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Alfabetismo e analfabetismo são termos que recebem definições contextualizadas historicamente, tendo, ainda, a possibilidade de receberem interpretações diversas em função de sua identificação com determinada orientação teórica (TRINDADE, 2004). Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a pessoa alfabetizada é capaz de ler e escrever pelo menos um bilhete simples no idioma que conhece, já todas as pessoas com menos de quatro séries de estudos concluídas são consideradas analfabetas funcionais. A Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) reconhece como alfabetizada funcional a pessoa capaz de utilizar a leitura e a escrita para fazer frente às demandas de seu contexto social e de usar essas habilidades para continuar aprendendo e se desenvolvendo ao longo da vida (MORAES, 2014), indiferente dos anos de escolarização.

Converge, nessa perspectiva, o Índice Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF), que tem como pressuposto que saber ler e escrever não é uma questão pontual de tudo ou nada, mas uma competência que pode ser desenvolvida em diversos níveis e nas diversas práticas sociais de letramento, entendido como nos usos mais comuns da escrita no ambiente doméstico, no trabalho, no lazer, na participação cidadã, na educação, na religião. E na Sociedade do Conhecimento, que se sustenta no desenvolvimento das tecnologias digitais da informação e comunicação (TDIC), o paradigma tecnológico e a cultura digital exercem influências na

complexificação da concepção de alfabetização, agora compreendida enquanto alfabetização digital (MORAES e FOFONCA, 2017).

As concepções clássicas de alfabetização fundamentadas na aquisição do código da leitura e da escrita, como uma questão de tudo (alfabetizado) ou nada (analfabeto), são colocadas sob suspeição pelas teorizações de múltiplos alfabetismos (TRINDADE, 2004). Essa concepção de alfabetização também foi problematizada por Freire nos anos 1960, propondo que a leitura do mundo preceda a leitura da palavra. Décadas depois, Magda Soares (2000) estuda o conceito de letramento, oriundo do termo literacy da língua inglesa, como práticas sociais de leitura e escrita, porém não refere esse conceito aos jovens e adultos.

Já concordei com Freire e Macedo (2011), busquei inspirações em Soares (2000), e discuti as aproximações entre a concepção freireana de alfabetização e as diferentes concepções de letramento e cheguei a concluir que quanto às convergências e divergências a respeito das concepções de letramento, não as considero um jogo de forças sobre uma denominação terminológica, mas como múltiplos olhares sobre um dos direitos fundamentais do ser humano: o direito à palavra, tendo como uma das formas de expressão a leitura e a escrita (MORAES, 2006a).

E com essa perspectiva, nesse momento, acolho o discurso de Rojo (2009), que compreende o alfabetismo como um conceito que disputa espaço com o conceito de letramento. Se tomarmos a alfabetização como a ação de alfabetizar, de ensinar a ler e a escrever, que leva o aprendiz a conhecer o alfabeto, a mecânica da escrita/leitura, a se tornar alfabetizado, alfabetismo pode ser definido como o estado ou condição de quem sabe ler e escrever. Essas capacidades são múltiplas e variadas. São capacidades letradas envolvidas no conceito de alfabetismo: a) ler: decodificar, compreender, interpretar, estabelecer relações, situar o texto em seu contexto, criticar e replicar; b) escrever: codificar, normatizar (ortografia, notações), comunicar, textualizar, situar o texto em seu contexto e intertextualizar. O foco do conceito de alfabetismo está no conhecimento, nas capacidades envolvidas na leitura e na escrita. É um conceito de natureza psicológica e escopo individual – é possível investigar os níveis de alfabetismo dos indivíduos.

Na opinião de Rojo (2009), vale a pena insistir na distinção: o termo alfabetismo tem um foco individual, ditado pelas competências escolares (cognitivas e linguísticas) e valorizadas de leitura e escrita (letramentos escolares e acadêmicos), enquanto o letramento busca recobrir os usos e práticas sociais de linguagem que envolvem a escrita de uma ou de outra maneira, sejam eles valorizados ou não valorizados, locais ou globais, recobrindo contextos sociais diversos (família, igreja, trabalho, mídias, escola etc.) numa perspectiva

sociológica, antropológica e sociocultural.

