júlia 4ª 36 3º E. M. comp. Falta de recursos

financeiros para cursar Ensino Superior

Fonte: Entrevista narrativa.

O Quadro 2 demonstra a escolarização das filhas de Isaura, todas com Ensino Fundamental incompleto. Três cursaram até a quarta série e duas até a quinta série. Das filhas de Dalva (Quadro 3) apenas uma tem Ensino Fundamental incompleto, tendo cursado até a oitava série. Uma concluiu o Ensino Médio e outra cursou até o segundo ano. Nesse contexto de estudo das heranças educativas, tendo como ponto de partida o analfabetismo das mães, é praticamente uma obrigação trazer a série ou ano70 cursados e não apenas a situação quanto ao nível de ensino, para captar as sutilezas dentro do mesmo nível. Pois há diferença entre a incompletude do Ensino Fundamental das filhas de Isaura (quarta e quinta série) e da filha de Dalva (oitava série). Assim como há diferença nos motivos dessa incompletude: a discrepância da oferta desse nível de ensino no meio rural e urbano na época cursada.

O Quadro 2 permite pensar que as filhas mais velhas de Isaura foram limitadas no percurso de escolarização por morarem no meio rural, onde a escola oferecia Ensino

68 A primeira e quarta posição na fratria são ocupadas pelos filhos. F1 é falecido e Isaura desconhece o grau de escolaridade de F2. Informou sobre a participação em vários cursos na vida adulta.

69 A terceira posição na fratria é ocupada pelo filho, que estudou até o 2º ano do Ensino Médio, interrompendo por motivo de gravidez da namorada, seguida do casamento.

70 Optei por manter a nomenclatura da série para se referir aos anos de estudo no Ensino Fundamental, pois todas elas cursaram o referido nível anteriormente à Lei n. 11.274, de 6 de fevereiro de 2006, que dispõe sobre a duração de nove anos para o Ensino Fundamental com matrícula obrigatória aos seis anos.

Fundamental incompleto. Apenas duas filhas cursaram a quinta série por serem mais novas e Isaura ter mudado com a família para a cidade. A cidade compreendida, não somente como possibilidade de aproximação da escola que oferta mais anos e graus de estudo, mas também como portadora de possibilidades educativas.

O fato da longevidade escolar das filhas de Dalva, se comparadas às filhas de Isaura, pode estar implicado em vários fatores, porém é preciso pensar que não há regras gerais para definir a condição escolar das classes populares, e no interior da mesma família há variações nos percursos escolares. Dentre os fatores pode estar o diferencial das condições oferecidas nas escolas da cidade em detrimento da oferta reduzida no meio rural em anos de estudo e classes multisseriadas. Inclusive, Romanelli (2013) argumenta sobre o universo uniforme e pobre em estímulos diversos, pois estabelecem relações igualadas pelas mesmas condições socioeconômicas e culturais, diferente da cidade que reúne alunos com características culturais distintas. Defende que alteridade nas relações com os pares é significativa na aquisição de capital cultural, permitindo o sujeito ampliar seus horizontes e alterar sua trajetória.

Além do fato de Dalva trabalhar em casas de família e levar as filhas que conviviam com sua “patroa”, escolarizada, pode ter dado a elas outras visibilidades, assim como se refere Velho (2012) sobre o leva e traz de experiências, informações, motivações, ambições profissionais, financeiras, de formação no papel desempenhado pelas empregadas domésticas. E quem sabe ainda pela solidão de Isaura em chefiar a família e acompanhar a escolarização dos filhos, enquanto Dalva contou com o companheiro que estudou até a quarta série. A própria escola olha para esses dois modelos de família de forma diferente, considerando a família nuclear mais adequada para o desempenho das crianças (CARVALHO, 2013).

Notadamente, tanto no Quadro 2 quanto no Quadro 3, percebe-se o avanço na escolarização das filhas conforme sua posição mais recente na fratria, o que provavelmente está associado às reconfigurações discursivas sobre educação das mulheres com o passar dos anos e ainda com o investimento em políticas públicas que envolvam as classes populares, principalmente a partir da década de 1990,71 bem como as mais novas terem se beneficiado das melhores condições de estudo na família, e o próprio auxílio das irmãs mais velhas nas tarefas escolares. Conforme Romanelli (2013), é necessário considerar a dinâmica interna das famílias, pois a vida familiar não é sempre a mesma ao longo de sua trajetória, e o modo como cada filha incorpora a herança familiar tende a ser diferente conforme sua posição na fratria. E embora a mobilização dos pais e dos filhos possa contribuir para o percurso escolar destes, não é

71 Análise detalhada desse período foi desenvolvida na seção 3.

suficiente para a diminuição das desigualdades escolares, pois depende igualmente da postura de cada filho ou filha diante da escolarização.

Indiferente da série e nível de ensino em que houve interrupção da escolarização, os motivos coincidem em casamento e gravidez para a metade delas. A outra metade ficou assim dividida: as três filhas mais velhas de Isaura interromperam por motivo da escola não oferecer possibilidade de continuidade no meio rural e ausência de transporte escolar público que as levasse até a cidade, e a filha mais nova de Dalva por dificuldades financeiras de ingressar na universidade.

Nem sempre o grau de escolaridade das filhas em relação à escolarização das mães, concedeu a elas uma situação de vida distinta. Faço um comparativo das ocupações entre Isaura e suas filhas no Quadro 4 e entre Dalva e suas filhas no Quadro 5.

Quadro 4 – Comparativo da ocupação de Isaura e suas filhas

Nome Idade Escolaridade Ocupações exercidas Ocupação

atual

Isaura 66 EJA – alfab. Empregada rural, diarista Agricultora

Cleo 50 E. F. inc. Agricultora Agricultora

Mari 48 E. F. inc. Vendedora informal Agricultora

Elis 46 E. F. inc. Costureira Costureira

Berenice 45 E. F. inc. Dona de casa Dona de casa

Vânia 38 E. F. inc. Dona de casa Produção

caseira de panificação

Fonte: Entrevistas narrativas.

Quadro 5 – Comparativo da ocupação de Dalva e suas filhas

Nome Idade Escolaridade Ocupações exercidas Ocupação atual

Dalva 68 EJA – alfab. Empregada doméstica, servente

Aposentada serviço público municipal –

servente Cris 47 E. F. inc. Empregada doméstica Dona de casa Dara 43 E. M. inc. Dona de casa Produção caseira de

panificação Júlia 36 E. M. completo Secretária administrativa em escola privada Dona de casa

Fonte: Entrevistas narrativas.

As filhas (e em muitas situações, as netas), tendo a possibilidade de fazer uma história diferente de suas mães, acabam reproduzindo determinadas dimensões, dentre elas a ocupação e a composição precoce de sua própria família. Essa última, apontada por Dalva como o

principal motivo de suas duas filhas (dentre três) e de duas netas (dentre cinco) interromperem os estudos.

As heranças educativas marcadas pela ausência de um projeto de escolarização de longo prazo, repercutiram na dimensão profissional sem intencionalidades, com marcas significativas de imprevisibilidade.

6.3 “Não mais” analfabetas e “ainda não” plenamente escolarizadas: as heranças educativas e suas implicações escolares

Arendt (2008) intitula como “Não mais e ainda não” a resenha do livro A morte de

Virgílio e me inspira a pensar, por meio dessa metáfora, a posição72 das filhas de Isaura e Dalva nessa perspectiva da inscrição das heranças educativas. As mães herdaram o analfabetismo do contexto da geração antecessora e inscreveram o incentivo à escolarização como herança educativa às suas filhas. Acolheram o que veio antes delas, mas se responsabilizaram com o que estava por vir, rompendo com o discurso das gerações anteriores, produziram questionamentos e estratégias (Não leio e não escrevo, mas me inscrevo!) para a sua condição de analfabetismo e formularam respostas pelas quais educaram e possibilitaram experiências sociais diferentes às suas filhas. Elas dão valor ao que lhes faltou (a escola), ao que lhes fez “incompletas” no exercício da cidadania no século XXI.

As filhas acolheram as investidas das mães para tornarem-se seu próprio acabamento, a sua superação (BOURDIEU, 2007), tanto que avançaram nos graus de escolarização, cada qual na sua especificidade conforme as condições e opções, o que as coloca na posição de “não mais” analfabetas. Porém, dentre as oito, apenas uma concluiu o Ensino Médio, e tinha o desejo de continuidade dos estudos no Ensino Superior. Uma delas tem Ensino Médio incompleto, e as outras seis Ensino Fundamental incompleto, o que as coloca na posição de “ainda não” plenamente escolarizadas. Como diz Arendt (2008), uma espécie de elo perdido entre um passado que se perdeu e um futuro que ainda não surgiu.