As mulheres desse estudo, ao se declararem analfabetas, reconhecendo que não sabem ler e escrever, encontrando, porém, outras formas de inscrição na sociedade grafocêntrica, influenciaram a minha opção pelo termo alfabetismo, em meio à pluralidade de práticas discursivas e suas classificações. Alfabetismo é um vocábulo dicionarizado (MICHAELIS, 2016b) que significa o antônimo positivo de analfabetismo: estado ou qualidade dos que foram alfabetizados. Concordo com Trindade (2004) que alfabetismo remete diretamente a analfabetismo e alfabetização, sem ficar encoberto por outros termos, e a sociedade é um espaço de invenção de múltiplos alfabetismos – que inclui e transcende a alfabetização compreendida como leitura e escrita da palavra.

Nessa perspectiva, trago os enunciados localizados nas narrativas das mulheres, que produzem um discurso de expectativa em relação ao que as habilidades da leitura e da escrita proporcionariam: desenvolver o pensamento, o prazer de ler fluentemente, saber o que está escrito no papel, escrever uma carta, ler a bíblia, fazer compras.

Tenho vontade de aprender, de escrever. Então se eu aprendesse a ler, seria bom pra mim ler, porque é bom pra cabeça da gente, clarear um pouco (Dolores, 60 anos).

Agora me defendo, alguma coisinha ainda dá pra ler, [...] mas queria tanto pegar um caderno e um livro assim e ler como os outros, era o meu prazer. [...] Agora estou tranquila, me sinto gente! Era pior antigamente nós não sabia nada, nem a letra O. Quietinha em casa, sozinha, leio soletrando, encaixando, não é correto [...] queria tanto fazer como vocês abrem e leem (Isaura, 66 anos).

Queria aprender mais um pouco. [...] Porque não sei nada mesmo. Sei só escrever meu nome. [...] se a gente aprendesse [...] a ler e a escrever já era uma grande coisa porque a gente saberia o que está no papel (Rosalina, 45 anos).

Se soubesse escrever seria muito bom, escrever uma carta (Ester, 61 anos).

Sou evangélica, vou muito à igreja, tenho que escutar os outros lerem pra mim. Estou obedecendo àquelas palavras pela fé, porque faz falta saber ler (Norma, 71 anos).

Faz muita falta pra gente em tantas [...] coisas, vamos supor, pra ir ao mercado e comprar qualquer coisa. Apesar de que quando vou comprar minhas coisas, quero comprar bem: barato e bom (Celeste, 66 anos).

Elas enunciam que a alfabetização, nos dias de hoje, institui um lugar àquela que sabe. Lugar que eu nomeio de inscrição na sociedade grafocêntrica. Os enunciados convergem nessa perspectiva:

Sinto muita falta da leitura. Quanta coisa poderia fazer na igreja no Grupo da Renovação Carismática, que participo. Se soubesse ler e escrever, poderia subir bem mais alto. Porque a gente não sabe [...], escrever e ler, só faço o que a coordenadora ensina [...] Fizemos leitura, e quando a gente sai, sempre apresenta alguma coisa, tem que lê algum projeto, e já fico de lado [...] (Dalva, 68 anos).

Seria maravilhoso, mas não sei, tenho muita falta de letra. Queria trabalhar num restaurante lá em Bento Gonçalves, tinha que ter o primeiro grau, não me empregaram. Tenho experiência de quinze anos em restaurante, sei fazer comida bem boa (Ester, 61 anos).

Então, eu sirvo pra dizer para uma criança que não quer ir à aula [...] se eles não aprenderem, eles não terão como trabalhar pra ganhar o pão de cada dia, porque daqui a pouco, até pra varrer o chão tem que fazer curso (Norma, 71 anos).

Gosto de mandar, de administrar [...], e é sempre o marido [...] fico bastante zangada (Celeste, 66 anos).

Ninguém é analfabeto por eleição, mas como consequência das condições objetivas em que se encontra. Em certas circunstâncias, o analfabeto é o homem e/ou a mulher que não necessita ler, em outras, é aquele ou aquela a quem foi negado o direito de aprender a ler. Considerar a circunstância de um contexto em que o homem e/ou a mulher não necessita ler, conforme apontou Freire (1979), ou pelo menos que acredita que pode continuar vivendo sem ser alfabetizada, nos remete ao mito da alfabetização e do alfabetismo estudado por Graff (1990) e Cook-Gumperz (1991), ambos, analisados por Trindade (2004): a atividade econômica industrial, especialmente entre os séculos XVIII e XIX, não foi a única razão para o desenvolvimento da alfabetização, que a precedeu, com uma multiplicidade dificilmente estimada de alfabetizações na interação cotidiana, por meio de tarefas práticas, possuindo maior valor nas áreas sociais e recreativas da vida. Apenas gradualmente ela ingressaria na vida econômica das pessoas comuns, em formas que determinariam suas perspectivas de vida. A mudança, portanto, não foi do total analfabetismo para a alfabetização, mas de uma ideia pluralista acerca da alfabetização até a noção de uma alfabetização única, estandartizada no século XX.