E esse futuro surgiria da possibilidade de escolarização plena para essas filhas de mulheres analfabetas, porém, analisando as narrativas, quanto ao tempo que se passou da interrupção dos estudos até o momento, não vejo pistas de concretização da retomada dos

72 Posicionamento aqui se refere ao conceito foucaultiano em que “posições de sujeito” se definem pela situação em que é possível o sujeito ocupar em relação às práticas sociais, aos diversos domínios discursivos (FOUCAULT, 2008).

estudos. Por outro lado, há pistas de esperanças na trajetória escolar de algumas netas e netos. Essa será a primeira geração nas famílias de Isaura e Dalva que terá acesso ao Ensino Superior.

Transformação essa fortalecida com as políticas institucionais e governamentais afirmativas de inclusão social implantadas nos primeiros anos do século XXI: políticas de caráter institucional, políticas de cotas ou bônus e uma política governamental, o Programa Universidade para Todos/ProUni, que dão acesso ao Ensino Superior a uma nova população oriunda das classes populares e das escolas públicas, declarados afrodescendentes, indígenas ou com necessidades especiais (NEVES, 2013). Essa progressão no sistema escolar e ingresso no Ensino Superior permitem, às vezes, um cenário de mudanças no próprio capital social e cultural da família (LIMA, 2013).

Mesmo não havendo uma certeza quanto à idade e série cursada pelas netas, assim como souberam declarar com exatidão sobre suas filhas, é possível identificar, com os dados trazidos por elas, e relacionar a escolarização das filhas e das netas, localizando a continuidade da inscrição das heranças educativas nessa terceira geração parental, conforme demonstrado no Quadro 6 sobre a família de Dalva e no Quadro 7 sobre a família de Isaura.

Quadro 6 – Escolaridade das netas e netos de Dalva73

Mãe/ Escolaridade Nome Posição na Fratria Idade Série concluída ou em curso Grau Motivo da interrupção Cris 8ª série E.F Neta C 1ª 25 desconhece Ensino Superior inc. Gravidez Dara 2º ano E. M Neto D 1ª 23 4ª E. F. inc. “Preguiça” de estudar Dara 2º ano E. M Neta D 2ª 22 7ª E. F. inc. Casamento Júlia E. M. completo

Neta J 1ª 15 estudante E. Médio –

Filho 2º ano E. M

Neta F 1ª 15 estudante E. Médio –

Fonte: Entrevista narrativa.

Identifiquei uma situação de ascendência no grau de escolarização, Cris (47 anos), filha mais velha de Dalva, concluiu o Ensino Fundamental e oportunizou que a filha (neta C) cursasse o Ensino Superior.

73 Incluídos apenas os netos e netas em idade escolar.

Dara (43 anos), filha de Dalva, cursou até o segundo ano do Ensino Médio, interrompendo ao casar, e optou por não dar continuidade mesmo com o apoio da mãe, do pai e do esposo. Sua filha, a neta D (22 anos), interrompeu os estudos na sétima série por motivo do casamento e o seu filho, o neto D (23 anos), estudou até a quarta série por motivo de “preguiça para os estudos”. Para Lahire (2008), são vários os fatores que compõem o “fracasso” escolar, nesse caso: as fracas disposições domésticas, a relação dolorosa com os estudos, a relação da mãe e do pai com a escola, e o que decorre disso tudo de forma não consciente, não intencional com seus efeitos e implicações.

Julia (36 anos) filha mais nova de Dalva, concluiu o Ensino Médio e por questões financeiras não avançou para o Ensino Superior; uma de suas filhas, a neta J (15 anos), está cursando o Ensino Médio e já houve tentativas74 de cursá-lo no Instituto Federal, ou seja, já tem o olhar na educação pública e gratuita para garantir a continuidade dos estudos e um desfecho diferente na trajetória escolar familiar. A neta J concluirá o projeto interrompido da filha Julia, que já foi o orgulho de sua mãe, Dalva.

Essa compreensão, permite afirmar que a transmissão educativa (processo ativo de mediação e apropriação) transforma o que ela transmite (o conteúdo, aqui nomeado de herança) e os envolvidos nessa relação (aqui, mãe e filhas) e as próprias condições da transmissão (diferentes movimentos que permitiram e repercutiram no repetir, atualizar ou transformar a herança).