Nessa perspectiva, é interessante ver como, aumentando as exigências que definem a alfabetização, transforma-se o valor, negativo ou positivo, de certos comportamentos e de certas práticas discursivas. Quanto mais específicas são as definições e os padrões de alfabetização, mais difícil se torna o julgamento sobre o comportamento letrado e alfabetizado. Junto com a maior precisão e expansão da definição de alfabetização, precisamos discutir as especificidades que a definição de analfabetismo recebe, pois esta também se amplia ao incluir, além da ausência da aquisição da leitura e da escrita, a ausência de suas “habilidades funcionais”, propiciando, assim, uma provável associação negativa com uma capacidade limitada (TRINDADE, 2004).

O discurso da mídia brasileira geralmente reforça versões simplistas sobre o analfabetismo. É comum ao noticiar os índices de analfabetismo, destacar pessoas que se dizem na “escuridão do analfabetismo” e ao aprenderem ler e escrever avançaram para a “luz do conhecimento”, conforme sequência de enunciados retirados de uma reportagem45:

Eu acredito que elas vivam num mundo escuro, porque eles estão inseridos no mundo, mas eles não conseguem perceber o que tem ao redor, um letreiro, um anúncio, uma informação importante (depoimento de uma filha de analfabeta).

Você olha para qualquer placa de uma coisa e tanto faz, você olhar ou não olhar, que você não sabe de nada, é a pior coisa do mundo, é cego, é cego

(depoimento de um estudante de alfabetização de adultos).

Pior seria não enxergar que existe uma luz (comentário do repórter que segue destacando a educação de jovens e adultos).

Também é possível identificar a presença de uma mulher que dita suas poesias para uma neta e deseja, um dia, escrevê-las e fazer músicas, mostrar para todo mundo quem ela é, seguida do enunciado que coloca o analfabeto em contradição na mídia: “ela tem o dom das palavras, mas lhe faltam as letras, é poesia, só que nesse caso também é drama” (jornalista).

Inhoti (2011) estudou a identidade do sujeito analfabeto em contradição na mídia e observou que as práticas discursivas midiáticas irrompem na contradição no modo de ver e conceber o sujeito analfabeto. Esta contradição concentra-se, principalmente, no campo legislativo, no campo científico e no campo político/social. A identidade do sujeito analfabeto é construída pela mídia como sujeito dotado de capacidades e, por isso, deve ser incluído na

45Possível de conferir esse enfoque em notícia recente sobre os resultados do Índice Nacional de Alfabetismo

Funcional – INAF – na programação em rede nacional: disponível em <http://globoplay.globo.com/v/4812262/>. Acesso em fevereiro de 2016.

sociedade, ao mesmo tempo há uma desconstrução desta identidade concebida, principalmente, pelos efeitos de sentido de incapacidade e, por isso, exclusão do campo político, social, econômico.

E as concepções simplistas acabam sendo difundidas pelo senso comum que ignora a relatividade com que vem sendo tratada a questão no decorrer dos tempos. Assim como na primeira Revolução da Leitura da Idade Moderna, embora coexistisse a leitura oralizada e a silenciosa, passou-se a valorizar mais a segunda, de tal forma que a categoria ‘analfabetismo’ designava não somente a parte da população que era totalmente iletrada, mas os leitores, ainda numerosos, que somente compreendiam o texto se o lessem em voz alta. Nessa perspectiva, não é o iletrismo que avança, mas são a escrita e a leitura que se tornam mais complexas. Aqueles que são considerados não leitores leem, mas leem coisa diferente daquilo que o cânone escolar define como uma leitura legítima (CAVALLO e CHARTIER, 1998).

Para Trindade (2004) as práticas sociais de alfabetizações diversas, escolarizadas ao final do século XIX, são ressignificadas ao final do século XX, por meio de outras denominações, outras interpretações, e pela valorização de novos gêneros textuais, que se mesclam entre si, tornando-se híbridos, em uma pluralidade de práticas discursivas.

3.4 Estratégias de inscrição no cotidiano da sociedade grafocêntrica no discurso de