O movimento de transmitir e herdar que envolve apropriação e construção, ou seja, a reconfiguração da herança trouxe elementos de rupturas quanto ao grau de escolaridade, que se distingue significativamente entre as três gerações parentais (mãe Dalva, filha Cris e neta C) e trouxe também elementos de continuidades quanto ao interromper os estudos por motivo de casamento e gravidez (filha Cris e neta C). Elementos de continuidade na família de Dara, quanto à opção pela não continuidade dos estudos, da mãe, da filha D e do filho D. Elementos de continuidade, numa perspectiva positiva no caso de Julia e sua filha, a neta J.

Quanto à relação das filhas e netas de Isaura percebem-se mais elementos de continuidade do que de ruptura. As três filhas mais velhas, Cleo (50 anos), Mari (48 anos) e Elis (46 anos), que cursaram somente até a quarta série, têm filhos com histórias de interrupção nos estudos: o neto C cursou até quarta série pelo mesmo motivo da mãe, a neta N superou a mãe em duas séries, e a que mais se destacou foi a neta M, que cursou quase todo Ensino Médio,

74 Passou no processo seletivo para o Ensino Médio Integrado no Instituto Federal, mas não conseguiu uma boa colocação por ter estudado em escola particular e não ter realizado os trâmites para comprovar que havia sido beneficiada com uma bolsa de estudos.

provavelmente por ter as condições ideais, pois morava com a mãe Mari e a avó Isaura e conforme a narrativa de Isaura tinha roupa, calçado de marca, materiais escolares bons, transporte na “porta de casa” enfim oportunidades que “não soube aproveitar”.

Quadro 7 – Escolaridade das netas e netos de Isaura75

Mãe/Escolaridade Nome Posição na Fratria Idade Série concluída ou em curso Grau Motivo da interrupção Cleo 4ª série E. F Neto C

1ª 30 4ª E. F. inc. Escola rural

oferece até a 4ª série e falta de transporte escolar público para ir à cidade Mari 4ª série E. F. Neta M 1ª 20 2º E. M. inc. Casamento e mudança de cidade Elis 4ª série E. F. Neta E 1ª 24 6ª E. F. inc. Trabalho Berenice 5ª série E. F Neta B 1ª 18 desconhece - - Berenice 5ª série E. F. Neto B 2ª 12 estudante E. F. - Vânia 5ª série E. F. Neta V

1ª desconhece estudante desconhece Vânia

5ª série E. F.

Neto V

2ª desconhece estudante desconhece Filho 2

Desconhece o grau, mas estudou

mais do que as irmãs Neto F2 1ª 20 1º Ensino Superior inc. Não se identificou com o curso de Direito

Fonte: Entrevista narrativa.

As filhas mais novas, Berenice (45 anos) e Vânia (38 anos) que cursaram até a quinta série, tem os filhos estudando: a neta B (18 anos), a qual Isaura acredita que não esteja na faculdade ainda, e os demais netos estão em idade de escolarização fundamental. O neto F (20 anos), filho do filho de Isaura, foi por enquanto o único que chegou ao Ensino Superior, no curso de Direito, que já interrompeu por não se identificar com a profissão.

75 Incluídos apenas os netos e netas em idade escolar.

Para Lahire (2008), a existência de capital cultural ou de disposições culturais no seio de uma configuração familiar diz pouco acerca das maneiras, das formas de relações sociais, importa a frequência e a intencionalidade dessas relações. Também acredito que a simples existência de capital cultural, sem intervenção, não passa de mero cenário de desencontros familiares, em que o ambiente exerce alguma influência, pois “para haver transmissão de capital cultural é necessário haver interações efetivas e afetivas entre pais e filhos” (ROMANELLI, 2013, p. 42). Agora, um ambiente familiar que por sua vez carece de capital cultural, como foi o caso de Dalva e Isaura, pode inscrever heranças educativas numa outra perspectiva, desde que a escolarização seja algo que, por ter faltado às mães, tenha centralidade como memória de carência e projeto de possibilidades.

“Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo.” (SARAMAGO, 1998)

“CONCLUO” E APRENDO

Parafraseio Saramago (1998): perdoem-me se vos pareceu pouco este texto que considero minha tese. Uma escrita que transita pelas situações de escassez, de faltas, de ausências e assistematicidades, mas também pelas reações, estratégias, criações, soluções populares, expectativas, sonhos, projetos e desejos de mulheres, que tiveram suas histórias socializadas em narrativas, contadas até de improviso, diante de algumas questões que só o tempo responde.

Espero ter conseguido a árdua tarefa de não vitimizar nem romantizar as mulheres, sujeitos de pesquisa, ao valorizar cada palavra que compôs o discurso. E inspirada em Lahire